06 Mai 2020
“Em seu exílio interno, Thoreau refletiu de maneira crítica sobre a relação problemática entre o indivíduo e a sociedade em uma república defeituosa”, escreve Andreas Hess, professor de sociologia na University College Dublin, em artigo publicado por Letras Libres, 04-05-2020. A tradução é do Cepat.
Houve muitos conselhos sobre para onde poderíamos nos dirigir durante a pandemia da Covid-19. Além das advertências habituais - mantenha-se em forma, coma de maneira saudável e beba menos álcool -, quase todos os principais jornais publicaram ao menos um longo artigo sobre o que ler durante a quarentena. As recomendações vão dos clássicos das viagens imaginárias - destacam As Viagens de Gulliver, de Swift, e Robinson Crusoe, de Defoe -, a romances e autores modernos como A peste de Camus e a última tentativa de capturar as dimensões históricas da morte e do sofrimento, The mirror and the light, de Hilary Mantel.
Os Diários e Walden de Henry David Thoreau estão entre os poucos textos de não-ficção nessas listas de leitura obrigatória. No entanto, não sendo fictícias, as reflexões de Thoreau foram consideradas, sobretudo, contribuições para uma mindfulness em grande parte despolitizada, suficientes para gerar algumas semanas de meditação pessoal durante a quarentena, mas desprovida de uma mensagem política radical, além de considerações individualizadas. Em suma, Walden e os Diários tornaram-se textos carentes de toda consequência social e política.
O ferrão crítico e provocativo foi extirpado. O que encontramos em um prestigioso jornal estadunidense é um Thoreau que foi ao bosque principalmente para meditar sobre o sentido da vida, após viver a súbita perda de seu irmão por sepse, alguns meses antes (é assim que o correspondente do Washington Post vê Walden). Obviamente, isso é para atrair aqueles cujos parentes e amigos morreram na pandemia.
Em vez disso, em um artigo mais recente sobre Thoreau publicado por outro jornal estadunidense, o New York Times, os leitores têm diante deles um misantropo que se isolou em Walden Pond, principalmente para experimentar a natureza mais diretamente e para se distanciar das contaminações da civilização humana. Parece que o artigo foi escrito para atrair todos os amantes da natureza que se trancaram em casa.
Para ser justo, ao menos o Times não esqueceu as atividades políticas de Thoreau (embora pareça mais uma correção posterior do que uma descrição competente do contexto dos princípios firmes de Thoreau). O jornal cobriu o compromisso do escritor e de seu grupo com a “ferrovia subterrânea”, que ajudou escravos fugitivos a fugir do sul dos Estados Unidos para o Canadá, os chamamentos públicos radicais de Thoreau a serviço da causa abolicionista e sua oposição à guerra entre os Estados Unidos e o México. Todos assuntos que o levariam a questionar a autoridade política ilegítima. No entanto, a forma como essas atividades podem ser reconciliadas com seu tempo no bosque permanece um mistério para o jornal. Parece que se desenvolveu quase magicamente, a partir da “solidão construtiva” do escritor.
Não se pode negar que Thoreau tinha um lado misantropo. Sim, buscava a solidão, geralmente passeando pelo bosque em torno de Concord ou o que restava dele (aos leitores animava enfaticamente a comparar a etimologia do termo original, sauntering, no Oxford English Dictionary. Para o caso, é caminhar enquanto reflete, mind-sauntering poderia ser outra “tradução”).
Em suas expedições nos pântanos, Thoreau obviamente preferia o canto dos pássaros à companhia humana, algo semelhante aconteceu quando via veados ou encontrava ratos domésticos em sua cabana. Pelo que parece, não gostava de cupins porque seus esforços combinados poderiam levar à destruição de seu abrigo de madeira, então havia limites óbvios para a ideia de natureza como companhia.
Mas, embora essas histórias descrevam algumas das atividades de Thoreau em seu exílio autoimposto, parecem superficiais se as separarmos de sua agenda política. O escapismo ecológico, a lembrança e o luto por amigos e parentes e os exercícios de meditação eram necessários, mas nunca foram os objetivos principais do escritor, pelo menos não em Walden e nos Diários. Identificá-los como “puro Thoreau” e associá-los a comportamentos de anacoreta evita abordar os motivos políticos e sociais mais profundos que impulsionavam o homem. Ao contrário, o que Thoreau tentou imaginar e depois demonstrar com um exemplo era o que constituía a formação própria e o autocontrole em uma república recente, mas profundamente imperfeita.
Em poucas palavras, em seu exílio interno, Thoreau refletiu de maneira crítica sobre a relação problemática entre o indivíduo e a sociedade em uma república defeituosa (nos Estados Unidos, ao menos, o termo democracia tornou-se popular muito mais tarde, por isso Thoreau usa os termos “república” e “republicano”).
Para ele, o propósito da sociedade era existir para beneficiar todos os cidadãos, e não o contrário. Em outras palavras, o propósito do indivíduo não era servir à sociedade como se essa última fosse algo que estivesse acima dos membros que a constituem ou formasse uma entidade totalmente separada.
O defeito da república estadunidense era que alguns de seus membros não eram cidadãos, mas escravos legais e/ou meros residentes (Thoreau escreveu antes das emendas 13 e 14, que puseram oficialmente fim à escravidão) e estavam excluídos de participar na reprodução de sua forma política através do voto e da capacidade de ganhar dinheiro. Isso era contrário às convicções de Thoreau. Do seu ponto de vista, ele não poderia ser livre enquanto houvesse outra pessoa submetida à escravidão, que fosse impedida de ser livre.
Exigir liberdade e promover a não-dominação para todos era uma coisa, formar uma cidadania republicana através do domínio e controle de si mesmo era outra. Thoreau não esperava que essa mudança viesse do governo. Era um pensador republicano demais para esperar um movimento dessas características em qualquer administração.
Assim, no pensamento republicano, a formação do ser (ou dos seres) e o cultivo do controle de si mesmo é uma tarefa para cada cidadão (e para aqueles que aspiram a se tornar cidadãos). Essa ideia contrasta com muito do que a sociologia tem a dizer hoje sobre o que muitas pessoas parecem ter chegado a compartilhar: não somos apenas vítimas da sociedade.
Thoreau nos lembra que tendemos muitas vezes a esquecer que todos e cada um de nós atuamos, por mais limitados que sejam nossos meios e mais restritos nossos poderes parecem ser. Todos nós somos os executantes da sociedade. Se isso está correto, nossa agenda deve consistir em identificar as injustiças quando ocorrerem e reagir frente a elas, e não ser receptores passivos conduzidos a um coma político por uma caridade de provisão do Estado e de outros agentes, nem seguir chamamentos para servir “nossa nação” e abandonar nossas obrigações trabalhistas em espaços eleitorais distintos.
Por último, mas não menos importante, para Thoreau, a experiência de um exílio interior limitado no tempo foi uma espécie de depósito de compromisso político. Mais de 120 anos depois de Thoreau, o mago das ciências sociais Albert O. Hirschman destacou algo semelhante em seu estudo Shifting Involvements: existe uma conexão mais profunda entre o compromisso público e o retiro privado. Os domínios do público e do privado não devem ser vistos como alternativas, mas, sim, coexistentes.
Não podemos estar comprometidos 24/7, necessitamos respirar e recarregar nossas baterias para a próxima luta e o próximo compromisso privado. Uma reflexão crítica raramente ocorre quando se está no meio de uma luta, geralmente requer uma distância em termos de tempo e espaço. O que Thoreau fez foi exatamente isso: um experimento bem-sucedido e, portanto, recomendável no campo dos compromissos em mutação.
Talvez Pascal tivesse razão ao apontar que todos os problemas da civilização decorrem do fato de que não somos capazes de ficar sozinhos em um domicílio por um longo período. Ou pensemos na observação de Sartre de que o inferno são os outros. Sem dúvida, Thoreau era uma espécie de Jeremias estadunidense.
Era diferente dos dois pensadores exemplares europeus que acabei de citar, e, no entanto, era também um republicano do Novo Mundo que conhecia a tradição europeia clássica o suficiente para defender os princípios do humanismo cívico e fazer outras sugestões sobre como poderia ser produzida e aprimorada. Ao fazer isso, defendeu algo que ia além de Pascal e Sartre, isto é, que a formação do ego e a compaixão pelos outros eram contraditórias. Imagine o que isso poderia significar nos tempos da Covid-19.
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Uma solidão com propósito: ler Thoreau na quarentena - Instituto Humanitas Unisinos - IHU