26 Fevereiro 2014
Embora indicado ao Oscar de melhor ator pelo filme 12 Anos de Escravidão, o ator britânico Chiwetel Ejiofor, na minha mente, ficou como um mero coadjuvante. Não passa um grama de emoção para um papel tão forte como o de Solomon Northup, um nobre sequestrado para ser escravizado nos Estados Unidos. Percebi isso quando repassava mentalmente, pela segunda vez, a lista do supermercado que precisava ser feita no dia seguinte enquanto encarava sua performance na tela. Boring, em inglês, pode resumir sua atuação.
Foto: El Pais |
A reportagem é de Carla Jiménez, publicada pelo jornal El País, 24-02-2014.
Mas, '12 anos de escravidão' precisa ser visto pois o filme é marcante. E marca fortemente quando aparece a coadjuvante (?) Lupita Nyong'o, uma das atrizes mais bonitas que já vi. Essa sim, vale o filme todo, e não pela beleza, que talvez nem seja a que eu enxergo na memória da minha retina agora. Mas a sua atuação é dilacerante, densa e real, e, aí sim, consegui me conectar afetivamente com o filme, e sentir um incômodo profundo, o qual só passei a elaborar de modo racional, no momento em que escrevo este texto. Lupita interpreta uma escrava submetida a todo tipo de abuso, por um latifundiário que não esconde sua paixão por ela. Fácil identificar-se no inconsciente feminino, mas essa é só uma minúscula faceta de sua personagem. Lupita é levada aos extremos da sua sanidade mental entre estar viva e morrer. É ela quem efetivamente transporta o espectador para o que é a tal escravidão que dá nome ao filme.
Uma das cenas mais cruéis é quando ela está tomando repetidas chibatadas do patrão, bravo porque ela saiu sem avisar. Os vergões em suas costas sangram, e se tornam cicatrizes profundas ao longo do filme. Isso me remeteu a amigos, colegas e conhecidos do Brasil que vez em quando relatam a vida de seus antepassados. É natural esbarrar com descendentes de escravos aqui, que lembram das marcas nas costas que avós ou bisavós exibiam das chibatadas que recebiam de seus senhores. Num país que só aboliu essa distorção humana em 1888, depois de 350 anos em vigor, as cicatrizes continuam abertas.
Os ecos da escravidão ainda soam no Brasil, uma sociedade onde quase metade dos habitantes é preta, somando negros e pardos. Os resquícios da sua existência, e de sua influência, são perceptíveis nas mínimas sutilezas. “Tô no pelourinho”, ou “Tô no tronco”, dizemos, com um toque de humor, quando estamos em jornadas de trabalho extensivas. Porém, no cotidiano esses resquícios autoritários que ficaram da escravidão não têm a menor graça. Na semana passada, a aposentada Davina Castelli foi condenada por racismo depois de xingar uma mulher negra de “macaca”, e dizer que “negros são imundos”, a quem quisesse ouvir nas lojas que ela frequentava num shopping em plena avenida Paulista, coração da maior cidade brasileira.
Lupita Nyong'o and Chiwetel Ejiofor. / D.M. Benett (Getty Images) |
Há cinco anos ela vinha apresentando esse tipo de comportamento, segundo testemunhas, e já havia várias queixas contra ela na polícia, inclusive um filme no Youtube, há dois anos. Ninguém havia feito nada para colocá-la no lugar até então. Foi preciso que o assunto chegasse aos ouvidos do governador do Estado para que a passividade do shopping, da polícia e de quem estava por perto quando ela soltava esses impropérios fosse interrompida. Ninguém se atrevia a reagir também quando a personagem de Lupita estava no tronco apanhando.
Num país onde a pobreza é preta, formada por esses descendentes de escravos, libertados sem o menor apoio para lograr uma reinserção digna na sociedade no século XIX, as chicotadas nas costas de Lupita perturbam. A escravidão nos dois países não foi vivida da mesma forma. Mas em qualquer lugar do mundo ela é a sombra que a humanidade deixa aparecer de tempos em tempos. Nos Estados Unidos, pelo menos, o Governo se preocupou em entregar um pedacinho de terra aos que eram libertados em 1863. No Brasil, não. Hoje, pobres e pretos continuam na marginalidade, flertando com o submundo da bandidagem. Será a revolta do descaso ancestral que permanece? É Lupita quem nos faz refletir.
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Como são os '12 anos de escravidão' vistos do Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU