16 Mai 2020
Na região do Bico do Papagaio, norte de Tocantins, Antônio Veríssimo Apinajé recorda seus tempos de menino na aldeia Taquari, na década de 1970. “Chovia sem parar, por três, quatro dias seguidos, de janeiro a junho. Os rios e as nascentes ficavam cheios. A estação chuvosa começava em outubro, quando minha família plantava mandioca, milho e arroz. Em junho vinha a estação seca, e durava até setembro.”
A reportagem é de Jenny Gonzales, publicada por Mongabay e reproduzida por Amazônia, 14-05-2020.
Não mais, diz o líder do povo Apinajé. “Tem anos que as chuvas demoram para chegar, só em novembro, dezembro, até janeiro, e só então podemos plantar. Em abril a chuva já está parando. Se falta água, não temos como irrigar [a roça]. A mandioca fica pequena, o milho ‘não enche’. As chuvas diminuíram bem nos últimos dez anos.”
Assim como Antônio, boa parte dos indígenas brasileiros vem testemunhando, no dia a dia, as transformações decorrentes das mudanças climáticas. Segundo eles, a natureza vem dando sinais de alteração há pelo menos 15 anos, e com mais rapidez nos últimos tempos.
A ciência, por meio de satélites, corrobora: estudos recentes estimam que ao menos metade da Floresta Amazônica pode se transformar em savana nos próximos 50 anos caso as mudanças climáticas não sejam revertidas.
Área destruída pelo fogo em Rondônia, registrada pela Operação Verde Brasil, do Prevfogo. Foto: Vinícius Mendonça/Ibama
“Falta de água é o primeiro sinal”, diz Antônio. É indício de que as chuvas estão chegando com atraso — fator que, alternado com secas intensas e prolongadas, termina por prejudicar as colheitas e reduzir a variedade de alimentos disponíveis nas aldeias.
Maria Leonice Tupari, coordenadora da Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia (Agir), relata que na TI onde vive, a Sete de Setembro, “o rio seca com frequência e a água que sobra forma uma espécie de baía, onde os peixes tentam sobreviver. Quando volta a chover, a água morna do leito mistura-se com a água fria que cai e o choque [de temperaturas] mata os peixes pequenos.”
Não bastasse a diminuição de recursos naturais, Maria Leonice tem se inquietado também ao ver ressurgir enfermidades nas aldeias. “Doenças que já tinham sido controladas estão voltando: sarampo, febre amarela… Acredito que isso tem a ver com o clima, a destruição da natureza. E veio um vírus para mostrar nossa fragilidade, trazer reflexão”, diz ela, referindo-se à chegada da covid-19 às aldeias, que até o início de maio já havia infectado mais de 200 indígenas no país.
O clima cada vez mais quente pode estar também alterando o organismo das mulheres Kiriri, no nordeste da Bahia, segundo as próprias relataram a Sineia do Vale, coordenadora do Departamento Ambiental do Conselho Indígena de Roraima (CIR). “As cacicas acreditam que o calor extremo fez com que a tensão pré-menstrual de jovens indígenas chegasse mais cedo.”
Atendimento a indígenas em Assunção do Içana, Alto Rio Negro (AM). Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.
A combinação de um clima cada vez mais seco com o avanço das queimadas também produz a intensificação de incêndios, que pode ser potencialmente desastrosa em algumas áreas, sobretudo nas terras indígenas situadas na fronteira do desmatamento.
É o caso da mesma TI Sete de Setembro onde vive Maria Leonice Tupari, território ancestral dos Suruí Paiter na divisa de Rondônia e Mato Grosso, hoje cercado de fazendas de gado. “Os fazendeiros gostam de queimar grandes áreas de terra para limpar o pasto. No ano passado, qualquer coisinha dava incêndio, de bitucas de cigarro a garrafas de vidro. Era lixo jogado por caminhões nas margens de capim seco das estradas”, diz ela.
Segundo a líder das mulheres guerreiras de Rondônia, o fogo causou outro grave problema em 2019, ano recorde de queimadas: “A fumaça gerada fez com que muitos de nós passassem mal, com fortes dores de cabeça, irritação nos olhos e problemas respiratórios. A fumaça era terrível. Crianças e idosos especialmente tiveram de ir aos hospitais da região, que estavam lotados com pessoas das cidades, também intoxicados”.
Antônio Apinajé, a mil quilômetros dali, na beira do Rio Tocantins, tem o mesmo temor: “Ficamos preocupados quando há focos de incêndio na região porque, dependendo do horário e da força do vento, o fogo voa. Vivemos perto da floresta e da vegetação de Cerrado; dá até angústia só de pensar, aquela fumaça pesada fica no ar por dois, três meses,” diz o líder Apinajé.
Como forma de reduzir os danos às vegetação dos biomas, o Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais do Ibama (Prevfogo) contrata indígenas, na temporada das queimadas, para atuarem como brigadistas nas Tis onde vivem. “Eles conhecem os territórios melhor do que ninguém, sabem onde está a vegetação mais suscetível ao fogo, onde os incêndios costumam começar e se espalhar,” diz Gabriel Constantino Zacharias, chefe do Prevfogo.
A iniciativa começou em 2013 com 400 indígenas — um terço do total de brigadistas — e foi crescendo ao longo dos anos. Em 2019, porém, caiu pela primeira vez: foram 760 indígenas em campo, vinte a menos do que no ano anterior.
“O primeiro ano de um governo é de restrições orçamentárias”, justifica Zacharias, ao falar da gestão Bolsonaro. Em agosto passado, Alemanha e Noruega suspenderam suas contribuições ao Fundo Amazônia em face do desmatamento crescente no país. Parte desses recursos financiava a contratação de brigadistas indígenas — entre 2014 e 2018, o fundo investiu R$ 14,7 milhões em atividades do Prevfogo nos nove estados amazônicos.
Brigadistas indígenas do PrevFogo em ação de combate a incêndio no Parque Indígena do Xingu. Foto: Vinícius Mendonça/Ibama.
No Tocantins, os Apinajé tem se dedicado a pesquisar sementes mais resistentes à seca e ao calor.
“Em vez de usar sementes de arroz, que levam cinco a seis meses para amadurecer, agora só plantamos o arroz ‘ligeiro’, que demora três meses”, diz Antônio Apinajé. “Conseguimos também uma espécie de mandioca que cresce em sete meses, enquanto a que plantávamos antes levava normalmente um ano.”
A oferta de água igualmente influencia o que vai ser cultivado, segundo ele: “Mandioca e feijão não pedem muita chuva, mas arroz, abóbora, milho e banana sim, por isso estamos plantando menos deles”.
Há pouco mais de um ano, o povo Apinajé, formado por 2,8 mil habitantes espalhados em 42 aldeias da TI homônima, criou uma “casa de sementes”, como assim a batizaram, que armazena as espécies mais produtivas e resistentes ao calor. A ideia é ampliar a variedade desse acervo, fazendo intercâmbio de sementes e de experiências agrobiológicas com outros povos, além de agricultores familiares e quilombolas.
Essa proposta vem se difundindo em outros estados amazônicos: em Roraima, por exemplo, lideranças coordenam a formação de uma rede de bancos de sementes entre as regiões do estado onde vivem indígenas. “O projeto parou por causa do coronavírus, mas vamos retomá-lo assim que possível,” diz Sineia do Vale, do CIR, representante do povo Wapichana.
Em agosto passado, o CIR promoveu a organização de um banco de sementes na TI Raimundão, no município de Alto Alegre, e o cultivo de uma área de dois hectares com sementes mais resistentes de milho, mandioca e pimenta, principais alimentos das comunidades locais.
As ações são parte de um plano pioneiro de gestão ambiental que inclui o fator climático, concebido a partir de consultas junto a habitantes das Tis Malacacheta, Jacamim e Manoá-Pium.
Conduzidas por mais de 200 agentes territoriais e ambientais indígenas (Atais), as entrevistas resultaram na publicação do livro Amazad Pana’adinhan — Percepções das Comunidades Indígenas sobre as Mudanças Climáticas — Região Serra da Lua, RR.
Inimaginável até poucos anos atrás, “os conhecimentos ancestrais estão sendo discutidos por cientistas em diversas partes do mundo para ajudar no entendimento das questões climáticas,” diz a líder Wapichana.
Ação de troca de sementes organizada pelo Conselho Indígena de Roraima. Foto: CIR.
A colaboração entre ciência e saberes indígenas também se dá por meio da criação de ferramentas tecnológicas, como o Alerta Clima Indígena. Desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), o aplicativo fornece dados sobre focos de calor, riscos de seca e desmatamento para ajudar os indígenas a monitorar seus territórios e o entorno. As informações podem ser acessadas mesmo quando os celulares estão sem conexão.
Além disso, por meio do aplicativo, os próprios indígenas podem inserir e compartilhar alertas de fogo e de atividades ilegais em suas terras, como desmatamento, pesca predatória e extração de madeira.
“Os povos indígenas são, por um lado, grandes figuras em mitigar as alterações climáticas, mas, por outro, vivem diretamente com elas e por isso são os mais afetados”, diz Martha Fellows Dourado, pesquisadora do Ipam. “O ACI surgiu como uma ferramenta para apoiar a gestão territorial das Tis na ponta final — as próprias comunidades.”
Usado atualmente em Roraima, Maranhão e Mato Grosso, a meta é que o aplicativo seja empregado em todas as Tis demarcadas do país. E, nos próximos meses, o Alerta Clima Indígena irá ganhar uma função ligada ao coronavírus, de modo que os usuários possam acompanhar a disseminação da covid-19 nas aldeias e cidades.
Para além da tecnologia, Leonice Tupari invoca a espiritualidade dos povos da floresta como forma de reverter o futuro que se anuncia: “Precisamos respeitar a natureza e nos conectar com ela. Somos espíritos aqui na Terra, encarnados na matéria, ligados ao fogo, ao solo, ao vento, a tudo que existe. As pessoas se afastaram dela. Não pisam no solo, não sentem a brisa. É preciso sentir a água, e não falo da água do chuveiro. Nossa espiritualidade está conectada com a natureza.”
O aplicativo Alerta Clima Indígena (ACI), desenvolvido pelo Ipam com apoio do governo da Noruega, permite monitorar focos de calor, desmatamento e dados climáticos nas terras indígenas da Amazônia brasileira. Foto: Ipam.
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Alerta verde: como os indígenas brasileiros vêm sentindo na pele as mudanças climáticas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU