17 Fevereiro 2018
Tariq Ramadan, o intelectual suíço acusado na França de estuprar duas mulheres e em prisão preventiva desde a semana passada, considera-se o equivalente, "na paisagem intelectual, a um minarete [a torre de uma mesquita] na rua". Ou seja, um objeto estranho e incômodo no Ocidente. "Com frequência recebi críticas muito emotivas e fui alvo de projeções que às vezes me divertiram e às vezes francamente me inquietaram", lamenta Ramadan (Genebra, 1962) em seu livro Western Muslims and the Future of Islam ("muçulmanos ocidentais e o futuro do islamismo", inédito no Brasil). Por isso se compara a um minarete em terras cristãs. "Presente, instalado em nós", resume, "e aparentemente tão diferente de nós".
A reportagem é de Marc Bassets, publicada por El País, 14-02-2018.
O périplo público de Ramadan – uma das figuras mais controversas do islamismo contemporâneo, admirado por uns como uma ponte necessária entre os muçulmanos e a modernidade; desprezado por outros como um pregador que usa uma linguagem ambígua para transmitir uma mensagem radical – pode estar chegando ao fim. Em livros, entrevistas e conferências, ele costuma se apresentar como vítima de todo tipo de campanhas e conspirações, embora afinal sempre tenha saído mais ou menos ileso e, bem ou mal, tenha mantido sua reputação: acaba de publicar um livro de conversas com o respeitado sociólogo Edgar Morin, e continua figurando como professor de Oxford no site da universidade, embora esteja licenciado. Tariq Ramadan, neto de Hassan al Banna, o fundador da Irmandade Muçulmana, enfrenta hoje graves acusações, de uma violência perturbadora: a enésima campanha de desprestígio alimentada pela islamofobia, segundo sua linha de defesa, embora a mais dura e possivelmente a definitiva; ou a prova, também definitiva e flagrante, da perversidade moral e da diabólica capacidade manipuladora que seus detratores lhe atribuem.
O professor se apresentou à polícia em Paris no início do mês, depois de saber que havia uma ordem de prisão preventiva contra ele. Ele é acusado por mulher de cerca de 40 anos, com deficiência física, que afirma que ele a estuprou e a espancou em um hotel em Lyon em 2009. Ela teria identificado, como prova de seu testemunho, uma pequena cicatriz na virilha dele. Ramadan reconheceu um "relacionamento de sedução" com a mulher, mas nega ter mantido qualquer tipo de relação sexual com ela. Em outubro, ele já havia sido acusado por outra mulher, Henda Ayari, de estupro em um hotel de Paris em 2012.
Paul Berman, um dos autores que dissecaram o pensamento de Ramadan e sua habilidade para seduzir os intelectuais progressistas, descreveu-o no ensaio A Fuga dos Intelectuais como "um homem representativo de nossa época" a quem "o destino colocou no lugar exato para onde convergem meia dúzia de conflitos e controvérsias". Até agora essas polêmicas tinham sido de caráter religioso e político. Como ser um bom muçulmano em uma democracia ocidental? É compatível a tradição integrista de seu venerado avô com o pluralismo político e religioso? Que papel devem ter os intelectuais muçulmanos ante fenômenos como a discriminação da mulher? Não são personalidades como Ramadan, que proclamam a não violência e o respeito ao estado de direito, os melhores aliados de Governos laicos na hora de unir as sociedades multiculturais e fomentar a integração e a participação das minorias? Estes eram os "conflitos e controvérsias" que até algumas semanas atrás faziam de Ramadan uma figura central no debate sobre o islã ocidental. O "destino" –ou, melhor dizendo, a denúncia de várias mulheres, ou os atos de Ramadan, se as denúncias se revelarem verdadeiras– o coloca no centro de outra controvérsia: a do fim do silêncio e das denúncias sobre os assédios sexuais por parte de homens poderosos. "O homem", dizia em 2010 Berman em alusão a Ramadan, "é um ponto de colisão". Continua sendo.
"Sou suíço por nacionalidade, egípcio por memória, muçulmano por religião, europeu por cultura, universalista por princípio, marroquino e mauriciano por adoção", se define Ramadan. Seu pai, Said Ramadan, "foi o encarregado até sua morte de difundir o islã da Irmandade Muçulmana na Europa", escreve Caroline Fourest em Frère Tariq. Discours, Stratégie et Méthode de Tariq Ramadan ("Irmão Tariq. Discurso, estratégia e método de Tariq Ramadan"), outro ensaio muito crítico, como o de Berman, ao intelectual muçulmano. "Sua mãe, Wafa al-Banna, não é outra senão a filha preferida do fundador da Irmandade Muçulmana, Hassan al-Banna, o homem a quem se referem todos os islamistas, incluindo os mais extremistas."
"Não sou membro da Irmandade Muçulmana e não sou islamista", diz Ramadan a Morin em L'Urgence et l'Essentiel ("a urgência e o essencial), o livro assinado por ambos e publicado em outubro de 2017. Inicialmente professor de colégio, comprometido com as causas chamadas de altermundialistas, autor de uma tese de filosofia intitulada Nietzsche, Historiador da Filosofia, decidiu retomar os estudos sobre o islã e passar a viver com sua mulher e filhos no país de seus pais, o Egito. "Tratava-se de assumir minha religião, de explicá-la e, sobretudo, de mostrar tudo o que temos em comum com o judaísmo, o cristianismo, mas igualmente com os valores promovidos por tantos humanistas, agnósticos e ateus", explicou em Western Muslims and the Future of Islam.
Depois da fase egípcia, no início dos anos noventa regressa à Europa. Começa a crescer, então, sua fama de reformista que explicará aos muçulmanos europeus que "o islã é uma grande e nobre religião, mas que todos os muçulmanos, ou as sociedades majoritariamente muçulmanas, não estiveram nem estão –nem de longe– à altura dessa nobreza, tanto na história como na época contemporânea". "Impõe-se uma reflexão crítica sobre nossos princípios, nosso olhar sobre o outro, as culturas, as liberdades e a situação das mulheres", acrescenta no livro citado.
Para muitos, Ramadan, que fala em tom calmo e raciocina com as referências e os argumentos de um intelectual francês, será o antídoto ao islã radical nos subúrbios franceses e europeus, o pregador que convencerá os jovens muçulmanos da Europa a abraçarem a democracia e se distanciarem do extremismo e da violência. "O herói islâmico tão esperado", escreve Berman, "o pensador religioso que enfim adaptaria o islã ao mundo moderno".
Para outros –o próprio Berman e Fourest, entre uma longa lista de críticos– basta arranhar um pouco para descobrir que é somente uma fachada e que, como escreve Fourest de uma ótica laica, "seus partidários sabem de modo pertinente que Ramadan é um pregador fundamentalista que lhes pede que usem o conceito de cidadania para fazer avançar as ideias da República na direção de mais islã". A ligação com Al-Banna e o islamismo da Irmandade Muçulmana, segundo esta visão, não seria só familiar, mas intelectual. Já em 1995, o Ministério do Interior francês o proíbe temporariamente de entrar no país. O mesmo ocorrerá em 2004, quando tem de anular sua estadia prevista como docente na universidade jesuíta de Notre-Dame (Indiana), pois as autoridades norte-americana lhe negaram o visto de entrada.
Um momento crucial na projeção pública de Ramadan é o debate que mantém diante de milhões de espectadores em 2003 com o então ministro do Interior francês –e mais tarde presidente–, Nicolas Sarkozy, no programa da televisão francesa Cem Minutos para Convencer. Sarkozy lhe joga na cara um artigo no qual atribui a vários intelectuais franceses que defenderam posições pró-israelenses ou apoiaram a invasão do Iraque uma posição que define como "comunitarista", ao manter, supostamente, esses pontos de vista por serem judeus. Depois Sarkozy lhe pede sua opinião sobre a justificativa que Hasni Ramadan, irmão de Tariq, havia formulado para o apedrejamento das mulheres. "Apedrejar uma mulher é monstruoso, não?", lhe pergunta. A resposta de Tariq Ramadan surpreende: "Eu não sou meu irmão, ele tem suas posições. Sobre o apedrejamento, peço uma moratória para que haja um debate entre os muçulmanos". Ramadan considerava que a moratória nestas práticas que ele rechaçava era a melhor maneira de fazer as mentalidades evoluírem até proibi-las definitivamente.
Em poucos minutos Ramadan teve que se defender diante de um temível adversário dialético, como era Sarkozy, de duas questões nas quais era acusado de dupla linguagem: o antissemitismo (ele se declara adversário frontal do antissemitismo) e o tratamento às mulheres (ele se declara feminista). Em Western Muslims and the Future of Islam defende que as mulheres podem "liberar-se no e pelo islã" e ressalta que espancar as mulheres "é contrário aos ensinamentos islâmicos". Agora, duas mulheres muçulmanas o acusam de agressões sexuais e por isso ele está na prisão. O sistema-Ramadan parece abalado. "O islã", escrevia no mesmo livro", "não tem um problema com as mulheres, mas parece claro que efetivamente os muçulmanos têm problemas com elas, e é preciso buscar, a partir do interior, as razões e às vezes as (discutíveis) justificativas".
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Tariq Ramadan, um professor de Oxford encurralado por acusações de estupro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU