02 Abril 2020
No longo período de isolamento do coronavírus, o filósofo e pensador francês Michel Onfray nos convida a ler os estoicos. E ele fala sobre sua paixão pelos moralistas do século XVII. A distância social imposta "pode ser uma aterradora revelação do vazio existencial que habita algumas pessoas que construíram suas vidas mais sobre o parecer que sobre o ser".
A entrevista é de Alexandre Devecchio, publicada por La Repubblica, 31-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nestes dias difíceis que nos colocam à prova, que leituras iluminadas recomenda? Que obras e quais os pensadores mais sensíveis que você está lendo?
Para refletir sobre o coronavírus o melhor que podemos fazer é recorrer a Nietzsche, em particular ao seu método genealógico. O filósofo alemão, de fato, nos ajuda a analisar a questão da causalidade em uma época que gosta muito de ativar as categorias do pensamento mágico. As interpretações de conspiração se multiplicam, e também as versões religiosas do que está acontecendo: a epidemia seria uma invenção do capital para se beneficiar, uma criação dos estadunidenses para acabar com a supremacia chinesa. Aliás, seria um projeto chinês, mas, ao mesmo tempo, de acordo com os irmãos [muçulmanos] de Tariq Ramadan, seria um castigo divino pela desordem dos costumes da nossa época. Não faltam absurdos. A filosofia contribui para ativar relações racionais de causa e efeito descobertas pelos filósofos atomistas, materialistas e epicuristas da antiguidade. Quanto aos autores para ler, não há dúvida de que é necessário levar em consideração a filosofia da Roma antiga, uma escola de sabedoria prática existencial. Refiro-me a Plutarco e Lucrécio, Musônio Rufo e Sêneca, Marco Aurélio e Cícero. Em resumo, os epicuristas e os estoicos.
O que estamos vivenciando traz à tona a natureza humana: incivilidade, egoísmo, pilhagem em alguns casos, mas também solidariedade e abnegação. A filosofia pode nos ajudar a entender essas reações?
Sob a influência dos pensadores do desconstrucionismo, vindo primeiro do determinismo marxista e depois freudiano, contra toda lógica e até mesmo toda forma de bom senso, a tendência importante no momento é a de negar a natureza humana. Pois bem, a natureza humana existe. É suficiente simplesmente ler ou reler La Fontaine, ou os moralistas franceses do Grand Siècle francês, o XVII, ou La Rochefoucauld ou La Bruyère. Tudo já está em suas páginas. A epidemia não tem nada a nos ensinar que o fabulista francês ainda não nos tenha ensinado. Certamente, e não por acaso, havia estudado o grego Esopo e o romano Fedro. Então, vamos dar uma olhada. No âmbito de minha "Breve enciclopédia do mundo", estou trabalhando em um amplo livro que reabilite a natureza humana, "Alma". É um livro que não deixará de convidar a ler Darwin, que nos lembra ou nos ensina, conforme o caso, que basicamente somos macacos! Nunca se deve esquecê-lo, se quisermos evitar de divagar filosoficamente!
Você sempre defendeu a filosofia prática, especialmente a filosofia romana. O que fala de útil a propósito da dor?
Que é extremamente violenta e, portanto, nos leva à morte, ou não é, e em tal caso podemos intervir nela como representação sobre a qual a vontade tem poder. Em outras palavras: eu não escolho ficar doente, mas posso escolher, no caso de ficar doente, de não conceder à doença nada mais do que ela já toma. A vontade não pode tudo, mas também não é verdade que não pode nada. Na verdade, a vontade pode fazer muito. Em uma época em que a vontade não é mais ensinada, em que se recorre a expedientes de vários tipos - drogas, antidepressivos, ansiolíticos, pílulas para dormir, chás de ervas, óleos essenciais, homeopatia, coach, psicólogos, consultores para desenvolvimento pessoal e assim por diante - devemos ter em mente que querer é poder e que a vontade é uma forma de poder que se constrói, exatamente como uma ferramenta eficiente e de alto desempenho.
E o que diz a filosofia romana da morte?
Se há morte, nós não estamos mais ali e que se estamos vivos, a morte ainda não está ali. A morte também é uma representação. Sua realidade é um momento comparável a uma espécie de deslize não desagradável - veja como Montaigne fala sobre isso, quando em seus "Ensaios" fala sobre seu acidente a cavalo -, mas o sofrimento que causa provém da ideia que se faz dela. Você morre em poucos segundos, mas pode passar várias décadas de vida apodrecendo no presente com o terror da morte. Portanto, é necessário pensar na morte como algo que virá, inclusive como futuro, e deixá-la onde está. Nos minutos em que chegar, finalmente terá chegada a hora de acertar as contas com ela: portanto, permanece válido o conceito de que, até que a morte não chegue realmente, estamos sempre aqui, vivos, e devemos nos regozijar como nos regozijarmos do amanhecer sobre o mundo.
A moral romana também é uma moral de coragem. Essa crise suscita uma moral de coragem? E vice-versa, talvez, também uma de pusilanimidade?
É evidente que a coragem e a covardia nestes tempos terríveis encontram uma oportunidade de se manifestar. A coragem é rara, mas é incrivelmente difundida entre os profissionais de saúde, composto por um exército de pessoas que partem todos os dias para a frente sem armas e sem capacete, sem meios de defesa, enquanto lá, para onde eles vão, zunem as balas. Quanto à pusilanimidade, é compreensível: ninguém é obrigado a ser um herói, mas certamente podemos acrescentar que todos poderiam ao menos fazer uma tentativa de sê-lo.
Esses são argumentos que você se questionou em todos os momentos dramáticos de sua existência, especialmente após o ataque cardíaco e o derrame. O que você leu naqueles períodos difíceis?
Todas as vezes, Marco Aurélio. Nos bolsos das calças do uniforme, quando eu estava na infantaria da marinha, carregava seus "Pensamentos" comigo, e também fiz isso no meu quarto de hospital, quando tive um ataque cardíaco aos 28 anos de idade. Muitas vezes levava comigo os "Pensamentos" nos corredores do hospital, onde durante dezessete anos acompanhei minha companheira, que mais tarde morreu de câncer. E há dois anos, quando sofri um derrame, pedi que me trouxessem esse livro. No entanto, eu estava tão fora de forma que não conseguia lê-lo, então o ouvi no meu iPhone. Não sei mais qual ator fazia a leitura, mas lembro de segurar o telefone apoiado no meu peito nu, fechar os olhos e ouvir Marco Aurélio que falava comigo... .
Até escrever, sem dúvida, foi um refúgio para você. Acredita que possa ser um exercício praticável por todos?
Eu acho que sim. Nesse longo período de isolamento que nos é imposto, na verdade podemos ler um dos autores romanos de quem falei: as 'Cartas a Lucílio' de Sêneca, por exemplo. Podemos ler e escrever notas sintéticas em um caderno com uma cor e depois comentá-las com outra. Ao fazer isso, podemos entrar na intimidade do texto, aprender a sintetizar o pensamento alheio e, consequentemente, facilitar a memorização desse pensamento. Nesta circunstância, pode-se, portanto, trabalhar sobre si mesmos.
Aliás, você sempre repete que não escreve para seus leitores, mas para si mesmo ...
Sim, para resolver meus problemas pessoais. Para esclarecer meus pensamentos, torná-los mais claros, mais legíveis, mais visíveis e, portanto, mais facilmente enfrentáveis e vivíveis. Ler filosofia é absolutamente inútil, se em primeiro lugar não ajuda a viver.
Em certo sentido, o isolamento social obriga os indivíduos a ficarem sozinhos consigo mesmos. Pode haver consequências positivas nisso?
Pode ser uma situação de terrível revelação do vazio existencial que habita algumas pessoas que construíram suas vidas mais no parecer do que no ser. Para muitas pessoas é muito difícil saber viver sozinhas. Silêncio e solidão assustam aqueles que adoram viver no barulho, na gritaria, no movimento incessante, na confusão. Quanto a mim, moro sozinho e, de vez em quando, consigo passar dias inteiros sem ver ninguém, em silêncio e solidão, lendo, escrevendo e trabalhando com profunda alegria. Minha esposa também mora sozinha, em sua casa, e juntos compartilhamos apenas alguns momentos escolhidos, desejados e quistos. Para aqueles que são habitados pelo vazio abismal, a experiência desse isolamento será um verdadeiro trauma... .
É possível ser livres e presos ao mesmo tempo?
Sim, claro. A liberdade não é uma questão de liberdade de movimento; caso contrário, os peixes na água, os pássaros no céu e as cobras no chão seriam prisioneiros. Liberdade significa autonomia, a arte de criar para si e se dar regras pessoais. Os normandos do passado usavam uma expressão magnífica: convidavam a ser ‘as majestades de si mesmos’. Quem não for 'majestade de si mesmo’', isto é, senhor de si mesmo, não é livre.
Como a solidão ou o tédio podem ser derrotados?
Com a ação, o que também pode significar a contemplação. É possível estar sozinhos mesmo com o próprio marido, esposa, filhos. E temo justamente que muitos vivam e experimentem a solidão. É preciso estar ativo. Ler é uma atividade, escrever é outra. Não se deve deixar que a própria vontade não tenha um fim.
A nossa sociedade poderá sair fortalecida, paradoxalmente, desta dura prova?
Eu acho que não. Essa experiência foi imposta em massa, não foi escolhida em total liberdade. Quebrará muitas coisas e muitas pessoas: casais frágeis, pessoas frágeis, temperamentos e caráteres frágeis, estruturas mentais frágeis. Não se pode passar impunemente, e tão duramente, de uma sociedade permeada pelo barulho onipresente, pela hiperatividade incessante, pela excitação permanente, pelo ir e vir contínuo, pelo exibicionismo perpétuo para o silêncio, a calma, a solidão, o isolamento, a invisibilidade sem que tudo isso cause danos incalculáveis... .
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É assim que a filosofia pode nos ajudar nestes momentos. Entrevista com Michel Onfray - Instituto Humanitas Unisinos - IHU