23 Abril 2020
"A liturgia é ação de um povo e, no centro de todos os ritos litúrgicos, está a memória do Filho, enquanto ele se apresenta diante do Pai na unidade do Espírito. Assim, o memorial celebrado na liturgia é sempre o serviço e obra da Trindade", escreve J. P. Grayland, padre neozelandês da Diocese de Palmerston North, Nova Zelândia, há quase 30 anos, em artigo publicado por La Croix International, 20-04-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Em artigo recente, o Pe. Michael Kelly formulou a relação entre anamnese eucarística, tecnologia digital e a celebração da liturgia. Ele descreve como fundamentalista a abordagem que enquadra a liturgia com respeito a uma “reunião física e presencial de uma comunidade” e a Eucaristia como o “momento privilegiado em que uma comunidade é reunida pelo Espírito Santo no mesmo lugar e ao mesmo tempo”.
Kelly sustenta que muitos comentaristas litúrgicos têm um apreço limitado às vantagens e oportunidades que as plataformas digitais oferecem ao culto durante um confinamento litúrgico. Ele, para ele, trata-se de uma abordagem ludista, com o resultado de que estamos deixando passar grandes oportunidades de inovar a liturgia.
Com certeza, o artigo de Kelly foi pensado buscando provocar uma resposta. O texto sugere que este período de confinamento é um tempo para fazermos perguntas e explorar opções, sentimento com o qual eu concordo.
No entanto, a presença de temas não resolvidos no artigo leva a uma conflação da Eucaristia virtual com a frequência à missa papal, e da fome eucarística devido à falta de padres em muitas igrejas com a distribuição de Sagrada Comunhão aos fiéis, enquanto assistem a uma missa na TV.
A forma como o articulista entrelaça essas questões é problemática. E o mesmo ocorre com a descrição da estrutura anamnética da Eucaristia como “um exercício de nossas memórias”.
“Hoje, enfrentamos outro desafio, e, sinceramente, não consigo ver que uma participação ‘virtual’ na Eucaristia seja tão teologicamente diferente do que ocorre nas megaproduções eucarísticas que ocorrem nas missas papais em todo o mundo”, escreve Kelly.
Deixando de lado esse exemplo extremo trazido pelo autor, a diferença entre assistir a uma missa em um monitor sentado em meu quarto e assisti-la em um telão, durante uma missa a céu aberto, sou eu e o que significa para mim estar “presente”. A qualidade da minha presença digital é exatamente da mesma qualidade como a minha presença física? Eis o problema!
Independentemente da tecnologia digital, da interação via videoconferência que usamos, não estamos fisicamente presentes junto daqueles com quem nos comunicamos.
Superar esse problema é a razão e o objetivo das plataformas de comunicação digital. Para isso, tais dispositivos funcionam bem, pois a presença física é um problema que elas resolvem.
No entanto, a pergunta continua: é este o problema a ser resolvido pela comunidade cristã quando celebra o seu rito principal, e a resposta é a solução digital?
Essa resposta depende de como entendemos a realidade, o virtual e a presença. O que distingue a “realidade virtual” da “real realidade” ou a “presença virtual” da “presença real” e o que torna alguém pronto para a celebração da Eucaristia?
A resposta a essa pergunta não podemos encontrar, eu diria, no mundo das mídias digitais e da engenharia eletrônica. Como a Eucaristia é uma realidade teológica e não uma realidade digital ou eletrônica, a resposta deve dar preferência à teologia.
“Virtual” tem o significado de “quase”, “praticamente” ou “não completo ainda”. Em termos computacionais, “virtual” significa não ter existência física, mas parecer real.
“Real” tem o significado de “ser em si”, tendo a sua “própria existência”, não sendo uma imitação ou artificial. “Real” denota que algo está completo e possui existência real. De forma parecida, “presença” denota a existência de algo ou, do latim, “estar à mão”, próximo.
As palavras “presença” e “realidade” denotam a diferença de ser para com aquilo que é “virtual”. Assim, virtual e real não se equivalem e, portanto, eis a necessidade do adjetivo para descrever uma presença como virtual sem precisar descrever a outra como real.
A distinção entre real e virtual, necessária para a nossa compreensão da Eucaristia, não se faz necessária para entendermos ou usarmos a tecnologia digital. A tecnologia digital nos oferece grandes vantagens para o aprendizado on-line, reuniões de negócios, discussões em grupo e conversas em família.
No entanto, segundo sei a partir de minha experiência de aprendizado on-line, estar virtualmente presente em uma sala de aula virtual difere substancialmente de estar presente fisicamente em uma sala de aula material.
Quando entro em uma sala de aula virtual, habito duas realidades: primeiro, a minha realidade física de sentar em minha sala, onde meu corpo experimenta o toque da cadeira, a luz através da janela, podendo eu tocar a xícara de café à minha frente e beber dela; e, em segundo lugar, a realidade de “estar com os outros” em um espaço de aprendizado on-line onde posso vê-los, conversar e manipular várias ferramentas, como quadros brancos e bate-papo.
O valor é que estamos todos on-line juntos, a realidade é que estamos todos digitalmente presentes, uns com os outros, via VOIP, placas de vídeo e essa é a presença digital. Podemos todos tomar café ao mesmo tempo e mesmo enviar um café digital para os demais, mas não podemos compartilhar nosso espaço entre o grupo.
Mais do que isso, o ambiente digital ou a comunidade não prendem minha atenção. Silenciando o meu microfone, posso continuar mandando e-mails. Da mesma forma, a pessoa que se senta no sofá da sala para assistir à missa dominical on-line pode fazer uma pausa para tomar um café, atender o telefone ou ir ao banheiro durante a Oração Eucarística.
Quando entro em uma sala de aula física, tenho uma realidade: o lugar em si, as pessoas e o ambiente. Minha realidade não é mais virtual e as conversas podem ser múltiplas, diferentemente de uma sala de aula virtual, onde apenas uma pessoa pode falar de cada vez. Neste mundo, o áudio (eu ouço) e o vídeo (eu vejo) são um único canal de dados, e não canais separados.
A liturgia é ação de um povo e, no centro de todos os ritos litúrgicos, está a memória do Filho, enquanto ele se apresenta diante do Pai na unidade do Espírito. Assim, o memorial celebrado na liturgia é sempre o serviço e obra da Trindade.
O memorial litúrgico não é obra da imaginação humana, nem apenas uma lembrança de um evento passado como “me lembrei de comprar manteiga”.
A anamnese de que falamos é uma recordação ativa do Corpo de Cristo. A experiência da anamnese é uma “memória corporal”.
Se, quando criança, passamos pelo medo de ficar trancado em um armário e, quando adulto, tivemos a experiência deste mesmo medo em um espaço confinado, temos aí uma “memória corporal” ou anamnese. Isso é mais do que apenas obra da imaginação.
A anamnese eucarística nos conduz além das “memórias corporais” de um indivíduo, para a memória de um povo, para a experiência judaica e para a memória coletiva de zikkaron. Essa é a memória da própria salvação, da qual a Páscoa é o elo entre as experiências judaica e cristã e a base de estrutura anamnética compartilhada.
A anamnese, ou recordação viva ativa, é central para o conceito e a prática da mediação sacramental e da oração litúrgica articuladas na teologia do Vaticano II.
O Pe. Kelly escreve: “Mas vejamos o que o Vaticano II chamou de ‘fonte e ápice da nossa fé’! Aqui está uma experiência virtual, se é que já houve alguma – a Eucaristia. É um exercício das nossas memórias, que traz à mente, cada vez que é celebrada, uma refeição compartilhada por no máximo 20 pessoas e nos remete a algumas coisas que ocorreram há 2 mil anos. Em relação a elas e aos eventos que recordam, estamos apenas virtualmente presentes – ‘Fazei isto em memória de mim’. Eles estão realmente prontos para a transformação em uma era virtual”.
À parte de sua historicidade questionável, esse comentário carece de qualquer referência à relação teológica entre anamnese e epiclesis (invocação do Espírito) na mediação litúrgica e sacramental. Anamnese e epiclesis formam os polos gêmeos da memória da história da salvação ao longo dos tempos e da oração neste momento presente pelo cumprimento da salvação prometida.
A estrutura anamnética da oração cristã deriva principalmente das formas judaicas de oração do Berakoth e do birkat ha-mazon. No idioma original, Peter Fink escreveu que é zikkaron (lembrança), isto é, “o sentido original de lembrança”. É zikkaron, não a memória, e certamente não imaginação, o que estrutura a nossa compreensão da anamnese eucarística. Compreender a anamnese, como descrito acima, nos liberta de um funcionalismo litúrgico ao qual o uso das plataformas digitais parece estar nos conduzindo de volta.
A perda, nesses dias, do Tríduo Pascal significou que não podemos processar a jornada de fé do ano passado e dar-lhe o rico simbolismo de que ela precisa.
A perda do fogo com a luz da Vela Pascal sendo compartilhada por toda a assembleia é profunda. Não ouvir o Exultet cantado e as leituras da história da salvação proclamadas significa que não “ouvimos juntos” a narrativa da presença e ação de Deus no mundo, desde antes da existência do mundo.
A perda da fonte, o chamado dos santos, o batismo de novos membros e sua confirmação nos impediram de ouvir a resposta dos catecúmenos ao chamado da fé neste sacerdócio real e santo. A perda da mesa compartilhada da Eucaristia e a perda do pão e do cálice que são abençoados, partidos e compartilhados; eis a perda da própria Eucaristia.
Sofremos a perda da presença mais plena de Cristo no sacrifício da missa, as Escrituras proclamadas na assembleia, o ministério do sacerdote na assembleia e a própria assembleia – o Povo de Deus.
Isto são perdas reais, porque, através desses rituais, símbolos e sinais, recontamos a história da fé que nos enxerta em Cristo e nos dá um lugar entre o Povo de Deus. Perdemos o contexto comunitário em que contamos a história da fé de nossos antepassados e o contexto para contar a nossos filhos o significado da fé.
E o que é mais importante, sobrevivemos! Deo Gratias! E aprenderemos que, embora possa nos unir, a tecnologia digital não satisfaz o anseio que temos uns pelos outros – ela não substitui a nossa humanidade, pois não pode colocar áudio e vídeo juntos no ego!
A experiência digital é limitada porque é virtual e eletrônica, não porque é ruim ou errada. Suas limitações não constituem o problema que enfrentamos em nosso confinamento litúrgico.
O problema que enfrentamos é quando transferimos simplesmente a estrutura ritual das nossas igrejas para os nossos contextos domésticos clericais, e continuamos fazendo “igreja” enquanto os fiéis leigos batizados observam, ou são deixados à própria sorte na descoberta de como orar em casa, ou como orar isoladamente.
Na crise, a solução é uma solução extraordinária que não devemos elevar ao nível do ordinário.
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A liturgia é um ato do Povo de Deus, e o povo deve estar, de fato, presente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU