Por: Caroline | 29 Abril 2014
A Mídia Ninja é uma rede social de informação alternativa que teve seu ponto mais alto durante as manifestações de protestos contra a Copa do Mundo no Brasil. Entre os temas tratados nesta entrevista, dois de seus idealizadores assinalam a importância da aprovação de uma lei para o fim do monopólio e democratização dos meios no Brasil.
A Mídia Ninja (sigla para Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) é um meio de comunicação composto por colaboradores de todo o Brasil, que trabalham de forma conjunta com o objetivo de difundir a informação “sem cortes, nem censura”. Este coletivo promove um jornalismo militante, independente de setores do poder e surgiu como uma reação contrária à concentração da informação que impera no gigante país tropical. O meio cobrou ações frente às manifestações de junho de 2013, quando milhões de brasileiros se reuniram nas ruas reclamando por um maior investimento em educação e saúde, exigindo uma regulação do preço do transporte público e denunciando abusos policiais e a corrupção nas cúpulas do poder. Há pouco tempo para o início do Mundial, dois de seus criadores, Pablo Capilé e Rafael Vilela, analisaram o panorama político e social do país que sediará a copa e explicam o funcionamento deste emergente meio.
A entrevista é de Julia Goldenberg, publicada por Página/12, 28-04-2014. A tradução é do Cepat.
Fonte: http://goo.gl/Rjuhaz |
Eis a entrevista.
Como nasceu a Mídia Ninja?
(Rafael Vilela) É a consequência de um processo muito amplo que já ocorre há 10 anos no Brasil e que surge do Fora do Eixo, uma rede que nasceu com o objetivo de desenvolver o trabalho de produtores culturais independentes. A lógica do Fora do Eixo é que ele se encontra fora do eixo cultural, do "mainstream" do Brasil. É uma descentralização que se realiza através do suporte dado pela Internet, que permitiu conectar locais que estavam totalmente desconectados. Por meio de trocas conseguimos realizar produções culturais que antes eram impossíveis. O Fora do Eixo conta com 200 coletivos em todo o país. Então esta rede começou a funcionar como um espaço de ativismo e assim criamos a universidade, o banco e o meio dentro deste marco de ação. Desta forma desenvolvemos, graças às redes sociais, um conjunto de estratégias de comunicação aproveitando a tecnologia que já tínhamos disponível e assim encontramos uma rede dispersa em todo o país que precisava de um canal. Em 2011 começamos a cobrir as mobilizações sociais de todo o tipo. Então, todos os colaboradores que já estavam conectados através do Fora do Eixo se articularam em um sentido mais político, em função da rede de comunicação. Em 2013, finalmente foi institucionalizada a Mídia Ninja como um processo decorrente do Fora do Eixo. A Mídia Ninja nasce no meio de uma crise de credibilidade dos meios tradicionais como parte de um processo mais geral.
Como ocorre o financiamento? Já ouvi acusações sobre o recebimento de dinheiro da Petrobrás, Vale e PT.
(Rafael Vilela): A lógica para o sustento da Mídia Ninja é a mesma que a do Fora do Eixo. É um sistema muito complexo de sustentabilidade, contudo o principal é compreender que ninguém pode fazer algo muito grande sem ter muita gente envolvia. Além disso, existem casas coletivas, por exemplo, eu vivo no Rio, com oito pessoas. Nós não temos um salário ao final do mês, mas há um caixa coletivo que sustenta todo o projeto. O dinheiro que vem das grandes empresas é investido em cultura, em grandes concertos gratuitos. Por isso há financiamento, contudo isto não gera lucros. É uma questão problemática, trata-se de um sistema de financiamento que há no Brasil.
(Pablo Capilé) Somos independentes porque o que financia a Mídia Ninja é nossa própria força de trabalho. Temos autonomia dos poderes econômicos e da cúpula política. Isso quer dizer que eles não determinam a linha editorial nem o conteúdo do que queremos comunicar. Somos aproximadamente 200 pessoas espalhadas em todo o país. Estas pessoas trabalham em conjunto para levar adiante este projeto, de maneira que isto nos torna independentes, autônomos e nos permite opinar livremente. Não temos grandes investidores que nos dizem o que temos que fazer. Não nos pensamos como um meio de massa, mas uma massa de meios, nos quais o meio é cada um de nós. No qual todos os cidadãos formam parte do meio. Com a tecnologia que há disponível muitas coisas podem ser comunicadas. Nossas ações são estas: criação de redes, participação direta de movimentos sociais, organização das mobilizações, articulação entre movimentos etc.
Eu sei que é extremamente complexo, mas gostaria que me explicassem como funcional a sua moeda própria e qual é a vantagem em ter uma.
(Pablo Capilé) Bruno Torturra, um dos fundadores da Mídia Ninja, disse que o que mais gostou de nós é que não sabia como iríamos nos sustentar. Eu creio que o principal para entender como sustemos o Fora do Eixo e tudo o que deriva dele é entender que tudo funciona pela força do trabalho disponível e não pela lógica do lucro. Nós somos o único movimento no Brasil que consegue ter 24 horas de atividade disponível. Porque criamos um sistema de caixa coletivo e um sistema de casas coletivas, nas quais moramos com alguns de nossos companheiros. Somos muitas pessoas juntas, trabalhando para que as coisas aconteçam. Então esta é a principal explicação de nossa sustentabilidade. O trabalho coletivo é muito mais produtivo do que a lógica do capital individual. Além disso, muitos de nós vivemos em casas coletivas, de maneira que todos nós cozinhamos, limpamos a casa etc. Também conseguimos recursos de diferentes maneiras: fotografando, editando, escrevendo etc. Desta maneira temos gastos muito baixos, porque dividimos as coisas. Com a produção dos shows temos certos lucros, tudo é muito transparente. Não é fácil, porque muita gente nos acusa, mas ninguém conseguiu encontrar nenhum tipo de irregularidade. A economia colaborativa demonstra que outra forma de organização é possível. Fora do Eixo e Mídia Ninja são um laboratório de um novo mundo possível, estamos todos dentro do processo. Todos os recursos que entram são para a sobrevivência dos que trabalham para desenvolver estes projetos. Nós lidamos com o real, mas em muitos casos temos acordos econômicos de mudanças para consumir combustível, comida etc. Trata-se de uma economia solidaria, é outra lógica.
Vocês têm pensando em alguma mobilização para o Mundial? Qual é a crítica fundamental?
(Rafael Vilela) Já estamos nos mobilizando. O slogan é “Sem direitos, não há copa”, que denuncia que com este modelo apenas as grandes empresas são beneficiadas, além da falta de investimentos para questões básicas que foram desviadas para o futebol. É, então, uma crítica fundamentalmente para a FIFA. O poder da FIFA é enorme: a lei antiterrorista é uma lei impulsionada pela FIFA porque não quer problemas durante seu evento. Porque o fato é de que não há terrorismo no Brasil. É um projeto punitivo sem nenhum outro tipo de função senão penalizar todos aqueles que possam vir a interromper o processo do Mundial.
Após vários meses das manifestações, que diagnósticos podem ser extraídos das mesmas?
(Pablo Capilé) Este é um país com 190 milhões de pessoas, então consideramos que não foi um estalo isolado, mas trata-se de um processo que está sendo gerido há muito tempo. Quando ocorreram as manifestações de junho, nós já tínhamos uma rede muito grande de colaboradores e assim conseguimos assistir a uma grande parte delas. Ao mesmo tempo, com isto, nós mesmos ganhamos uma grande visibilidade. Poderia dizer então que estávamos preparados para enfrentar essas manifestações. Junho não teve consequências especificas, mas contribuiu muito para os processos coletivos no Brasil. Os movimentos sociais, as diferentes formas de coletivo, cresceram muito, conseguiram um salto qualitativo de conscientização nas pessoas. Depois de junho, todos estão muito dispostos a realizar um debate político. Os movimentos cresceram, muitas pessoas se deram conta das grandes possibilidades que se abrem quando essa massa de pessoas está unida nas ruas. É possível manifestar-se, reivindicar seus direitos, é possível se organizar. Esta é uma grande vitória. Então, os movimentos sociais que contavam com poucas pessoas hoje contam com mais apoiadores em consequência das manifestações. Além disso, alguns grandes temas foram revisados graças às manifestações. O primeiro foi o tema do transporte público, o segundo foi a crise da segurança pública e a repressão policial, o terceiro foi a crise da imprensa tradicional e o quarto foi a crise da representatividade política. Então os movimentos sociais começaram a pressionar e a reivindicar a criação de uma lei para os meios de comunicação, que culminou em uma lei para dar um marco civil para a Internet. Estamos trabalhando com muita força para alcançar uma reforma política no Brasil e para a provação de uma lei de reforma de segurança pública que toca a questão da desmilitarização da polícia. Também estamos impulsionando o debate para a legalização da marijuana. Então, alguns temas foram definidos muito mais graças ao crescimento dos movimentos, a partir destas manifestações.
Quando falam de uma reforma, que tipo de reforma política é buscada?
(Pablo Capilé) Queremos fazer uma transição de uma democracia representativa à democracia participativa. É um processo longo que irá levar muito tempo. Contudo acredito que os brasileiros estão mais preparados, do que antes de junho, para enfrentar esta mudança. Foram criadas assembleias populares, os debates no Congresso contam com mais participação, a discussão sobre o voto obrigatório, a discussão sobre a idade mínima de responsabilidade etc. Tudo isto cresceu muito no Brasil nos últimos meses. De maneira que a sociedade está repensando e criticando a ordem estabelecida.
Muitos meios assinalaram que as manifestações foram produzidas como uma reação ao governo Dilma.
(Rafael Vilela): Durante as manifestações, os grandes meios instalaram a ideia de que as manifestações estavam atuando contra Dilma, mas isso é uma loucura. Trata-se de algo maior, de uma crise institucional, global que não ocorre apenas no Brasil. Então, não foram manifestações contra Dilma, mas contra as instituições tal como estão concebidas. Em todo caso temos críticas e também reconhecemos os acertos do governo. Quer dizer, deve-se entender que os protestos de junho foram produzidos porque existe uma sociedade civil que tem mais consciência de seus direitos e isso, em parte, é consciência derivada dos dez anos do governo de Dilma e de Lula. Isso é o que as ruas dizem para nós. Há grandes pressões por parte das empresas muito poderosas quando as pessoas nas ruas inclinam a balança para que a presidenta não ceda às pressões dos interesses econômicos.
Que relação vocês tem com o PT?
(Pablo Capilé) O principal limite destes governos é o tamanho do Brasil: temos 190 bilhões de habitantes. O maior partido do Brasil se chama PMDB, que é um partido dos mais poderosos do país e sem o qual é muito difícil governar. A maioria dos governadores, a maioria dos prefeitos, o presidente do Senado, da Câmara de Deputados são do PMDB. Então os governos de Lula e Dilma se viram obrigados a acordar com uma parte dos partidos conservadores. Contudo também sabemos que foram Lula e Dilma quem tiraram 40 milhões de pessoas da extrema pobreza, proporcionaram significativos avanços sociais e foram um grande exemplo para a América Latina. Estes representantes são o símbolo da vitória contra o neoliberalismo. É uma contradição inexorável para o Brasil. Lula foi um caso inspirador para os brasileiros. Eu, por exemplo, sou de Cuiabá, uma pequena cidade brasileira. A vitória de Lula, de um operário metalúrgico pobre, foi um símbolo para o imaginário do país. Os habitantes das pequenas cidades, como eu, por exemplo, começaram a pensar na possibilidade de transformar a realidade que impera.
Quais são os limites encontrados para a aprovação da lei dos meios?
(Pablo Capilé) A lei sobre os meios traz um debate de quatro ou cinco anos e que ainda não foi aprovada. Contudo ganhou muita força com as manifestações. O que foi aprovado foi o avanço sobre a Internet, outorgando-lhe liberdade e neutralidade. Muitos outros movimentos entraram no debate por uma nova lei sobre os meios de comunicação, então acredito que estamos cada vez mais próximos de sua reforma. Mas existe uma pressão muito grande da rede Globo para que isto não aconteça, já que a lei aponta para a ruptura do monopólio e a distribuição mais democrática de licenças de todo o tipo (TV, imprensa escrita, radio etc.).
Como vocês estão cobrindo a ocupação das favelas pela polícia?
(Pablo Capilé) São ocupações equivocadas. São intervenções militares desnecessárias. Este tipo de ação não é boa para as favelas e assim como não é algo necessário. Temos colaboradores que vivem ali e temos o contato com muitos movimentos da periferia do Rio de Janeiro. A polícia militar é um grande erro de nosso país. A polícia mata, tira vidas, é uma polícia repressora, em especial no Rio de Janeiro. Então, aqueles que vivem nas favelas têm que lidar cotidianamente com eles. Atualmente existe um forte clamor pela desmilitarização da policia no Brasil.
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“Os meios de comunicação são cada um de nós”. Entrevista com os criadores do coletivo Mídia Ninja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU