23 Abril 2020
Algumas semanas já dentro deste retiro forçado, surge uma dúvida, de todos os cantos do mundo católico, sobre como poderemos ficar, como poderemos mudar, no período pós-pandemia.
Mas será que estamos fazendo as perguntas certas?
O editorial é publicado por National Catholic Reporter, 22-04-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Sejamos sinceros aqui: para ampliar a discussão, pedimos a opinião de especialistas em três questões:
a) como a Igreja se transformará enquanto comunidade?
b) em seu entendimento do que é mais importante?
c) em seu entendimento da própria missão social?
Em geral, a vida não é tão segmentada – nem tão rígida – de forma que faz sentido perguntar em nome de toda a Igreja: “Que poder esse momento tão estranho tem para nos transformar em algo diferente do que temos sido?”
Como vamos nos “desquarentenar”? é a pergunta que faz a advogada e teóloga Cathleen Kaveny, da Boston College.
Será que iremos nos fechar ainda mais, em nós mesmos, pergunta ela, trazendo um equivalente eclesial do distanciamento social à nossa prática religiosa quando as coisas voltarem ao normal? Ou será que nos tornaremos, como colocou Dom Robert McElroy, bispo de San Diego, “um rosto penetrante e missionário”, recém-informado pelo papel significativo que recaiu sobre os leigos durante a pandemia?
Estas questões levantaram a necessidade inevitável de uma clareza canônica: Podemos nos confessar por telefone? Uma absolvição geral pode ser dada conforme a necessidade? Esteve o Papa Francisco envolvido em graça barata quando distribuiu indulgências plenárias de forma generalizada (e, afinal, como elas funcionam)?
A Eucaristia pode ser confeccionada à distância? Depende ela mais da geografia ou da intenção do padre?
O que estamos aprendendo com as transmissões ao vivo da missa? O que aprendemos com os encontros digitais de católicos que compartilham taça, pão e oração? Que efeito poderá isso tudo ter em nossa compreensão do culto no período pós-pandêmico?
Não é de admirar que até mesmo o teólogo Massimo Faggioli, da Universidade Villanova, uma das universidades mais encantadas com o presente papa, admita que tem usado este período de quarentena para escrever um enorme ensaio, em duas partes, que pergunta se o papado de Francisco tem perdido a força.
Por que Francisco não usou o apoio que tem, nem o Sínodo dos Bispos para a Amazônia, tampouco o trabalho de uma comissão anterior, para fazer avançar a ordenação de homens casados e de diáconas? Por que ele não fez mais em sua reorganização da Cúria, e por que não pôr em funcionamento os mecanismos para fazer avançar suas reformas?
Compartilhamos a nossa simpatia com as preocupações de Faggioli, mas a maior parte dela reservamos ao pobre Francisco, que, ao mostrar um rosto muito mais humano no mais alto posto da Igreja, tem suportado o peso das expectativas de reforma.
E agora ele precisa lidar com a ansiedade instalada enquanto dezenas de milhões de católicos, no mundo todo, já divididos em campos, sentam-se em quarentena para imaginar o melhor e o pior do que pode vir a ser, quando as portas finalmente se abrirem.
Em geral, às análises falta a realidade de que a paisagem católica já estava em transformação muito antes da pandemia. O velho modelo paroquial de igreja, que se estabeleceu como imutável na imaginação popular, desapareceu há décadas. O afrouxamento dos vínculos junto à hierarquia e à prática formal, que uns temem ser o resultado da pandemia, já acontece há mais de 30 anos. Ninguém contribuiu mais para desconectar os católicos da confiança nos padres e bispos do que os padres e, especialmente, os próprios bispos.
O foco não deve estar no que a pandemia causará, mas no que ela pode acelerar. Aqueles que se preocupam com que toda e qualquer mudança seja feita acompanhada de uma verificação das opções litúrgicas e eclesiais corretas podem precisar aceitar que as lideranças eclesiásticas, em sua conduta escandalosa das últimas décadas, perderam o direito a tais considerações.
Se Francisco suporta o peso de expectativas exageradas, pode ser porque exemplificou algo muito diferente – profundamente humano e espiritualmente profundo – em seu exercício da autoridade. Um momento impressionante em seu papado, apropriado para as questões levantadas nas circunstâncias atuais, ocorreu quando retornava de uma viagem à África em 2015.
Durante a entrevista coletiva em seu avião, um repórter perguntou se a Igreja deveria aliviar as restrições ao uso de preservativos, dada a ameaça de disseminação do HIV na África.
Francisco respondeu que esta pergunta “me parece muito redutiva”.
Ele reconheceu a “perplexidade” da Igreja, mas citou quando Jesus foi interpelado pelas autoridades religiosas de seu tempo, numa tentativa de prendê-lo por desafiar a lei, sobre se era lícito curar no sábado. Esta cena é precedida por uma outra na qual as autoridades tentam prender Jesus, perguntando por que ele permitiu seus discípulos colherem grãos para comer no sábado.
Nesse exemplo, Jesus responde: “Se vocês tivessem compreendido o que significa: ‘Quero a misericórdia e não o sacrifício’, vocês teriam condenado estes homens que não estão em falta”.
No avião, Francisco respondeu: “Mas a desnutrição, a exploração das pessoas, o trabalho escravo, a falta de água potável: estes são os problemas. (…) Eu direi à humanidade: faça-se justiça. E, quando todos estivermos curados, quando não existirem mais injustiças neste mundo, poderemos falar do sábado”.
Talvez essas nossas perguntas neste período de quarentena – um papa e o povo, cativos do invisível e inaudito – sejam muito redutivas, demasiado redutivas ao mecanismo e às estratégias organizacionais.
A Irmã Carol Zinn, em palestra no início do ano em evento que buscava refletir sobre a reforma da Igreja em meio aos escândalos, talvez tenha dado a chave para abordarmos essas mesmas dúvidas em meio à atual pandemia:
Zinn, irmã do Instituo de São José da Filadélfia e diretora-executiva da Leadership Conference of Women Religious, falou repetidamente da escolha que Jesus fez pelo amor, e não pelo medo; da escolha que Jesus fez pela misericórdia, e não pelo julgamento; e da escolha que Jesus fez pela inclusão, e não pela exclusão.
Mudar a cultura eclesiástica para uma cultura que exemplifica a vida de Jesus “não será feito simplesmente mudando as coisas aqui e ali”, disse ela. “Pelo que me parece, não é uma caminhada de mudanças que estamos visando. É uma caminhada de transformação. E o tipo de liberdade que precisa acontecer em uma caminhada de transformação é absolutamente profunda”.
Para isso, disse a religiosa, “precisamos realizar um trabalho profundo na maneira como nos relacionamos uns com os outros”.
Como fazer isso? Como fazer justiça em nossos lares e entre nós? Como não apenas mudar, mas também transformar, as relações em todos os níveis? Essas parecem perguntas grandes o suficiente para refletirmos neste retiro forçado.
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Neste retiro forçado, estamos fazendo perguntas grandes o suficiente? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU