13 Março 2020
"Francisco nos permite sonhar com coisas maiores, cuja concretização destes sonhos depende de todos nós; e é aí que entra o chamado para uma nova percepção e responsabilidade eclesial, uma maturidade que deve ser buscada, construída, sem a qual não haverá qualquer condição para uma Igreja em saída", escreve Cesar Kuzma, teólogo leigo, casado e pai de dois filhos, doutor em Teologia pela PUC-Rio, onde atua como professor-pesquisador do Departamento de Teologia, atual presidente da SOTER e autor de livros e artigos sobre a teologia do laicato, como Leigos e Leigas, Ed. Paulus, 2009.
Desde o início do seu Pontificado, Francisco tem surpreendido a todos com sua postura e coragem. Desta forma, Francisco mostra um novo dinamismo para enfrentar situações que interpelam a Igreja em sua caminhada e, assim, abrir novas saídas e perspectivas, sejam elas em diretrizes concretas sejam elas em oportunidades que permitem a liberdade de um pensar e de um questionar da própria posição eclesial, bem como de sua relação com o mundo, sua mensagem e seus desafios. Depois de um inverno rigoroso em tempos eclesiais e que culminaram com a renúncia de Bento XVI, a eleição de Francisco e a novidade que ele trazia, desde o primeiro instante, nos fazia crer numa primavera [e muitos escreveram a respeito disso], em um momento novo, e, ao mesmo tempo, com grandes indicações de que este processo seria desafiador.
Pela primeira vez na história tínhamos em Roma um Papa que vinha de fora do grande centro, vinha da periferia, “do fim do mundo”, maneira como ele mesmo disse na Praça São Pedro, e apenas este fato já questionava o status europeu e a eclesiologia que este modelo vinha sustentando há séculos. É necessário dizer e entender que algo mudou na Igreja na noite do dia 13 de março e esta mudança não pode ser compreendida como mera casualidade, pois ela traz algo mais profundo, já que oferece outro caminho e outra resposta, segue atenta a novas urgências que exigem uma nova agenda e atitude eclesiais.
Se pegarmos o itinerário de Bergoglio, percebemos que ele era alguém estranho aos grandes círculos eclesiásticos e distante de toda forma de disputa de poder que perpassava e que ainda perpassa em muitas estruturas eclesiásticas ao redor do mundo, sobretudo no Vaticano. Por ser de fora, por ser da periferia eclesial, Francisco se torna alguém livre para questionar toda uma condição de Igreja que, em grande parte, serve a si mesma e que muitas vezes não se sente amedrontada ou inibida em se manter distante do Evangelho, quando, em algumas situações, esta mesma Igreja se faz permissiva com atrocidades e práticas abusivas e de corrupção. São muitos os escândalos e eles revelam uma face pecadora de uma Igreja que deveria ser sinal e sacramento do próprio Evangelho. Por esta razão que, para muitos que vivem e sobrevivem das estruturas clericais/de poder, é mais fácil criar/manter um retrato teológico que tenha Jesus como simples objeto de culto e/ou adorno religioso de uma prática de fé que se percebe em grande parte vazia, ou sem um sentido real, convidativo a algo novo, já que a práxis de Jesus e o Evangelho que dela provém questionam o poder dominante; logo, a indiferença e o foco no institucionalizar da fé garantem aos que se cercam ao poder a manutenção do próprio sistema, afastando todo e qualquer profetismo.
Não é à toa que Francisco questiona esta estrutura e se torna um grande crítico do clericalismo, o qual classifica como uma ‘enfermidade’ que destrói a Igreja por dentro e que está impregnada com muitos rostos e de muitas formas. Então, Bergoglio, ao ser eleito, e Bergoglio, ao se chamar Francisco, revela algo novo e este novo interrompe um processo que havia sido implantado nas três últimas décadas e abre espaço para uma nova etapa, algo diferente que reclama toda uma atenção de quem observa e passa a perceber o avançar destes movimentos. Ao interromper o processo vigente, Francisco resgata o espírito do Concílio Vaticano II e começa a colocar em prática as suas questões, muitas delas ignoradas ou interrompidas, chamando todo o povo a uma nova etapa evangelizadora (EG 17) e a uma nova responsabilidade: “sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG 20).
Observando Francisco, podemos perceber estas inclinações pelo seu modo de ser e estar, pela tomada de posições que faz e pelas decisões que toma em determinadas circunstâncias; da mesma forma podemos perceber esta intenção pela simplicidade como se apresenta e pelo trato que tem com as pessoas, pelo discernimento que acompanha o seu caminhar [muitas vezes solitário pelos corredores e ruelas do Vaticano], pelas palavras simples e diretas que atingem pontos concretos da fé cristã e/ou da vivência de muitas pessoas e que desafiam a Igreja a uma nova direção, a novas respostas, em saída, rumo a novos horizontes que os sinais dos tempos de hoje nos querem interpelar. Por esta razão que, neste 13 de março, ao celebrarmos sete anos de sua eleição, ainda podemos dizer que estamos diante de um novo tempo, e que este ‘novo tempo’ produz um ‘canto novo’, como diz o salmista (Sl 96), e isso muda toda a dinâmica do que estamos vivendo e do que podemos esperar. Francisco diz:
“Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! [...] prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. [...]. Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: ‘dai-lhes vós mesmos de comer’ (Mc 6,37)” (EG 49).
Francisco nos permite sonhar com coisas maiores, cuja concretização destes sonhos depende de todos nós; e é aí que entra o chamado para uma nova percepção e responsabilidade eclesial, uma maturidade que deve ser buscada, construída, sem a qual não haverá qualquer condição para uma Igreja em saída.
No entanto, nem tudo são flores neste caminho de Pontificado, o que nos permite trazer, tendo já passado sete anos, uma incômoda indagação: quem são aqueles que realmente apoiam e aqueles que apenas dizem apoiar Francisco, mas que na realidade não o fazem?... E este questionamento busca atingir a todos: leigos, leigas, religiosos e religiosas, sacerdotes, bispos e cardeais. O que é de verdade e o que é apenas aparência?...
Creio que é importante fazer esta interrogação, pois esta postura de Francisco que passou a encantar a muitos, dentro e fora da Igreja, começou também, já em seu início, a deixar um rastro de insegurança e de inquietude para ‘outro grupo’, formado por ‘aqueles’ que estavam acomodados nas estruturas de poder e nos diversos privilégios que a tradição foi alargando e construindo ao longo dos tempos. Esta recusa a Francisco tem se ampliado muito nos últimos anos e a agressividade como partem os ataques e a surpresa por serem eles de pessoas tão próximas e de posições de serviço e poder eclesial, leva-nos a questionar a razão de tais ataques. Estaria Francisco, pelo seu jeito de ser e de conduzir a Igreja, questionando alguns privilégios e posturas, que em si, nada possuem de evangélicas e de serviço ao Reino? Seria este também um preconceito quanto a origem latino-americana do papa, que aliás, traz consigo o jeito de ser e de fazer Igreja deste continente, marcado por uma teologia própria e por um recepcionar criativo do Vaticano II, pelas Conferências Episcopais, principalmente em Medellín? Haveria em Roma um assombro por uma perspectiva decolonizadora que surge com Francisco, chamando a atenção da Igreja para as periferias e para a força que elas produzem, para um novo modo de ser Igreja? É evidente que um pouco de tudo isso ajuda a responder que sim. No entanto, este questionar e propor de mudanças toca em algo mais profundo que não se limita a gestos externos, a ditos e a vestimenta simples adotada por Francisco. Vai mais além.
Estes privilégios e vícios estruturais tornaram-se mais fortes nos últimos anos, praticamente ignorando os avanços que foram apresentados pela eclesiologia do Vaticano II, que pedia uma Igreja mais sinodal, descentralizada e em respeito à dinamicidade do Povo de Deus, que constitui e que é Igreja em sua totalidade. Sem a compreensão de uma Igreja Povo de Deus não se torna possível a dimensão de communio, que é fundamental à eclesiologia conciliar, para que Cristo possa ser o centro e que, com a doação de seu Espírito, possa oferecer dons e carismas para a toda a Igreja, a fim de edificá-la como proposta de construção do Reino de Deus. Esta categoria Povo de Deus é bem cara à teologia/eclesiologia de Francisco e totalmente fiel ao que decidiu o Concílio, tanto que na Evangelii Gaudium Francisco resgata esta posição (EG 111), ao dizer que se trata de um “povo peregrino e evangelizador, que sempre transcende toda a necessária expressão institucional”.
Esta realidade teológica trazida pelo Vaticano II continua sendo uma busca, algo a ser construído, pois, de fato, salvo alguns exemplos, a Igreja, em suas estruturas, parece permanecer [e assim desejam alguns!] presa a um passado que diz muito pouco ou quase nada ao nosso tempo. Torna-se doentio. Trata-se de uma orientação eclesiológica centralizada em um modelo já passado e que está marcado fortemente por normas, posturas, práticas e vestimentas que carregam estruturas e privilégios enrijecidos e que, naquilo que se pretende, decide por se manter fechada e isolada de toda e qualquer novidade que avança e que atualiza a Palavra do Evangelho, que deve ser sempre boa notícia. Incrível, mas este ‘grupo’, que se opõe, ao invés de se abrir e se inculturar numa experiência de Cristo vivo e que a cada tempo responde e oferece uma Boa Nova ao ser humano concreto, opta por moldar um Jesus dogmatizado, num estereótipo intocável, numa liturgia já fria, numa teologia não responsável e num desencarnar-se da própria história, sendo que esta foi assumida por Deus integralmente.
Se a proposta que se teve com o Vaticano II foi de avançar e dialogar, entendendo as grandes questões do mundo moderno, a ideia que este grupo [que se opõe] defende é avançar para conquistar, para enfrentar, para manter e impor um contexto e postura religiosos que já não garantem nada, não acrescentam e tampouco oferecem algo concreto e libertador. No dizer de Francisco na Evangelii Gaudium, parecem peças de museus (EG 95). O triste é que elas estão mais presentes do que imaginamos e estão espalhadas por todos os lados. Estão de alto a baixo, de um lado a outro, em vários espaços e ocupam setores estratégicos que impedem um avançar de uma Igreja em saída, ao mesmo tempo em que dispersam as pessoas com uma suposta eclesialidade e catolicidade que dizem ou mostram ter, mas que na verdade se faz apenas aparente.
É evidente, então, que as atitudes de Francisco passam a incomodar a este grupo que se vê orientado por esta outra eclesiologia, pois ele, Francisco, em seu ministério, dá menos valor a estas tradições, chamando a atenção da Igreja a outra razão, por certo mais importante, que é o anúncio do ressuscitado de forma coerente e em atenção aos sinais dos tempos, aos clamores do povo, aos gritos dos empobrecidos e injustiçados pelo sistema e em resgate de todas as vítimas de nossa sociedade que exclui, agride e mata. Francisco torna-se incômodo, porque o Evangelho assim o é, e a Igreja deve seguir por aí.
Nestes anos que se seguiram com o seu Pontificado, podemos dizer que muita coisa se tornou mais clara e outras que eram demasiadamente carregadas se tornaram mais leves. A Igreja respira um novo ar, um ar fresco. Discursos que eram impensáveis passam a ser dialogados, um novo modo de pastorear a Igreja vai tomando corpo, expectativas vão sendo geradas, propostas antes pensadas e rechaçadas são novamente colocadas à mesa e passam a entrar na pauta de uma Igreja que sabe que precisa se reformar, caso queira ser fiel ao Evangelho e caso pretenda – ainda – dizer algo concreto e verdadeiro ao mundo de hoje. Por certo, isso anima a muitos de nós. Mas, também, por outro lado, incomoda e gera revolta em outro grupo, um grupo que já não se esconde e que parece ferir com rebeldia e agir com deslealdade, já que a grande recusa a Francisco e às suas reformas vem de dentro, da própria estrutura, do alto e baixo clero, de leigos fundamentalistas, por parte de alguns bispos e cardeais, de pessoas mais preocupadas em se manter como patrimônio religioso histórico do que acolher e ouvir o que o Espírito vem dizendo à Igreja (cf. Ap 2,11).
Por certo, o tecido do que estou expondo aqui é mais complexo e merece uma análise mais detalhada, todavia, minha intenção neste momento é de apenas dizer que há algo de novo na proposta de Francisco e que esta novidade, em meu entender, é um despertar do Espírito sobre toda a Igreja, um chamar Daquele [Cristo] que é o nosso pastor.
Ainda sobre o movimento de recusa e de oposição, alguns pontos nos servem de exemplo e merecem nossa atenção, pois estes são apenas o ponto visível de algo que é ainda mais vasto e tem várias expressões:
1) A postura do Cardeal R. Burke logo no início, após a publicação da Evangelii Gaudium, ao dizer que a Igreja estava sem rumo é um grande exemplo disso. O mesmo cardeal se une a outros na elaboração das famosas dubias sobre a Amoris Laetitia, numa tentativa mais de desestabilizar e desunir, do que de interesse em qualquer resposta. Tentou-se colocar Francisco em prova, questionando até mesmo sua fé e autoridade, assim como os fariseus fizeram com Jesus. Sem contar o fato de que Burke passou a peregrinar pelo mundo, inclusive no Brasil, mostrando-se totalmente contrário ao documento e às conclusões sinodais.
2) Podemos colocar nesta lista o Cardeal G. Muller, que, desde o Pontificado de Bento XVI estava a frente da Congregação para a Doutrina da fé, mas que passou a ser um ponto de desequilíbrio dentro da estrutura do Pontificado de Francisco. Ao deixar o cargo, provavelmente por ressentimentos, passa a agredir e a convocar o Papa para um debate teológico, para um debate público. E o fez insistentemente, mais de uma vez. Müller também passou a viajar pelo mundo com conferências em arquidioceses e universidades que mostravam mais simpatia por seu discurso e certa indiferença ao que vem de Francisco. Ele também esteve presente no Brasil, onde lançou livros e fez conferências.
3) Podemos mencionar as dificuldades que se seguiram nos dois Sínodos sobre a família, em 2014 e 2015. Ali, o que mais se discutiu foi a eclesiologia de Francisco, muito mais do que os grandes temas que circulam as realidades das famílias e as questões de sacramentalidade e sexualidade, que eram assuntos Sinodais. Ainda assim, mesmo com limites que se fizeram presentes, o documento Amoris Laetitia conseguiu avançar no âmbito da pastoral, da misericórdia e da moral, abrindo novas perspectivas. Seguramente, a recepção e a aplicabilidade deste documento fazem e farão repensar aspectos teológicos fundamentais.
4) Podemos colocar nesta lista as manifestações recentes do Cardeal R. Sarah sobre a liturgia, principalmente a confusão gerada em torno do livro produzido por ele, que diz ser também, elaborado em parceria e em consentimento por Ratzinger, o que gerou um desiquilíbrio e uma tentativa de usar o papa emérito para desautorizar Francisco e contrapor os dois papas. Inclusive este é um ponto que une a muitos dos que se opõem a Francisco, o uso da figura do papa emérito como segurança da verdade e da ortodoxia. Trata-se de uma intenção baixa e injusta, uma vez que a renúncia colocou Bento em uma situação diferente e, pelo menos abertamente, nunca se viu uma disputa de espaço e uma oposição entre os dois papas, mesmo que eles tenham perspectivas teológicas e modo de pastorear muito diferentes. Na ocasião do livro, a grande questão levantada por Sarah dizia respeito ao celibato e o entendimento litúrgico e sacramental que isso traz, todavia, este pretexto esconde algo mais sério, que é a dificuldade de entendimento de algo que se faz novo e que exige uma nova postura e atitude. Contudo, é provável que este livro e a discussão gerada por ele, também pela tentativa de contrapor os dois papas, tenha causado um freio na Exortação Querida Amazônia, algo a se analisar profundamente, e por aí vai...
5) Ainda neste quadro, podemos nos questionar sobre as posturas de muitos bispos frente ao Papa Francisco, e isso em diversas localidades. Se por acaso, a postura e oposição de muitos deles não se tornam tão públicas como a destes cardeais listados acima, podemos olhar a Igreja em suas localidades e verificar o que de Francisco e da Evangelii Gaudium e dos demais documentos foram, efetivamente, assumidos em cada local. Vamos pensar que em sete anos de Pontificado, muita coisa poderia ter sido feita, mas será que aconteceu? Será que houve mudanças? Será que houve interesse? Será que estão sendo tomadas medidas contra o clericalismo e contra fechamentos institucionais? Ou será que Francisco é apenas um adorno religioso que nos dá certa referência católica, mas que das suas palavras, propostas e atitudes, se tem feito muito pouco?... Para pensar...
Logo, não bastam palavras de apoio ou referências ao Papa Francisco, que por certo são importantes [!], não há dúvida, mas é necessário atitude e compromisso com a causa do Evangelho e com o horizonte desta “saída” que ele propõe, que tem endereços bem determinados: a todas as periferias, existenciais e sociais. Assim, um olhar para muitas Igrejas locais nos fará perceber a verdade sobre esta realidade, questionando-nos sobre o que mudou nestes sete anos com Francisco, já com orientações do Magistério muito bem colocadas e com exemplos de atitudes que poderiam (pra não dizer, deveriam) ser seguidos. E não dizemos isso apenas na intenção de um executar de cima para baixo, até porque esta não é a proposta de Francisco, mas sim no exercício da sinodalidade, de um caminhar juntos como povo, com verdade e coragem frente aos desafios. Esta atenção dada aos bispos irá se refletir nos demais membros da comunidade, nos demais ministérios e expressões eclesiais.
6) Ainda há toda a tentativa de desestabilizar Francisco moralmente e politicamente, e esta foi a tática de Carlo Maria Viganò, ex-núncio norte-americano, que fez acusações contra o papa, dizendo que ele teria conhecimento de situações de abusos sexuais contra menores nos Estados Unidos e que não tomou providências, e isso levou Viganò a pedir a renúncia de Francisco. A denúncia se tornou infundada e apressa o fato de que Francisco deu passos mais sólidos em relação aos abusos sexuais do que deram seus antecessores. Este ainda é um mal que existe na Igreja e é um mal que envergonha a todos. Há que agir com rigor e seriamente. Mas a denúncia se mostrou infundada e revelou toda uma articulação política para desestabilizar Francisco, tendo para isso o apoio de grupos e empresários, como Steve Bannon, estrategista e especulador político ligado ao governo Trump, que também tem influência nos pleitos políticos de outros países, como no Brasil, onde também Bannon articulou a campanha de Bolsonaro, sobretudo pela manipulação das redes sociais.
7) O Sínodo da Amazônia oferece dois momentos com Francisco: um primeiro, a percepção de que ele estava em paz e se sentindo bem com toda a proposta que estava sendo desenhada. Estava envolvido e fazia pulsar seu ardor missionário. O Sínodo foi profético e com coragem tocou em pontos centrais e objetivos, não apenas para pensar a Amazônia, mas para pensar toda a Igreja. No entanto, há uma dificuldade de a Igreja se entender sinodal, de aprender a caminhar junto e de se abrir e oferecer novas respostas. Isso fez com que este evento fosse alvo de especulação e de inúmeras ofensas ligadas a grupos mais conservadores, que acusavam Francisco de ferir pontos centrais da fé cristã e católica. O Sínodo produziu um documento final profético, que tem o seu valor magisterial e deve ser estudado e aplicado (QA 2,3), e também ofereceu uma exortação [Querida Amazônia-QA], a qual nos chama a atenção para quatro sonhos, sendo que um deles era o sonho eclesial, e neste sonho, a pressão estrutural que ainda pesa na Igreja se tornou mais forte e muito do que era esperado não ocorreu. A chave agora, é o retomar do Relatório Final, que tem sua autoridade e que vai exigir uma postura criativa e ousada da parte da Igreja que está na Amazônia, e que pode oferecer um caminho. É o que se espera e um ponto que devemos trabalhar para ajudar. O processo sinodal não se encerrou.
É fácil de perceber que estes poucos exemplos [são muito mais e maiores] estão na alta estrutura e representam uma dimensão da Igreja que não quer sair. Chega a ser irônico e este é um paradoxo interessante, porque faz sete anos que Francisco insiste em uma Igreja em saída, porém, esta Igreja, na estrutura que está não quer sair. Faz-se necessário questionar então qual deve ser a Igreja dessa saída, para que se possa avançar e caminhar com liberdade e profetismo, uma vez que o peso institucional coloca obstáculos que nos impedem de ver o que o Espírito quer nos mostrar, insistentemente. Penso que três perguntas podem ser colocadas aqui e elas podem ajudar este discernimento: Por que saímos? Por quem saímos? Para onde saímos?... Por que, por quem e para onde?... Se estas três perguntas não forem bem respondidas, corre-se o risco de sair com a estrutura e esta não apresentar o rosto do Evangelho, que é convidativo e esperançoso, transfigurado num Cristo ressuscitado que é alcançado pelo caminho do crucificado, que pode ser seguido na ótica do Reino, que se traduz por um caminho de amor, justiça e paz, como anunciou a Conferência de Medellín, em 1968. Portanto, é necessário sair e rever toda a estrutura, já que esta que temos conosco não quer sair e está fechada em si mesma.
É o que nos leva a descer ainda mais na nossa reflexão, já que Francisco insiste muito contra o clericalismo, sendo este um dos grandes males da Igreja. E, por certo, os outros problemas e pecados eclesiais decorrem deste ou são alimentados por este. Perguntamos: será que nestes sete anos de Francisco conseguimos avançar para uma Igreja menos clerical? Obviamente que não, é notório, pois esta enfermidade está entranhada na estrutura, vem sendo solidificada há muitos anos, ela alimenta o modelo de formação dos atuais e futuros sacerdotes e se alimenta da pouca e dificultosa formação de nossos leigos e leigas. A Igreja communio que foi pensada no Vaticano II torna-se utópica, já que se insiste, em várias matrizes, e em vários ângulos, com a proposta hierárquica, firmando pé em um modelo institucional que já não responde aos desafios e que ficou preso em um passado. E o pior é que não se entende aqui a hierarquia como proposta de serviço [que é e deveria ser a sua função], mas como espaço de poder, e é daí que surgem todos os problemas. Como consequência, a dimensão Povo de Deus, que foi a grande novidade conciliar, deixa de acontecer.
Ora, se entendemos que a Igreja é povo, Povo de Deus, é necessário se questionar: quem é este Povo? Que voz ele tem? E por que, de dentro deste Povo, alguns insistem em levantar a voz mais forte, não com autoridade gerada pela comunidade, mas num posicionar-se com status de poder, dominando e tornando pequenos os demais? Perde-se o valor do batismo e anula-se, em parte, a proposta de um Reino que deve ser construído a partir da promoção humana, do resgate dos últimos e da autêntica opção pelos pobres, pelo resgate das vítimas e pela palavra profética que a Igreja deve ter contra os poderosos que, ao contrário do Evangelho, deixam cada vez mais os nossos pobres de mãos vazias, destronados de seus direitos e rebaixados na sua dignidade.
Sim, há muito o que celebrar com Francisco em seus sete anos de Pontificado. Não há dúvidas de que ele é um dom, um presente para a Igreja e para o mundo. Por certo há limites na sua pessoa e na sua interpretação dos fatos, no seu modo de gerir a Igreja, na sua condição de pastor e de humano. Ele não responde a todos os nossos anseios e isso se faz compreensível. Ele se assume como pecador, ele mesmo o diz, e é bom também que Francisco nos ajude a dessacralizar o papado, sendo um com o povo, mesmo sabendo de sua importância e responsabilidade na condução de todos nós. Cristo deve ser o centro e é o seu Espírito que nos conduz à realidade do Reino, que nos é oferecido, prometido, mas para o qual também somos chamados a construir, como resposta, como atitude responsável de fé e de esperança. Isso se faz com caminhos, isso se faz com encontros, isso se faz na abertura.
Na proposta de Igreja em saída de Francisco, ele nos encoraja a sair, a ousar, a se envolver, a se rebaixar e a celebrar (EG 24), e isso se faz necessário. O mundo hoje precisa de um novo pulsar, de uma nova referência e de um novo encontro. Que possamos ser este sinal e favorecer o encontro de realidades, numa cultura do encontro, onde o fraco se torna forte, onde o perdido é encontrado e o que é morto volta a viver. Hoje, o mundo nos traz descrença e desesperança, ele nos divide e não permite uma mesa comum, onde o pão é repartido. Penso que a novidade do Evangelho e que se pulsa em alegria entra justamente aí, como resposta, como amor que transforma e nos impele a uma ação. É o transformar e o florescer de um mundo novo, trazido pelo Cristo que ressuscitou e que penetrou na trama da história humana (EG 278). Que possamos sentir esta esperança e que possamos realmente sair, sair ao encontro de uma esperança viva.
Parabéns, Francisco! São sete anos que nos interpelam e nos questionam no ser Igreja. Que possamos ter coragem para sair e que o Espírito nos impulsione e nos alimente, sempre.
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Desafios de uma Igreja em saída: avanços e resistências em sete anos de Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU