07 Janeiro 2020
Reforma da Cúria, novos cardeais e viagens a lugares inesperados irão moldar o ano de 2020 do papa.
A reportagem é de Robert Mickens, publicada por La Croix International, 02-01-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Anno Domini MMXX.
Quando a história da época do Papa Francisco como Bispo de Roma estiver finalmente escrita, haverá uma grande chance de que o Ano do Senhor de 2020 seja lembrado como o mais importante de todo o seu pontificado. Alguns se perguntam até mesmo se este não será, na verdade, o seu último ano.
As decisões recentes do papa de “aposentar” o poderoso eclesiástico italiano Angelo Sodano como decano do Colégio Cardinalício e de tornar o Cardeal Luis Antonio Tagle, das Filipinas, no chefe do dicastério mais poderoso do Vaticano – o Propaganda Fide – estão sendo interpretadas como um sinal de que Francisco começa a se preparar para a eleição de seu sucessor na Cátedra de Pedro.
O papa jesuíta de 83 anos também publicará importantes documentos em 2020, e provavelmente alguns outros também. Ele continuará viajando pelo globo, possivelmente indo a lugares aonde os antecessores desejaram ir, mas tiveram negadas suas entradas. E não há dúvida de que ele acrescentará mais figuras ao ilustre grupo dos cardeais a partir dos quais irá surgir o próximo Bispo de Roma.
Assim, independentemente de como vemos este novo ano civil, ele certamente se mostrará de fundamental importância.
O Papa Francisco deve publicar pelo menos dois documentos extremamente importantes nas primeiras semanas de 2020.
O primeiro destes textos é uma exortação apostólica com base na mais recente assembleia especial do Sínodo dos Bispos para a Região Pan-amazônica, ocorrida em outubro passado. Francisco já deu a entender que endossará uma série de mudanças na prática pastoral a ele propostas pelos participantes do evento.
Uma dessas alterações é a ordenação sacerdotal dos viri probati (homens casados de virtude comprovada), especificamente aqueles que já são diáconos permanentes. Uma outra é o estabelecimento de uma nova comissão papal para estudar a possibilidade de se instituir o diaconato e outros ministérios para as mulheres. E uma terceira mudança é a compilação de um novo rito litúrgico para incorporar elementos culturais particulares aos povos nativos amazônicos.
É provável que esta aguardada exortação apostólica pós-sinodal abra outros espaços de reforma também. Portanto, não devemos subestimar a sua relevância.
Como já dito, a assembleia sinodal ocorrida entre os dias 6 e 27 de outubro passado no Vaticano marcou um ponto de inflexão para o surgimento de uma Igreja verdadeiramente global. É uma Igreja que ainda luta para se libertar dos elementos residuais da era tridentina (especialmente o clericalismo) que continuam sendo um obstáculo à implementação plena dos ensinamentos e da visão do Concílio Vaticano II (1962-1965).
Analistas acreditam que a exortação por vir será publicada na segunda quinzena de janeiro.
O segundo grande documento que o Papa Francisco publicará em 2020 é a constituição da estrutura reformada e do papel dos departamentos (dicastérios) centrais da Igreja, conhecidos como a Cúria Romana.
O rascunho final desta constituição, chamada Praedicate Evangelium, está sendo trabalhado para incluir as sugestões submetidas por conferências episcopais, outros líderes eclesiásticos e teólogos. A versão finalizada deverá conter itens que não estiveram nos rascunhos anteriores compilados pelo Conselho dos Cardeais (antes formado por nove membros, hoje por seis) em consulta às autoridades da Cúria.
Quase todos concordam que a reforma da Cúria Romana é um dos maiores projetos e principais objetivos do pontificado de Francisco. Lenta e pacientemente, o papa argentino vem conduzindo este processo de reforma. Em um discurso importante proferido pouco antes do Natal aos membros da Cúria, ele assim falou:
“Hoje, abordando o tema da mudança que se baseia principalmente na fidelidade ao depositum fidei e à Tradição, desejo voltar à implementação da reforma da Cúria Romana, reiterando que esta reforma nunca teve a presunção de proceder como se nada tivesse existido antes; pelo contrário, procurou-se valorizar quanto de bom se fez na complexa história da Cúria. É uma obrigação valorizar a sua história para construir um futuro que tenha bases sólidas, que tenha raízes e por isso possa ser fecundo. Fazer apelo à memória não significa ancorar-se na autoconservação, mas recordar a vida e a vitalidade dum percurso em desenvolvimento contínuo. A memória não é estática, mas dinâmica. Por sua natureza, implica movimento. E a tradição não é estática, é dinâmica, como dizia aquele grande homem [G. Mahler]: a tradição é a garantia do futuro e não a custódia das cinzas”.
Alguns analistas do Vaticano dizem que o texto de Praedicate Evangelium será lançado em 22 de fevereiro, dia da Cátedra de São Pedro. Mas independentemente de quando for publicada, a nova constituição da Cúria Romana será o ato de governo mais significativo até então neste pontificado.
Essa constituição será seguida pela publicação de um novo conjunto de estatutos e regulamentos para as operações diárias dos dicastérios vaticanos. Em particular, o documento estará marcado pela promoção de um protagonismo maior, mais generalizado na Igreja.
Nove cardeais que atualmente lideram postos centrais no Vaticano já estão além da idade de aposentadoria normal, de 75 anos, e um décimo, os quais recentemente completaram cinco anos de serviço local, alcançará a idade de renunciar em junho.
Espera-se que eles todos sejam substituídos em algum momento não muito depois da publicação de Praedicate Evangelium.
A seguir, os nomes e departamentos dos cardeais que virão a se aposentar este ano: Marc Ouellet (Bispos), Giuseppe Versaldi (Educação), Beniamino Stella (Clero), Luis Ladaria (Doutrina da Fé), Leonardo Sandri (Igrejas Orientais), Mauro Piacenza (Penitenciaria Apostólica), Gianfranco Ravasi (Cultura), Angelo Comastri (arcipreste da Basílica de São Pedro), Giuseppe Bertello (governador do Estado da Cidade do Vaticano) e Robert Sarah (Culto Divino).
O Papa Francisco fará também algumas nomeações importantes para uma série de dioceses de destaque ao redor do mundo. Por exemplo, as arquidioceses de Manila (Filipinas), Atlanta (EUA) e Caracas (Venezuela) estão atualmente vacantes.
Lideranças eclesiásticas que já passaram da idade de aposentadoria – 18 deles cardeais – continuam a dirigir sés importantes. E, a começar por Christoph Schönborn, de Viena, que completará 75 anos em poucas semanas, nove outros cardeais chegarão a esta idade ao longo de 2020.
Embora o pontífice vá pedir a alguns deles que continuem no ministério atual por mais ou ano aproximadamente, espera-se que os outros sejam substituídos. Caberia a ele aproveitar a oportunidade que estes aniversários oferecem e fazer uma transformação no comando da Igreja.
Hoje, há 124 cardeais abaixo dos 80 anos e elegíveis para participar de um conclave a eleger o próximo papa. São quatro a mais do que o teto de 120 definido por Paulo VI e confirmado pelos antecessores mais recentes de Francisco.
Não havendo falecimentos entre os eleitores, o número deles não voltará a 120 até o próximo dia 12 de novembro, quando Donald Wuerl, cardeal-arcebispo emérito de Washington, completará 80 anos.
O fato de outros cardeais eleitores só alcançarem a idade de aposentadoria a partir de março de 2021 (outros cinco alcançarão 80 anos daí até novembro de 2021) sugere que não haverá consistório em 2020. Mas, na realidade, não podemos ter certeza aqui.
Francisco ainda precisa publicar uma legislação e normas atualizadas a serem seguidas assim que a Sé Apostólica fique vacante e um novo Bispo de Roma seja eleito. Essa necessidade de uma atualização na forma de uma constituição apostólica se faz urgente, visto que inexistem normas ou protocolos para a renúncia de um papa.
Além disso, certas mudanças por vir na estrutura e nas funções da Cúria Romana também precisarão estar incluídas na nova constituição. Uma delas provavelmente dirá respeito ao camerlengo apostólico, funcionário que serve de administrador quando a Sé Apostólica fica vacante.
O papa nomeia livremente o camerlengo (hoje é o Cardeal Kevin Farrell). Mas no esboço de Praedicate Evangelium, afirma-se que o camerlengo é “um ofício assumido pelo cardeal que é o coordenador do Conselho para a Economia”.
A pessoa nesta função hoje é o Cardeal Reinhard Marx, arcebispo de Munique e membro do Conselho dos Cardeais.
Francisco igualmente tem a liberdade para mudar o número de cardeais eleitores, como outros papas fizeram ao longo dos séculos, dado que o Colégio Cardinalício é uma invenção puramente humana. A questão é se este papa fará algo nesse sentido.
Mesmo em caso negativo, não há nada que o impeça de exceder o limite uma vez mais, como fez João Paulo II em algumas ocasiões.
O falecido papa polonês ficou conhecido por suas inúmeras viagens ao redor do mundo, fazendo mais de 100 excursões pastorais a cerca de 129 países diferentes em seus quase 27 anos como Bispo de Roma.
Já o Papa Francisco fez 32 viagens ao estrangeiro, visitando 50 países em seu pontificado, que hoje tem sete anos de vida. Em 2015, o papa argentino foi o primeiro a visitar uma zona de guerra em curso (a República Centro-Africana) e, no ano passado, foi o primeiro papa da história moderna a visitar a Península Arábica (os Emirados Árabes Unidos).
Há dois outros países que Francisco anseia visitar, ambos os quais escaparam à vontade de João Paulo. Eles são a China e a Rússia. Talvez 2020 seja o ano em que um Pontífice Romano finalmente viaje para estes destinos há tempos cobiçados.
O Papa Francisco começou este Ano Novo desculpando-se por ter perdido a paciência. Quem sabe, temos aí um sinal auspicioso. Antes de mais nada, por mostrar que o papa tem a humildade de admitir publicamente que errou e que sente muito.
Mas, em segundo lugar, por mostrar que, por debaixo de uma demonstração de irritação aparentemente desprotegida, há também um senso de urgência e inquietação dentro de Francisco.
O que pode ser uma ótima notícia aos que aguardam ansiosos por reformas estruturais concretas para mudar a mentalidade e o ethos trazidos efetivamente pelo papa argentino à Igreja.
Ninguém conhece o futuro, mas o Ano do Senhor de 2020 parece que pode ser um dos mais fundamentais para a história recente do catolicismo romano.
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Francisco começa o ano mais importante de seu pontificado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU