17 Março 2020
“Não se deve deixar que o biopoder decida arbitrariamente sobre a vida, prestando especial atenção aos índices de mortalidade, quando passam a se nutrir pelos falecidos entre os setores dominantes, mas não quando os que morrem são, em proporção majoritária, dos setores subalternos, minoritários, empobrecidos ou marginalizados da população. O biopoder não pode se subtrair das demandas por igualdade. Isso também deve ser conquistado para o presente e o futuro na crise dos coronavírus”, escreve José Antonio Pérez Tapias, professor e decano na Faculdade de Filosofia, da Universidade de Granada, Espanha, em artigo publicado por Ctxt, 15-03-2020. A tradução é do Cepat.
Às vezes, o novo nos assombra. Não só surpreende, como também desestabiliza ao irromper ameaçadoramente no que era a ordem do nosso mundo. É o que aconteceu e continua ocorrendo com o coronavírus – COVID-19, segundo o batismo científico –, à luz da pandemia desencadeada por sua expansão. A situação é inédita, não apenas pela rápida cadeia de contágios da consequente doença de caráter gripal, mas também pelas medidas sanitárias decididas politicamente para buscar freá-la, com custosas consequências econômicas e sociais a longo prazo e por todo o planeta. Devido a ela, vale, pois, aplicar o tópico de que existe um antes e um depois.
Os fatos reunidos em torno do coronavírus supõem, portanto, um acontecimento e como tal, é vivido e será recordado. Não se trata de um acontecimento a mais que se acrescenta a outros semelhantes, mas, ao contrário, estamos diante de um acontecimento que, sendo inesperado, tem todos os elementos para se constituir em um marco inteiramente significativo, de maneira que a seu caráter de imprevisto se soma seu potencial de deixar em suspenso o mero fluir de processos em curso para, em uma situação nova, nos impulsionar diante de alternativas, dilemas e mudanças futuras em relação às quais é preciso e precisará ser tomadas decisões sem precedentes.
A novidade, neste caso, qualificado como pandemia pela Organização Mundial da Saúde, quando a expansão do vírus atingiu determinados parâmetros, incide na mesmíssima percepção do processo de globalização com o qual até agora nos movemos. Desde as últimas décadas, viemos falando de globalização econômica, certamente impulsionada pelo capitalismo financeiro e pelo desenvolvimento da informática e da telemática, mas ao mesmo tempo promovendo algumas inter-relações econômicas muito estreitas, por mais que desequilibradas, entre agentes econômicos e sociedades diversas em escala planetária.
Globalização a respeito da qual, além disso, vimos nos últimos tempos movimentos reativos em busca de receitas protecionistas, mas sem abandonar os dogmas neoliberais. E quem nos diria que a suposta ordem econômica internacional seria colocada de cabeça para baixo por um microscópico vírus protagonista de outra face da globalização! Pensávamos que tínhamos tudo sob controle, mas não, nem tecnológica, nem economicamente, daí a tremenda cura de humildade que a pandemia desencadeada nos inflige.
É verdade, por outro lado, que o problema da mudança climática, conquistando relevância com a preocupação com a camada de ozônio e outras causas ambientais, introduziu-nos de cheio na vertente ecológica da globalização. No entanto, foi agora, com a ‘globalização da doença’, que a consciência coletiva deu um salto qualitativo, na verdade, que sem que isso prejulgue onde cairemos. Uma epidemia que começou em uma província chinesa, no imaginário coletivo ainda “extremo Oriente”, se estabeleceu plenamente no Ocidente, com a Itália primeiro e a Espanha depois, como focos da mesma neste lado do mundo.
Enfrentar a doença supõe para nós uma nova versão da correlação bidirecional global-local, buscando, em cada caso, os meios para a sua imunidade na comunidade da qual fazemos parte, coisa que, por sua vez, como alertou o filósofo italiano Roberto Esposito, antes que estivéssemos nessa, pode ser feita de maneira frutiferamente criativa ou regressivamente, pretendendo imunização com base em uma comunitarização mais fechada.
Se de agora em diante se consumasse a tentação de fechar as fronteiras, o que, além disso, seria uma cessão claudicante diante dos que não se cansam de promover e construir novos muros, estaríamos dando a pior resposta que poderia ser dada em nossa atual sociedade de risco.
O sociólogo alemão Ulrich Beck, que antes de morrer nos deixou algumas obras fundamentais, foi pioneiro destacando os novos riscos que teríamos que enfrentar em um mundo globalizado. Não lhe faltou perspicácia para indicar que o reverso dos riscos de nosso mundo são os medos que são gerados, com o perigo de nos tornarmos uma sociedade do medo.
Com cidadãs e cidadãos atemorizados, expostos a cair no pânico diante de circunstâncias que serão muitas vezes tão novas como esmagadoras, não será possível encontrar as vias adequadas para sair da crise. Irá se repetir, mais de uma vez, ao longo do tempo, o que Marx dizia sobre uma burguesia capitalista que sai das crises preparando a seguinte, sempre mais profunda e maior.
Nas condições da pandemia atual, a consideração de que a globalização da doença deve ser respondida com a globalização da salubridade, ou seja, com as condições para uma vida saudável em escala planetária, deve ser motivo de reflexão crítica. Aposta-se tudo para alcançá-la na forma como são geridos o risco e o medo, para não ficar presos entre eles.
A globalização da salubridade - questão que toca em cheio as exigíveis condições da vida digna para todos - implica o combate firme contra as desigualdades, dado que estas impedem de fato que, em diferentes escalas nacional e internacional, os objetivos de saúde pública possam ser alcançados. Tais objetivos trazem novamente ao debate ético e político a noção de bem comum, correlacionada com o que é exigível por razões de justiça.
De acordo com essa avaliação, é oportuno insistir, não tanto em apelações a um “sentido comum” a respeito do qual até pode ser aconselhável doses de ceticismo - costuma ser tão invocado como ausente, dado o peso dos interesses em disputa -, mas, sim, ao ‘sentido do comum’, conscientes dos bens que todos devemos poder usufruir ou aos que todos devemos ter acesso em condições de efetiva igualdade - entre outras características, não devem ser redutíveis à mercadoria - porque são suporte da vida e, justamente, da vida em comum. Sem dúvida, a saúde pública é um bem comum irrenunciável.
Justamente a atual crise sanitária provocada pelo coronavírus, diante da qual o governo da Espanha decretou “estado de emergência’ para se dotar de um instrumento jurídico que lhe permita enfrentar com maior eficácia a mesma, coordenando outros poderes do Estado e dirigindo os recursos deste em múltiplas vertentes, do ambiente hospitalar às ações policiais, é um claro caso de uma política focada em proteger a vida do conjunto da população sob sua responsabilidade política.
Como já foi dito por vozes muito plurais, se há mais de um século a política contemporânea tem um perfil biopolítico, o governo da Espanha, assim como outros, destaca esse caráter em suas ações. Como se fosse uma homenagem involuntária a Michel Foucault, a política ‘da’ vida levada a ponto de uma extrema e rigorosa normatização da vida dos cidadãos, regulamentando minuciosamente, nesse momento, até as questões mais detalhadas relacionadas, por exemplo, com as próprias possibilidades de circulação ou de realização - melhor, de não realização - de atos públicos, ainda que minoritários, e tudo para evitar que continuem se multiplicando exponencialmente os contágios, é uma política com claro exercício de um biopoder.
Reconheçamos que a biopolítica em alta, com base na pandemia da COVID-19, precisa ser vista com fortes dilemas diante dos quais não é fácil decidir, como não foi em fases anteriores, em que a sensação de incerteza, agravada pelo desconhecimento em torno de um fator patogênico de novo cunho, via-se diminuída por uma confiança no sistema de saúde que, diante do desenvolvimento dos fatos, pode ser descrita a posteriori como excessiva.
Vemos que, além de impedir a morte de pacientes afetados por graves patologias prévias que implicam uma grande vulnerabilidade - por mais que, quando ocorrem, são percentualmente reduzidos, o que em nenhum caso justificaria desatenção alguma -, um argumento forte a favor das restrições impostas aos cidadãos para a proteção de sua saúde tem a ver com a necessidade de retardar a propagação da doença, que para a maioria não é grave, com a finalidade de garantir a capacidade de hospitalização e tratamento das pessoas que, sim, estejam gravemente afetadas.
Ou seja, a um argumento em relação à vida, acrescenta-se um argumento tocante à capacidade de resposta do sistema de saúde, a respeito do qual todos sabemos, por outro lado, que se viu prejudicado pelos cortes que sofreu na nos últimos anos, em especial nas comunidades autônomas como a de Madri, onde a direita encontrou campo de aplicação de seu programa neoliberal. Evidencia-se, por fim, o preço, e não só monetário, pago por submeter a saúde - as exigências de proteção à saúde e atenção à doença - a critérios de mercado, primando o privado frente ao público.
A ninguém se esconde, no entanto, que apostar na saúde, como se faz agora, por outro lado, assumindo o peso da grave crise que gera a paralisação econômica que sofre todo um país - como a Itália, como outros ... - terá consequências sociais que serão novamente gravíssimas, especialmente no que diz respeito ao desemprego, com o fator adicional do que supõe no futuro um Estado esgotado em seus recursos financeiros, devido à impossibilidade de uma arrecadação fiscal como seria de desejar. Por aí, apresenta-se o outro aspecto do dilema.
É verdade que todas as análises que são feitas, apontando para além do imediato em termos de medidas implementadas e seus efeitos, sejam as positivas que cabe esperar, como as negativas que se apresentem como colaterais, apontam para um tempo futuro em que as coisas serão diferentes, contando em que será necessário frear um capitalismo voraz e impiedoso que queira recompor o quanto antes seus balanços, deixando de fora os custos humanos da crise vivida.
Colocando cada coisa em seu lugar, o fato é que, em muitos aspectos, o lugar não haverá de ser exatamente o mesmo de antes. Assim, na relação, tantas vezes colocada como antagônica, entre mercado e Estado, será necessário diminuir a gratuita primazia absoluta concedida ao primeiro e reparar na medida em que, de verdade, necessitamos do segundo. E se para além de um Estado concreto olharmos para a União Europeia, teremos que dizer novamente como nos vale pouco, se a sua atitude desalmada em relação aos imigrantes e refugiados continuar se somando um burocratismo e uma impotência tais que a tornam ineficiente, até mesmo para uma mínima coordenação entre Estados, conforme se comprova na crise do coronavírus.
Indo a fundo, se entre vida e economia se segue apostando unilateralmente na economia frente à vida, voltaremos a nos ver em situações tão difíceis como a atual ou mais, pois podemos apostar que a pandemia do coronavírus não será a última.
Ao enfrentar a crise sanitária atual, os governos, e o espanhol de maneira especialmente enfática, apelaram à responsabilidade dos cidadãos em assumir práticas de proteção e confinamento com uma dose muito exigente de disciplina. O apelo de que cuidar da própria saúde tem um componente de interesse próprio, mas também de solidariedade, enquanto supõe se preocupar em não se contagiar, prejudicando assim a saúde alheia, sendo um fator mobilizador colocado em jogo.
Não é necessário elogiar os cidadãos que ficam em casa como heróis, pois na verdade não implica heroísmo algum - que palavra deixamos, então, para descrever aqueles que realmente têm um comportamento heroico, como os profissionais de saúde e muitos outros[?]! -, mas, sim, é verdade que novamente encontramos uma verificação, ainda que seja constatada com a linguagem da governamentalidade, das reflexões de Foucault, neste caso, aquelas relacionadas ao “autocuidado”, via de reconstrução de subjetividades abertas à relação com os outros, a partir de um autocuidado que é cultivo da própria humanidade, em definitiva comum humanidade.
Por aí, abre-se, caso se saiba continuar por ela, uma via de redescoberta da fraternidade - esse valor republicano! - que é de qualquer forma necessária para que a biopolítica seja verdadeiramente democrática ou, caso se prefira, como disse o antes citado Esposito, que a democracia se conjugue como biopolítica, em que a vida seja bem comum que todos cuidamos, também, obviamente, por amor à vida de cada um.
Não se deve deixar que o biopoder decida arbitrariamente sobre a vida, prestando especial atenção aos índices de mortalidade, quando passam a se nutrir pelos falecidos entre os setores dominantes, mas não quando os que morrem são, em proporção majoritária, dos setores subalternos, minoritários, empobrecidos ou marginalizados da população. O biopoder não pode se subtrair das demandas por igualdade. Isso também deve ser conquistado para o presente e o futuro na crise dos coronavírus.
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Entre o risco e o medo, a biopolítica em alta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU