21 Abril 2020
Quando em tempos de COVID-19 e quarentena global tudo parece ser incerteza, um grupo de pensadores de diversos campos disciplinares (filosofia, sociologia, história, comunicação, psicologia, arte, economia, educação e ecologia) tentam lançar luzes sobre as condições que tornaram a pandemia possível, as múltiplas reações estatais e os possíveis desenlaces.
É o caso de Reflexiones para un mundo post-coronavirus, título do último texto da socióloga Maristella Svampa, publicado no compêndio La fiebre. Pensamiento contemporáneo en tiempos de pandemia da editora ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio).
Em seu texto, a pesquisadora e autora de diversos livros – Chacra 51. Regreso a la Patagonia en los tiempos del fracking e As fronteiras do neoextrativismo na América Latina. Conflitos socioambientais, guinada ecoterritorial e novas dependências, entre outros – analisa os aspectos ecológicos, políticos e sociais que serviram como terreno fértil para a proliferação do vírus. E embora realize uma crítica profunda em relação às diferentes respostas estatais, o texto de Svampa se propõe a um objetivo nesses tempos: pensar horizontes possíveis, a partir de baixo e com uma chave política, social e ecológica.
A entrevista é publicada por Canal Abierto, 18-04-2020. A tradução é do Cepat.
Ao que se refere quando em seu artigo no livro ‘La fiebre’ fala de um “Leviatã sanitário”?
Em primeiro lugar, é preciso dizer que estamos em uma encruzilhada civilizatória que colocou em xeque toda a humanidade e o planeta, como nunca antes. Existiram pandemias em outros tempos, mas nunca com esse alcance global: mais de um terço da população mundial, hoje, está em quarentena.
Há um regresso do Estado que tem uma dupla face. Por um lado, e retomando a fórmula de Thomas Hobbes, podemos falar de um Leviatã sanitário que se levanta em todos os países, com um sistema de disciplinamento para evitar o contágio. Neste sentido, são vários os autores que vêm insistindo na consolidação de um estado de exceção com a promoção de uma espécie de “êxito” em países asiáticos e, sobretudo, na China. Tudo isso, associado ao avanço da sociedade digital, o big data e um controle muito mais fechado dos indivíduos. Em nossos países periféricos, o estado de exceção surge por meio da proliferação de forças repressivas, sobretudo nos territórios mais vulneráveis que – em muitos casos – implica a flagrante violação de direitos.
Por outro lado, vemos um Estado que retorna à intervenção social, na contramão do que foi aconselhado pelo neoliberalismo, nas últimas três décadas, e que mostra o fracasso das políticas de ajuste.
Não se deve esquecer que estamos diante de uma fabulosa recessão, cujos resultados ainda não estamos vivendo. Um terço do Produto Interno Bruto mundial caiu e muitos antecipam essa depressão como muito pior que a dos anos 1930, a da Segunda Guerra Mundial, ou a de 2008/2009.
Na América Latina, 53.1% da população não é assalariada formal, mas, sim, setores informais que serão os mais afetados nessa conjuntura. Na China, os números já são enormes, com 200 milhões de trabalhadores migrantes que foram despedidos e devem voltar para seus lugares de origem. Na Índia, uma situação semelhante, mas com um número que atingiria os 100 milhões. A situação é realmente chocante e em poucos meses viveremos de cheio uma das maiores recessões econômicas que o mundo já conheceu. Efetivamente, é fundamental a função que o Estado possa ter favorecendo os mais vulneráveis e colocando limites às demandas dos setores mais concentrados.
Acredita que se trata de uma crise que atinge por igual os ricos e os pobres? Como interpreta este apelo à contribuição solidária dos setores mais ricos?
A crise costuma desnudar as grandes desigualdades sociais, não só em países periféricos, como também nos centrais. É interessante voltar à crise de 2008 e ver como esta se resolveu, ou seja, a favor dos setores financeiros e dos capitais concentrados. As reconfigurações sociais, políticas e econômicas foram – com toda clareza – negativas. Não é por acaso que com pouco tempo, em 2011, surgisse o movimento Occupy Wall Street, que contrapunha os 99% da população ao 1% dos super-ricos. Desde então, as desigualdades cresceram, o que foi demonstrado com clareza por trabalhos como o de Thomas Piketty.
Nessa crise aberta pela pandemia, não há margem para aprofundar as desigualdades. Não há opção: é o colapso civilizatório, por meio do aprofundamento das desigualdades e o capitalismo do caos, ou então o Estado intervém a favor das maiorias, colocando limites aos setores mais concentrados e buscando redistribuir a riqueza.
Estamos diante de um dilema: ganham os de sempre e caminhamos para um colapso generalizado ou construímos um horizonte novo que articule justiça social e justiça ambiental, porque a próxima crise será – sem dúvida – climática.
Por onde se começa a construir esse novo mundo?
No imediato, e ainda nesse contexto horroroso, necessitamos de um Estado ativo com uma bateria de políticas públicas que implique uma redistribuição do poder social. É importante revitalizar e resgatar experiências que há tempo vêm crescendo a partir de baixo, no calor das resistências.
Algo interessante para pensar hoje é que a crise coloca em evidência a importância do paradigma do cuidado, algo que as ecofeministas e os feminismos populares ressaltaram nos últimos anos. Quando falamos do paradigma do cuidado, colocamos no centro a ideia de cuidado, de respeito, de reciprocidade, de complementaridade. Ou seja, que o ser humano não é autônomo, mas depende dos outros e de seu vínculo com a natureza.
Hoje em dia, por exemplo, devemos valorizar o esforço que todo o setor de saúde faz, esses profissionais da saúde que sempre foram desvalorizados no calor de uma mercantilização das reformas liberais dos últimos anos. Virão novas pandemias e uma crise da mudança climática, e nada melhor que esses profissionais da saúde para dar conta dessa relação estreita entre saúde, meio ambiente e cuidado.
Outro elemento são as dimensões globais das intervenções que os Estados terão que encarar. Hoje em dia, por exemplo, é central o debate sobre a renda universal cidadã. Uma proposta impulsionada por organizações como a Central de Trabalhadores da Argentina, que antes parecia pouco viável em sua instrumentação, e que hoje surge com aspectos de verossimilidade ou necessidade para responder à crise que vem. Ou seja, que só pelo fato de existir, a pessoa tenha direito de receber uma renda independente do salário. Um direito à vida para além da retórica.
Esta crise torna necessário o que antes parecia inviável: impostos às fortunas, a renda universal cidadã, reforma fiscal progressiva, transição socioecológica.
Considera possível pensar uma transformação destas megalópoles, como Buenos Aires, que funcionam como um terreno fértil para essas epidemias?
Esses tempos de antropoceno, em que está em jogo a própria vida do planeta, são tempos de urbanoceno. As pessoas estão aglomeradas em grandes cidades abertamente insustentáveis, social e ambientalmente. Quando falamos em modificar a matriz produtiva e energética, estamos pensando em uma mudança no sistema de relações sociais, onde a forma como os bens circulam e são consumidos também deve ser diferente.
Até mesmo em um país tão repleto de soja e transgênico como a Argentina, vem se multiplicando as experiências de agroecologia que têm a ver com um novo modo de habitar o território, vincular-se com a natureza e construir uma história por fora das grandes cidades. De agora em diante, essas experiências não apenas devem surgir de baixo, como também do Estado.
Nessas semanas de quarentena global, cada um de nós vem alimentando uma espécie de Grande Irmão com o qual dizemos, falamos e fazemos videochamadas em redes. Por sua vez, toda essa informação nos permite estar alertas e conscientes do que acontece e, sobretudo, do que possa vir a ocorrer...
No mundo atual, as problemáticas são complexas. Como você bem disse, é preocupante a forma como vamos deixando rastros e engrossando essas gigantescas plataformas digitais privadas. Mas, ao mesmo tempo, permite nos comunicar e dar uma dimensão social a isso que vivemos, e assim construir uma esfera pública sobre esses problemas.
Por esses dias, muitos leram ou releram A Peste de Albert Camus. Em uma parte do texto, quando declaram a peste na cidade de Oran (Argélia), proíbe-se a comunicação entre pessoas, inclusive por carta. Nós estamos longe desse cenário. Estamos nos comunicando e hipercomunicando por meio de plataformas de videochamadas e redes sociais.
No entanto, esta globalização – com todos os seus aspectos negativos – permitiu que possamos manter uma conversa pública que, de outro modo, teria se rompido.
Esta globalização e intercomunicação também permitiu a rápida difusão da pandemia. Neste sentido, acredito que o mundo que se aproxima será diferente em relação à forma como nos movimentamos. Por exemplo, acredito que muitas pessoas começarão a repensar se é necessário ou não fazer esses grandes traslados de uma ponta a outra do planeta, a tomar consciência da pegada de carbono que a aviação deixa (equivalente a 3% das emissões globais).
Irá mudar a forma de trabalhar, com um teletrabalho e condições de maior flexibilidade que será necessário colocar em discussão a partir de baixo.
Será necessário construir algo diferente entre todos, a partir de baixo, porque o mundo que vem será diferente. Essas grandes crises produzem enormes despertamentos.
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“Esta crise torna necessário o que antes parecia inviável”. Entrevista com Maristella Svampa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU