Por: André | 26 Fevereiro 2014
Em Mídia, poder e contrapoder, o pesquisador brasileiro reúne ensaios próprios com outros de Ignacio Ramonet e Pascual Serrano. O trabalho coloca em questão a configuração atual dos sistemas midiáticos na América Latina. Aqui, Dênis de Moraes (foto) explica como se mantém a colonização neoliberal na grande mídia e quais são as estratégias possíveis para limitar os monopólios. As leis de comunicação, a internet e as redes de comunicação alternativa.
Fonte: http://bit.ly/1mCUfpS |
A entrevista é de Natalia Aruguete e publicada no jornal argentino Página/12, 24-02-2014. A tradução é de André Langer.
O professor da Universidade Federal Fluminense Dênis de Moraes reuniu-se com o Página/12 por ocasião da recente publicação na Argentina de Mídia, poder e contrapoder (Boitempo, 2013). Na conversa, o pesquisador brasileiro discorreu sobre os eixos de um trabalho em que confluem ensaios de sua autoria com outros dos pesquisadores Ignacio Ramonet e Pascual Serrano. Todos estes escritos estão atravessados por um denominador comum: colocar em questão a configuração atual do sistema midiático – objeto de uma forte concentração em mãos de um punhado de “megagrupos e dinastias familiares” – e, como contrapartida, reconhecer a emergência de mutações comunicacionais a partir da chegada da internet com efeitos significativos nas práticas jornalísticas em rede com sentido contra-hegemônico, confrontadas com lógicas dominantes que atravessam o plano ideológico, cultural e econômico.
Eis a entrevista.
Você menciona uma penetração do discurso neoliberal no sistema midiático. Como se vislumbra esse discurso na narração noticiosa?
Parece-me necessário fazer uma distinção sobre o neoliberalismo contemporâneo. Por um lado, o neoliberalismo não para de exibir rotundos fracassos nos países nos quais atualmente continua vigente, ou nos quais já não está tão vigente por causa de sucessivas crises. Por outro lado, o neoliberalismo permanece atuante, vigoroso, incisivo, no plano ideológico e cultural. Esta distinção é importante porque houve uma época, os anos 1980 e 1990, em que ambas as partes eram exitosas. O triunfo do neoliberalismo era ao mesmo tempo ideológico, cultural e econômico. Atualmente, está em crise do ponto de vista econômico, sobretudo na América Latina e do Sul, onde se manifesta de maneira mais forte apenas em três países do Pacífico. Embora por sorte, a partir do dia 14 de março de 2014, no Chile haverá uma mudança significativa para fragilizar a Aliança do Pacífico. Do ponto de vista ideológico-cultural, lamentavelmente as ideias de celebração da vida para o mercado seguem sendo hegemônicas.
A que se deve?
À potência das máquinas midiáticas, que se beneficiam muito do processo de digitalização, da tecnologização da vida e que aumentam, além disso, sua potência de irradiação nas sociedades contemporâneas.
Em que a digitalização as beneficia?
Beneficia-as porque há uma expansão exponencial dos produtos e serviços de entretenimento culturais e de informação com as novas plataformas ou multiplataformas integradas, como são chamadas pelos neoliberais. Há uma explosão de novos produtos, serviços e canais digitais. Esta formidável expansão digital está permitindo uma ampliação da mais-valia dos grandes grupos monopólicos midiáticos, na medida em que os mesmos produtos estão sendo produzidos e distribuídos em vários canais e meios em todos os continentes com um baixo custo. Por outro lado, a variedade de conteúdos multiplica-se exponencialmente nestas multiplataformas digitais, razão pela qual a oferta de conteúdos cobre um horizonte amplo e diversificado de necessidades e aspirações de audiências, em todas as partes e ao mesmo tempo.
Que características têm a visão da realidade social que instala esta lógica de distribuição de conteúdos?
Esses conteúdos estão todos matizados por visões de mundo, por concepções, por pontos de vista e medidas de valor muito semelhantes que consagram a economia de mercado, a rentabilidade, o lucro e os mantras da era digital de maneira obsessiva e neurótica. Então, há uma variedade enorme de conteúdos em circulação social em todas as partes, mas as orientações, as interpretações que presidem a elaboração e a divulgação desses conteúdos, são muito parecidas. Há uma prevalência desmesurada de valores como individualismo, competência, sucesso..., tudo parece estar vinculado à necessidade de triunfo, de vitória e a uma disputa por ganhar posições na sociedade, que são difundidas pelas máquinas midiáticas globais.
Segundo se coloca no livro, o avanço da digitalização permite consolidar o discurso hegemônico e a desterritorialização, mas, ao mesmo tempo, é considerado uma espécie de ameaça, de resquício para um discurso “contra-hegemônico”. Como compatibilizar estas duas visões?
Isso tem a ver com o título do livro, Mídia, poder e contrapoder. Creio que este diagnóstico comum dos três autores tem a ver, por um lado, com a explosão digital e, por outro, com o momento de crise que vive o chamado quarto poder: a imprensa. É muito interessante observar o cenário contemporâneo da mídia monopólica.
Por quê?
Porque de um lado se vê esta possibilidade quase infinita de rentabilidade, de multiplicação de conteúdos, canais e meios, de buscar sempre mais lucro pelo menor custo possível. Simultaneamente, as grandes empresas enfrentam um momento de crise, que tem – na nossa opinião – dois pontos chaves: a perda de credibilidade dos meios de informação na opinião pública em graus e intensidades diferentes em função de cada contexto histórico e social. Esta perda tem a ver com os processos de controle da informação, da opinião e com uma percepção cada vez mais generalizada em amplos setores sociais de que a mídia é agente político e ideológico que trata, quase todo o tempo, de escolher e interpretar a realidade social de acordo com seus interesses próprios e com seus interesses econômicos e financeiros.
Por que acredita que se dá esta crise?
Tem a ver com o segundo ponto chave ao qual me referi antes. Nós compartilhamos a ideia de que o quarto poder já não é o quarto poder, porque se imbricou de tal maneira com os poderes econômicos e políticos que não tem mais a possibilidade de ser um contrapeso, uma espécie de promotoria dos abusos ou erros dos outros poderes, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Os vínculos econômicos e políticos da grande mídia com o bloco hegemônico na sociedade fragilizaram seu processo de avaliação mais racional e sensato dos outros três poderes, pelo que há uma perda de credibilidade, fruto dos processos de manipulação e mistificação de controle quase absoluto dos conteúdos que são difundidos. Por outro lado, porque a mídia não é mais essa espécie de poder que tinha a capacidade de criticar os abusos dos outros poderes. Na nossa opinião, a percepção social desta situação é cada vez mais evidente e, por isso, os grandes jornais da América Latina neste momento apresentam quedas expressivas em suas tiragens: Clarín na Argentina, O Globo no Brasil.
A queda da tiragem destes grandes jornais explica-se pela crise de credibilidade, como você afirma, ou trata-se de mudanças nos hábitos de consumo de informação, que se deram com o advento da internet?
Na minha opinião, justifica-se pelas duas versões. Uma versão interna: o quarto poder está em crise; os grupos com toda a sua sofisticação estratégica e gerencial, com as multiplataformas e a grande mídia, não conseguem ampliar sua base de audiência, sobretudo a imprensa tradicional: jornais e revistas. E também pelo fato de que há efetivamente uma crise de atenção motivada por uma explosão de mídias e uma possibilidade descentralizada e diversificada dos leitores de tomar contato com o mundo através das informações em vários veículos e canais, sobretudo a internet.
É verdade que há uma disponibilidade de informação multiplicada, proveniente de uma maior diversificação de fontes de informação. Mas em que medida se pode colocar como uma ideia estável o fato de que a mídia tradicional tenha perdido o controle da produção de informação e do estabelecimento da agenda pública em relação às novas mídias?
É uma excelente pergunta. Esta diversificação informativa e de entretenimento permitida e disponível pela internet e outras formas de comunicação instantânea não tem a ver diretamente com a internet, embora haja uma convergência com a internet cada vez maior. Efetivamente, há uma diversificação imprevista e crescente. Contudo, há duas questões relevantes para não perder de vista o poder da mídia.
Quais?
As agendas informativas continuam sendo definidas pela mídia corporativa. Um dos problemas mais sensíveis da comunicação alternativa é que, tanto agências como blogs e portais críticos e contra-hegemônicos, continuam dependendo – de maneira geral, embora com exceções que devem ser resgatadas – das agendas midiáticas. Claro, há fatos e acontecimentos que são obrigatórios nos noticiários, mas muitos outros são definidos pelas intensidades, ênfases e escolhas da mídia corporativa. O segundo ponto que não podemos perder de vista é que a penetração social da grande mídia continua intocável. Isto tem a ver com uma expressão que utilizamos no livro: “a colonização do imaginário social por parte da mídia corporativa”. Este é um processo histórico e social longo que não para de se aprofundar. Tem a ver com hábitos de leitura, com hábitos de audiência, tem a ver com o poder tecnológico das máquinas midiáticas e com a capacidade de influência em termos de valores, mentalidades, pontos de vista, concepções de mundo que a mídia corporativa segue mantendo de maneira incisiva.
No livro também se fala do “fim do monopólio informativo”, mas não devemos desconhecer a brecha digital existente: o acesso às novas mídias não é uma prática generalizada. E o tipo de informação que se troca entre a mídia cidadã segue concentrada em um setor certamente pequeno e elitista.
Há uma diferença entre o fim do monopólio informativo e o fim do monopólio da audiência, que certos setores da esquerda – na minha opinião, mal informados e sem capacidade de entendimento mais consistente – não entendem: não se trata apenas de apontar que hoje há mais possibilidades de acesso, de produção e difusão de informação. Não têm uma visão clara e nítida de que o monopólio da audiência continua vigente. Diante disso é necessário fragilizar esses monopólios, é uma luta política fundamental. Não basta desenvolver as possibilidades de produção, difusão e intercâmbio de sociabilidade na rede. A internet não é suficiente para reduzir o monopólio; é apenas um meio complementar que enfrenta problemas que são próprios e externos.
Como definiria uns e outros?
Próprios porque há necessidade de habilidades técnicas, de acesso a programas informáticos, de padrões culturais e educativos diferentes. Os acessos e usufrutos são desiguais, diante disso as tecnologias não têm a capacidade de dissolver as desigualdades que são graves, provocadas quase sempre por um modo de produção que é, por definição, excludente; o capitalismo é uma fábrica de desigualdades. Assim, imaginar que a internet é suficiente para debilitar o monopólio da audiência, da formação das mentalidades e dos valores é acreditar em um sonho impossível. Devemos utilizar a internet como meio complementar, suplementar, de diversificação, descentralização, de circulação de maior quantidade de opiniões e de vozes sociais. Mas isso também não basta porque a mídia monopólica está presente na internet de maneira hegemônica. Os principais portais da internet, em termos de audiência, são da mídia monopólica. No livro há um estudo de minha autoria sobre as agendas alternativas em rede, um fenômeno espetacular na América Latina, de descentralização de fontes, de práticas, de modalidades colaborativas não lucrativas, e isso é uma novidade que vai do México à Patagônia. São quase uma centena de agências jornalísticas, contra-hegemônicas, alternativas, que se expressam através da internet; um fenômeno espetacular mas não suficiente para colocar em risco o monopólio midiático. Para consegui-lo na América Latina são necessárias várias leis de Serviços de Comunicação Audiovisual, uma ação firme, permanente e prolongada do Estado, no sentido de transformar os marcos regulatórios, de permitir que outras vozes sociais tenham acesso à radiodifusão pública.
Acredita que as leis são uma ferramenta suficiente para que se consiga isso?
Claro que as leis não são suficientes. Precisa-se de uma espécie de aliança entre todos os setores, entre todas as ferramentas que lutam pela comunicação como direito humano. Porque se necessita de financiamento e sustentabilidade, que é um problema grave. Eu diria que este é um momento no qual não temos direito de escolher uma forma de atuação para democratizar a mídia.
E como se enfrenta este obstáculo?
Nós temos o dever de buscar associar tudo junto ao mesmo tempo. De um lado, mobilizar a sociedade e pressionar o Estado para alcançar novas legislações, marcos regulatórios, ações do poder púbico de defesa da comunicação como direito humano. Ao mesmo tempo, necessitamos aprofundar estas experiências de comunicação alternativa em rede, necessitamos multiplicar mais ainda os portais, os blogs, as agências informativas, ocupar as redes sociais com o sentido de criticar, formar novas ideias, outros valores. Uma espécie de bloco no campo da sociedade civil. Esse bloco tem possibilidades de produzir, editar e difundir mais, mas não será suficiente somente explorar o mundo da internet, a comunicação móvel, a comunicação instantânea. Então, não tenho a ilusão de que mais leis de mídia vão resolver tudo, de maneira alguma. Creio que são indispensáveis, mas não sem uma ação cada vez mais organizada, consequente, permanente, de novas experiências jornalísticas e comunicacionais no campo da sociedade civil, que trabalhem de maneira independente e autônoma para ocupar as redes sociais com conteúdos mais cidadãos. Ali haveria uma espécie de frente, creio que esse é o sentido que Ignacio Ramonet, Pascual Serrano e eu encontramos.
Qual é o diagnóstico dessa frente que formaram?
Há uma explosão do jornalismo e é plenamente possível que ocorram duas coisas: um jornalismo mais ético, mais plural, mais cidadão, mais independente, mais autônomo, mais participativo. Por outro lado, é possível um tipo de comunicação de maneira geral, que na nossa opinião depende de duas coisas: da ação cidadã e também da pressão e mobilização das sociedades com a ideia da comunicação como direito humano. Parece-me que a chave é que nós, neste momento, não temos o direito de escolher um único caminho para a luta pela democratização. A necessidade de contrapoder, de contra-informação e de contra-opinião deve estar presente em todas as áreas, em todos os lugares de ação possível.
Você mencionou que a mídia é agente político e ideológico. Qual é a definição de mídia como ator político que subjaz aos ensaios que compõem o livro?
Entendemos que a mídia é ator político de primeira linha. Ela elabora, unifica e divulga valores e concepções de mundo que influem na conformação do imaginário social. Cada qual com seus estilos, linguagens e formatos, agem de maneira incisiva nas disputas de sentido e poder na sociedade contemporânea, priorizando temas e difundindo determinados enfoques sobre a realidade, a partir de óticas sintonizadas quase sempre com os interesses de grupos e classes mais ou menos homogêneos e preponderantes. Sem delegação social para isso, assumem posições e orientam seus noticiários como se fossem “intérpretes da opinião pública”. Em tal perspectiva, a mídia opera como verdadeiros partidos políticos.
Em que se expressa essa lógica de operar como partidos políticos?
Em que interferem, com ênfases específicas, nos modos de conhecimento, interpretação e entendimento dos fatos e situações. Eles demonstram exata noção de seu papel chave na batalha das ideias pela hegemonia cultural e política, inclusive quando procuram reduzir ao mínimo o espaço de circulação de visões alternativas e expressões de dissenso, por mais que estas continuem manifestando-se e resistindo. A meta é neutralizar pautas informativas e análises críticas geralmente contrárias à lógica econômica e às concepções políticas dominantes.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“A internet não é suficiente para reduzir o monopólio”. Entrevista com Dênis de Moraes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU