27 Março 2020
"A estratégia do isolamento social como contenção do contágio provavelmente vai consolidar a internet (e o ambiente digital) como “a mídia”. Ficando em casa em tempo integral, com wi-fi e acesso permanente, grande parte da população mundial pode simplesmente abandonar as outras mídias (TV aberta, jornal impresso, revistas) e se concentrar nas mídias sociais, aplicativos, web e streaming de vídeo", escreve Pedro Aguiar, jornalista e professor de Jornalismo do Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense – IACS/UFF, 24-03-2020.
Escrevi na passada algumas "previsões" sobre os impactos que a pandemia de coronavírus/COVID-19 pode ter no mercado de comunicação e nos hábitos de consumo de mídia - no Brasil, principalmente, mas não só.
Obviamente, isto é um exercício de futurologia. Talvez a maioria desses pontos seja de tendências preexistentes que apenas podem ser aceleradas. Vários são difíceis de prever, e tudo depende muito da duração do isolamento social adotado pra diminuir a intensidade da epidemia. Se passar rápido – ou porque o surto acabou ou porque o distanciamento não teve adesão suficiente –, isso tudo pode ter sido temporário e voltar logo ao status anterior. Mas, se a estratégia de ficar em casa for bem sucedida, conseguindo achatar a curva de contágio e dilatá-la no tempo, o mais provável é que essas mudanças durem mais, o que pode fazer delas um caminho sem volta na maneira como as pessoas consomem mídia e como as empresas de mídia produzem esses conteúdos.
De todo modo, creio que vale prestar atenção nesses pontos porque podem mudar bastante o nosso campo.
1 – A estratégia do isolamento social como contenção do contágio provavelmente vai consolidar a internet (e o ambiente digital) como “a mídia”. Ficando em casa em tempo integral, com wi-fi e acesso permanente, grande parte da população mundial pode simplesmente abandonar as outras mídias (TV aberta, jornal impresso, revistas) e se concentrar nas mídias sociais, aplicativos, web e streaming de vídeo. Indústrias que já fornecem conteúdo em sistema de streaming ou download, dos videogames à pornografia, devem lucrar em níveis de recorde. Lembremos, claro, que quase 30% dos brasileiros ainda não tinham acesso em 2019, e muitos dos outros ficavam sem banda larga. Mas a ANATEL, prevendo o aumento da demanda residencial (e a queda da comercial), ficou de monitorar as operadoras de telecomunicações para garantir o fornecimento sem quedas ou congestão. O rádio tem tudo para se tornar o segundo meio mais usado, mas ele é muito associado ao movimento (ouvir na rua, no fone, enquanto faz outra coisa), e em casa é possível ouvir tanto rádio de antena quanto formas de rádio digital (podcasts, webrádio, streaming, etc.).
2 – Como sinal disso, vários veículos digitais que têm paywall estão abrindo o acesso gratuito (ou de tudo, ou só de matérias sobre a COVID-19), como o Washington Post, New York Times, Le Monde e Estadão, e várias plataformas de streaming estão abrindo seu conteúdo, desde o Globo Play até outras menos conhecidas, como o SPCine Play, de filmes brasileiros. Mais gente em casa por mais tempo é mais público para assistir a filmes e séries de produções gravadas. O revés disso é o conteúdo do ao vivo no streaming, que deve se limitar a canais que fazem lives (Nerdologia, Pirula, inclusive de comentário e entretenimento, como Felipe Neto, Whindersson e jogadores de videogame, até o Olavo de Carvalho). O streaming de esportes, tipo a DAZN, deve ser muito prejudicado.
3 – Quem também pode não sobreviver é o jornal impresso. A pandemia pode significar a pá de cal no jornal impresso diário. Embora vários jornais sejam entregues em casa para assinantes, uma parte grande – talvez majoritária – é vendida exclusivamente em bancas, especialmente os jornais populares, que tiveram uma onda de crescimento nas primeiras duas décadas do século XXI. Vários dependem da venda em banca. Se as pessoas estiverem fechadas em casa, não vão à banca comprar. Os jornaleiros podem fechar as portas e os jornais em papel podem simplesmente parar de imprimir. O isolamento pode, sim, levar a um aumento residual de assinaturas de exemplares impressos (embora haja aí um temor de que o vírus sobreviva em superfícies como papel), mas o mais provável é que cresçam mais as assinaturas de edições digitais. Jornais diários na Europa e nos países mais afetados podem deixar de sair em papel em pouco tempo, mas aqueles voltados para a classe C também podem sumir antes do fim da pandemia. Revistas provavelmente terão uma queda drástica e acredito que muitas irão desaparecer.
(No fim de semana (21-22/3), a Playboy dos EUA anunciou que pararia de vez de sair em papel. Ontem (23/3), o jornal gratuito Destak, que já andava mal das pernas, parara de circular nas praças fora de SP e deve salários à redação desde julho de 2019, demitiu o que restava da equipe. Hoje (24/3), o Diário de Pernambuco anunciou na primeira página que interrompeu a impressão de seu tabloide, Aqui PE, criado em 2008.)
4 – Na televisão, a Globo sinalizou a gravidade do momento com a decisão inédita e histórica de suspender a gravação de novelas que já estavam no ar, no meio da trama, como a das nove, e mexer na grade de programação de um jeito radical que nunca tinha feito em toda a sua existência. Não só paralisaram a teledramaturgia e o entretenimento – as atividades mais lucrativas do grupo –, como ampliaram muito o espaço do jornalismo, estendendo e emendando telejornais, criando um específico para tratar do coronavírus. As matérias estão mais longas, assim como as entradas ao vivo, e há mais entrevistas de estúdio e bancada. Literalmente da noite para o dia, o telejornalismo da Globo, que sempre foi algo corrido e superficial, virou mais detalhado, mais demorado, mais detido, como é o da BBC.
(A mudança de uso dos microfones das equipes de TV também é algo digno de nota: em lugar de a equipe sair com um principal e um sobressalente, como normal, estão tendo de levar vários, para trocar e higienizar entre cada entrevistado; também estão entregando microfones nas mãos dos entrevistados, o que parece banal mas muda, sim, o discurso oral das pessoas entrevistadas, já que podem controlar o tempo e não esperar mais o "corte" a qualquer momento do repórter que puxe de volta o microfone. Por isso mesmo, nas entradas ao vivo, essa prática ainda não pegou.)
5 – A Record, a Band, o SBT e a RedeTV! também mexeram nas suas grades, embora de forma menos radical. Novelas tiveram gravações suspensas, programas de auditório estão indo ao ar sem auditório, game shows e realities podem ser cancelados e a tendência é o jornalismo ganhar espaço. A Record tirou do ar a Xuxa, um de seus maiores trunfos por audiência, e deu férias a apresentadores idosos do Balanço Geral. A Band, que sempre investiu na programação de esportes, ainda está decidindo o que fazer, já que pode ficar com imensos buracos com os cancelamentos de jogos. O SBT, que sempre foi conhecido por mudar a grade de programação frequentemente, cancelando programas sem dar satisfações e estreando outros de uma hora para outra, demorou mas também aderiu às mudanças.
6 – A estreia da CNN Brasil, bem no fim de semana em que se deu a virada de atitude social em relação à pandemia no país (14-15/3), é um exemplo de plano de mídia certo na hora errada. Eles se programaram para estrear com festa, alegria, tom positivo, e perderam a mão ao insistir nisso enquanto tinham de cobrir uma pandemia com doentes graves e mortes. Além disso, fizeram uma opção por serem suaves politicamente, querendo agradar gregos e troianos, resvalando na chapa-branca, o que foi desastroso para o exato dia em que o presidente foi visto como irresponsável, inconsequente, ao romper o isolamento pra se misturar a manifestantes.
7 – Em outra seara, dá para prever um freio no declínio da web e sua substituição por aplicativos. Afinal, aplicativos foram pensados para serem usados em dispositivos móveis, na locomoção do dia a dia, nas ruas, no transporte, nos vários lugares de deslocamento. Para quem fica no mesmo lugar, aplicativo perde muito do sentido. Pense no que são o Tinder ou o Waze pra quem está em isolamento social. Não adianta de quase nada. Com isso, e tendo a possibilidade de acessar conteúdos na interface da web, que ainda é mais completa e tem mais recursos que o mobile, é bem provável que usuários voltem a acessar sites, nas versões de navegadores, e usem menos os apps de mão. Exceções, claro, são o iFood, o Rappi, o Uber Eats e outros aplicativos de encomendas.
8 – Salas de cinema podem fechar de vez. De um entretenimento de massa, como foi no século XX, o cinema em sala escura no Brasil foi se tornando uma diversão de elite, relativamente cara (se comparada às outras formas de se ver filmes) e dando cada vez mais espaço a blockbusters de ação, aventura e efeitos especiais em detrimento de produções de arte. Ou seja, as salas de cinema hoje exibem muito menos diversidade de gêneros e formatos do que 40, 50 anos atrás, quando não havia óculos 3D nem som surround. Ao mesmo tempo, o formato digital das projeções eliminou a diferença entre ver a imagem na telona e na telinha, o que antes era muito marcado no contraste entre a película e o vídeo. Como resultado, reduziu drasticamente o público, e ir a cinemas barulhentos e fedendo a pipoca virou mais caro e menos interessante do que o baixo custo e o conforto de assistir a filmes em TVs de muitas polegadas no sofá de casa. Se a pandemia perdurar até o segundo semestre, talvez mais e mais salas de cinema em shoppings apaguem agora e não acendam a luz em 2021.
9 – Outro setor da comunicação que deve ser muito afetado é o da publicidade (junto com o marketing). Ainda que os anúncios microdirecionados do Google Ads e Facebook Ads já venham roubando a fatia da mídia no mercado publicitário há uns dez anos, algumas estratégias de visibilidade em massa que sobreviviam eram o patrocínio de eventos esportivos e culturais, de times e atletas e de artistas. Então como vai ser esse marketing sem shows, sem festivais, sem campeonatos, sem feiras, exposições e convenções? Quem vai investir em outdoor e a mídia out-of-home se não tiver ninguém na rua? Se as marcas ficarem sem espaço pra aparecer, vão recorrer exclusivamente ao ambiente digital, quem sabe até de maneira mais agressiva, e talvez não voltem nunca mais para o analógico.
10 – Por último, e não tem diretamente a ver com mídia, acredito que a Amazon e outras empresas do comércio eletrônico vão buscar acelerar a tecnologia de entregas por drones, que já existe em fase de testes nos EUA, o que é muito útil exatamente para atender compradores isolados em casa, minimizando o risco de contágio nas entregas. Talvez isso não chegue ao Brasil, ou talvez fique restrito a bairros ricos, mas nos países centrais isso deve se expandir. De novo, há estudos ainda pouco verificados, como um de Princeton, dizendo que o papelão e o plástico das embalagens poderia ser vetor de transmissão do vírus, mas a Amazon já vem robotizando suas operações de embalagem, armazenamento e logística. Com uma boa higienização e cuidados para manipular e abrir os pacotes, esse tipo de solução deve ganhar força nos próximos meses.
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Dez tendências da mídia que podem mudar com a pandemia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU