06 Abril 2020
"Como a paixão envolvente de Deus pelos seres humanos se manifesta? De muitas maneiras, uma das quais é certamente o esplêndido ímpeto, pessoal e profissional, além de qualquer dever de trabalho, de muitos profissionais sanitários e sociais, engajados em apoiar, entre várias dificuldades, milhões de semelhantes na batalha contra o contágio e todas as suas consequências físicas e psicológicas", escreve Ernesto Borghi, presidente da Associação Bíblica da Suíça Italiana, coordenador da região da Europa Meridional e Ocidental da Federação Bíblica Católica e da formação bíblica na diocese de Lugano, em artigo publicado por Viandanti, 04-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Para quem procura ser cristão, a semana que vai do domingo das Palmas ao domingo de páscoa é, como se sabe, a mais importante em termos religiosos do ano inteiro. Numa lógica "didático-pedagógica" evidente, a liturgia apresenta o epílogo decisivo da existência do Nazareno, articulando em uma semana a parábola delineada pela entrada "triunfal" em Jerusalém até o momento surpreendentemente alegre da anunciação da ressurreição e das aparições do Ressuscitado.
"Paixão" no sentido de estar apaixonado e sofrimento. Basta ler as versões sinópticas do Evangelho [1] para ter a percepção de que o ministério de Jesus de Nazaré em Jerusalém se desenvolveu em um tempo consideravelmente mais amplo que alguns dias, enquanto parece historicamente realista imaginar que o intervalo entre a Última Ceia e o anúncio da ressurreição ocorreu em três dias. Nesse contexto, qual é o fundamental denominador comum dessa semana, de grande ressonância individual e coletiva? Pode parecer trivial, dito dessa maneira, mas é a "paixão" do Deus de Jesus Cristo pelos seres humanos, começando com aquela vivida pelo Nazareno por todos aqueles que ele encontrou durante a sua vida. É "Paixão" no sentido de estar apaixonado e "paixão" como sofrimento: do amor constante e concreto pelos seres humanos à dor indispensável para ser fiel à escolha de abraçar a todos, diríamos hoje, sem "se" nem "mas". Tal discurso parece claro, se relembrarmos brevemente alguns aspectos das leituras propostas pelo domingo de Palmas e no tríduo pascal, levando em conta as diferenças encontradas entre o rito romano e o rito ambrosiano.
O servo sofredor. Domingo de Palmas, os textos retirados do livro de Isaías (cf. 50, 47; 52,13-43,12), as passagens das epístolas (cf. Fil 2,6-11; Hb 12,1b-3) e as evangélicas (cf. Mt 26,14-27,66; Jo 11,55-12,11) delineiam - fundamental é a interpretação / releitura que as origens cristãs propõem de algumas raízes judaicas – os aspectos de dedicação e sofrimento de quem está prestes a dar a vida. A eloquência sintética da imagem do servo sofredor do Senhor e o poder expressivo da passagem da carta aos Filipenses como aquela emblemática de Hb 12,1b-3 servem de introdução, em modo diverso, mas igualmente intenso, às duas passagens do Evangelho - no rito romano Mt 26,14-27,66; no rito ambrosiano Jo 11,55-12,11 - capazes de percorrer, o primeiro narrativamente, o segundo em perspectiva, toda a parábola existencial do Nazareno até sua morte.
Na Quinta-Feira Santa, no contexto da rica proposta bíblica dos dois ritos, emerge a memória paulina da Última Ceia - o texto neotestamentário mais antigo a respeito - e o sentido da doação de Jesus na lógica do serviço, tanto na lavagem dos pés quanto no arco narrativo, que vai de Mateus, os preparativos da última refeição com os discípulos, até a trágica negação de Pedro. Aquela ceia é, ao mesmo tempo, a circunstância culminante de muitas ocasiões de convívio, de cunho social e cultural, vividas pelo Nazareno nos anos anteriores e o ponto de partida do caminho para o clímax, da morte à vida, de sua existência.
Tanto no rito romano quanto no ambrosiano, esse discurso pode ser percebido efetivamente. E, em continuidade com o que dramaticamente altruísta os dois diferentes textos do Evangelho apresentam, torna-se evidente – pode ser notado, por contraste, também considerando o texto do profeta Jonas, primeira leitura da liturgia ambrosiana deste dia - que o coração do valor celebrado é um escolha ética precisa: evidenciar que o sentido fundamental da existência daqueles que pretendem ser radicalmente humanos é a disposição de se disponibilizar aos outros até o fim, quando essa opção realmente passa a marcar a orientação fundamental da própria vida.
Na Sexta-feira santa, algumas passagens do livro de Isaías sempre relacionadas ao servo sofredor do Senhor - 52,13-53,12 no rito romano, a mesma passagem, precedida por 49,24-50,10 no rito ambrosiano - são a introdução essencial e imprescindível, o enraizamento cultural e espiritual correto e adequado à reflexão sobre a paixão e a morte da cruz do Nazareno [3].
O dado do sofrimento de Jesus é obviamente o dominante, de acordo com as categorias de raiz judaica, e na perspectiva do cumprimento das Escrituras, do plano divino sobre o evento do próprio Nazareno.
A presença das mulheres, em total ausência de todos os homens que haviam acompanhado Jesus em seu ministério nas ruas da Galileia, Samaria e Judeia, conclui o relato de Mateus.
Em João, na morte do Filho de Deus e nas fases imediatamente seguintes estão presentes, além do componente feminino, os homens que, por várias razões, tiveram motivos importantes para "ficar com ele": o discípulo amado por Jesus (= João, embora não haja indicação explícita do nome); José de Arimateia e Nicodemos. E a ausência daqueles que deveriam ter razões básicas para não fugir, denominador comum nas versões canônicas do Evangelho, parece, além da historicidade do fato, ser uma escolha narrativa muito eloquente.
Questiona de perto a qualquer um que, desde o primeiro século d.C. até hoje, se considerasse discípulo de Jesus Cristo com facilidade excessiva ...
Páscoa: os itinerários das leituras da vigília culminante da liturgia e da vida cristã são estimulantes e intensos, com diferenças significativas entre os dois ritos católicos mencionados até agora (o romano é mais sugestivamente profético-existencial, aquele ambrosiano é mais marcadamente histórico-narrativo). O significado geral das leituras substancialmente "comuns", desde o início da vigília até a anunciação da ressurreição, é realmente eloquente. Quais são?
A narrativa da criação (Gn 1,1-2,2 ou 2,3a), de Isaque (Gn 22,1-18 ou 22,1-19) de uma sequência retirada de Is 54-55 (54, 5-14 / 55,1-11 no rito romano, Is 54,17c-55,11 naquele ambrosiano) e da primeira parte de Mt 28 (v. 1-7 no rito romano, v. 1-10 no ambrosiano).
Para além de qualquer exagero interpretativo, nota-se como o relacionamento entre Deus e a humanidade se fundamente na confiança divina no ser humano e no pedido de construir a vida humana em uma confiança semelhante em relação ao Divino da criação, do triunfo da vida sobre a morte. Nesse sentido a presença, em ambos os contextos litúrgicos desta passagem de Isaías é realmente interessante:
"5 - Eis que chamarás a uma nação que não conheces, e uma nação que nunca te conheceu correrá para ti, por amor do Senhor teu Deus, e do Santo de Israel; porque ele te glorificou.
6 - Buscai ao Senhor enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto.
7 - Deixe o ímpio o seu caminho, e o homem maligno os seus pensamentos, e se converta ao Senhor, que se compadecerá dele; torne para o nosso Deus, porque grandioso é em perdoar.
8 - Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos, diz o Senhor.
9 - Porque assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos.
10 - Porque, assim como desce a chuva e a neve dos céus, e para lá não tornam, mas regam a terra, e a fazem produzir, e brotar, e dar semente ao semeador, e pão ao que come,
11 - Assim será a minha palavra, que sair da minha boca; ela não voltará para mim vazia, antes fará o que me apraz, e prosperará naquilo para que a enviei”.
O relacionamento que o Deus de Jesus Cristo propõe às mulheres e aos homens da antiguidade, bem como aqueles do nosso tempo, com todas as diferenças culturais e sociais e religiosos do I século XXI d.C., encontra enraizamento nesse texto, intensamente judaico e altamente existencial, uma série de indicações educacionais sob o perfil do exercício da liberdade pessoal e coletiva e do discernimento do bem e do mal nos eventos cotidianos.
E a passagem do Mt 28 propõe [4], à fé daqueles que a ouvem nessas ocasiões litúrgicas culminantes, mas também em qualquer outra ocasião possível, o anúncio decisivo: quem retornou à vida da morte é o mesmo que viveu para os outros toda a existência. O Deus de Jesus Cristo venceu a morte não porque, a partir daquele momento em diante, fisicamente falando, nunca mais se deva morrer. Sua história, que atingiu seu auge com a notícia de sua ressurreição, mostra que o amor mantém as relações para além do fim biológico e esse amor pode ser transformado na lógica fundamental da vida cotidiana pessoal.
Digo isso com particular referência aos dias que estamos passando nesses primeiros trágicos meses de 2020. Eles têm uma conotação de "paixão" muito além do que aconteceu em muitos anos anteriores. Como a paixão envolvente de Deus pelos seres humanos se manifesta? De muitas maneiras, uma das quais é certamente o esplêndido ímpeto, pessoal e profissional, além de qualquer dever de trabalho, de muitos profissionais sanitários e sociais, engajados em apoiar, entre várias dificuldades, milhões de semelhantes na batalha contra o contágio e todas as suas consequências físicas e psicológicas.
Não é só isso. A paixão de Deus pela humanidade se revela na multiplicação de situações nas quais se entrelaçam as relações humanas há tempo adormecidas, muitas vezes, por um longo tempo, na proliferação de ações nas quais a solidariedade efetiva pela existência dos outros encontra caminhos, talvez impensáveis antes dessa terrível contingência.
Não abriguemos ilusões fáceis e esperanças desmotivadas: pode ser que, quando estivermos fora desse escuro túnel, o egoísmo desumano, feito de idolatria ao dinheiro e ao sucesso exterior, volte a emergir em toda a sua negatividade, como se nada tivesse acontecido.
Mas, nesta semana de 2020, todos aqueles que realmente acreditam que Jesus de Nazaré ressuscitou, são ainda mais incentivados a assumir um empenho maior do que no passado: fazer todo o possível para abrir caminho para oportunidades crescentes, cada vez mais inteligentes e apaixonadas, de um amor que vença a morte e continue constantemente vencendo-a.
Por quê?
A razão é simples de entender: esse amor é o motivo que pode ajudar os que estão em dificuldade, seja esta qual for, a suportar sua condição difícil e pode construir momentos de alegre celebração da vida ... E como há necessidade, de uma e outra coisa hoje, está realmente sob os olhos e diante do coração de todos...
[1] Mc 11,1-16,8; Mt 21,1-28,10; Lc 19,28-24,12.
[2] Qualquer pessoa que deseje aprofundar a relevância desses textos do livro de Isaías e a relação entre essas passagens do primeiro evangelho e a figura de Jesus de Nazaré, além de poder usar uma bibliografia mais ampla, pode visitar o canal do youtube “Associazione Biblica della Svizzera Italiana” no título “Ciclo: il servosofferente del Signore”. Ali encontrará três conferências sobre o tema em questão.
[3] No rito ambrosiano, é proposta em Mt 27,1-56 e no rito romano, de acordo com a narração de Jo 18,1-19, 2.
[4] Qualquer pessoa que deseje aprofundar a leitura de Mt 26-28 com uma abertura de horizonte entre palavras bíblicas, artes figurativas e tradições musicais, pode visitar, a partir de 7 de abril de 2020, o canal do youtube "Associazione Biblica della Svizzera Italiana", no título "Per leggere Matteo 26-28: testi evangelici, immagini, tradizioni musicali".
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Semana Santa: a paixão de Deus pela humanidade, da humanidade por Deus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU