12 Março 2020
"Na Amazônia, no âmbito do Antropoceno, atividades humanas têm modificado irreversivelmente vários ecossistemas, em especial a floresta. Há ali uma grande riqueza de comunidades humanas que souberam aproveitar a enorme produtividade biológica local para produzir alimentos e seus usos da terra tiveram baixo impacto na integridade da floresta. Mas há também vários elementos de pressão e de impacto humano na região, e reconhece-se como os principais a exploração madeireira, a expansão agropecuária e mineradora e as obras de infraestrutura", escreve Ima Célia Guimarães Vieira, pesquisadora do Museu Paraense Emilio Goeldi e perita no Sínodo para a Amazônia.
A humanidade encontra-se em um período de vigorosas transformações socioambientais e vários sinais, incluindo o crescimento populacional, o elevado padrão de consumo, a poluição urbana, as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade, indicam que estamos em uma trajetória insustentável. O Planeta já apresenta as contas das consequências de sua exploração desenfreada e estamos pagando por isso todos os dias.
Na Encíclica papal Laudato Si, de 2015, o Papa Francisco reconhece que os padrões insustentáveis de produção e consumo da sociedade global, impulsionados pelo abuso no uso de tecnologia, levam à degradação das relações humanas e à degradação do planeta e difunde uma perspectiva ecológica abrangente - uma ecologia integral - que nos remete à inseparável relação existente entre as questões social e ambiental. A partir desta encíclica, a Igreja se coloca no campo ecológico, de alcance internacional, ajudando a gerar uma conscientização da sociedade em prol da conservação do meio ambiente.
Aos olhos do mundo, a ecologia de Francisco parece ser uma oportunidade para que a Igreja se torne uma aliada na luta contra as mudanças ambientais globais, que tem mobilizado a comunidade científica internacional e gerado enorme interesse na sociedade. A preocupação com o cuidado da “Casa Comum”, que é como o Papa chama o planeta, está no centro do seu pensamento socioambiental, que entende que os efeitos mais graves da crise ambiental planetária recaem sobre os mais pobres. Para ele, a paz, a justiça e a conservação da Casa Comum são três questões absolutamente interligadas.
Na Amazônia, no âmbito do Antropoceno, atividades humanas têm modificado irreversivelmente vários ecossistemas, em especial a floresta. Há ali uma grande riqueza de comunidades humanas que souberam aproveitar a enorme produtividade biológica local para produzir alimentos e seus usos da terra tiveram baixo impacto na integridade da floresta. Mas há também vários elementos de pressão e de impacto humano na região, e reconhece-se como os principais a exploração madeireira, a expansão agropecuária e mineradora e as obras de infraestrutura.
Já em 1982, o compositor paraibano Vital Farias profetizava a tragédia ambiental em sua música-denúncia, Saga da Amazônia, que sintetiza de forma brilhante, a guerra desigual travada na floresta entre a cobiça e o sentido de conservação ambiental na Amazônia. Destaco aqui alguns de seus versos:
“Era uma vez na Amazônia, a mais bonita floresta
Mata verde, céu azul, a mais imensa floresta
No fundo d'água as iaras, caboclo lendas e mágoas
E os rios puxando as águas
(...) Fizeram logo o projeto sem ninguém testemunhar
Prá o dragão cortar madeira e toda mata derrubar:
Se a floresta meu amigo tivesse pé prá andar
Eu garanto meu amigo, com o perigo não tinha ficado lá...
(...) No lugar que havia mata, hoje há perseguição
Grileiro mata posseiro só prá lhe roubar seu chão
Castanheiro, seringueiro já viraram até peão
Afora os que já morreram como ave-de-arribação
Zé da Nana tá de prova, naquele lugar tem cova
Gente enterrada no chão:
(...) Pois mataram índio que matou grileiro que matou posseiro
Disse um castanheiro para um seringueiro que um estrangeiro
Roubou seu lugar (...)
Passados quase 40 anos desde o lançamento dessa música, a Amazônia ainda se encontra em situação de perigo e enfrenta um desastre ecológico que ameaça tanto o bioma como os seus povos.
Diante da brutal transformação da Amazônia e de seus impactos sobre as populações que ali vivem, o Sínodo para a Amazônia, realizado em outubro de 2019, desponta como um sopro de esperança e conduz a Igreja ao compromisso de assumir o novo paradigma da ecologia integral, o cuidado da Casa Comum e a defesa da Amazônia e de seu povo. Desafia a sociedade a mudanças individuais e coletivas e aponta os caminhos para um modelo de desenvolvimento justo e solidário a ser construído junto com as populações amazônicas - “Junto aos povos amazônicos e ao seu horizonte do “bem viver”, chamamos a uma conversão ecológica individual e comunitária que salvaguarde uma ecologia integral e um modelo de desenvolvimento em que os critérios comerciais não estejam acima do meio ambiente e dos direitos humanos” (Documento final n.58).
As propostas do Sínodo em torno do encontro e do diálogo se apresentam como vanguarda de uma discussão sobre os caminhos da Igreja na Amazônia, que se aprofunda em torno da justiça social e da defesa dos povos amazônicos e do meio ambiente como um bem coletivo, fruto de um novo olhar marcado pelos valores do cuidado e da sustentabilidade.
Neste contexto, é que juntamente com dois outros colegas, a professora Marcia Oliveira, da Universidade Federal de Roraima, e o Monsenhor Raimundo Posidônio Mata, professor da Universidade Católica de Belém, produzimos os “Dez Mandamentos do Sínodo para a Amazônia”, como uma contribuição ao debate pós-sinodal e como forma de sintetizar as principais questões que nós, peritos do Sínodo, achamos mais relevantes.
A exemplo do decálogo mais conhecido, os Dez Mandamentos, este decálogo também se compõe de pequenas frases com instruções diretas, porém começando com partícula positiva.
1º Mandamento: amazonizarás a Igreja de forma a acolher as culturas e tradições amazônicas como expressão do Espírito de Deus que conduz os povos e a vida.
2º Mandamento: defenderás os direitos dos mais vulneráveis (e da natureza) e fortalecerás a luta em defesa da vida, da justiça e dos direitos humanos.
3º Mandamento: terás consciência da dramática situação de destruição que afeta a Amazônia e seus povos.
4º Mandamento: não pecarás contra as gerações futuras em atos e hábitos de contaminação e destruição da harmonia do meio ambiente amazônico.
5º Mandamento: buscarás mudanças radicais e urgentes em direção a um modelo de existência social e de relação com a natureza que permita salvar a Amazônia, garantir o Bem Viver e a convivência com o bioma.
6º Mandamento: reconhecerás com admiração e protegerás aqueles e aquelas que lutam, com grande risco de suas próprias vidas, para defender o território e o povo amazônico.
7º Mandamento: assumirás o diálogo ecumênico, inter-religioso e intercultural como o caminho irrevogável da evangelização na Amazônia.
8º Mandamento: fortalecerás e renovarás os Ministérios Leigos, a Vida Consagrada, o presbiterato e o diaconato, com identidade amazônica, fortalecendo as vocações autóctones e priorizando uma missão pautada numa presença constante, numa escuta atenta e no compromisso com a libertação.
9º Mandamento: ouvirás as vozes das mulheres para tomar decisões e contribuir com sua sensibilidade à sinodalidade eclesial reconhecendo e valorizando o seu protagonismo no cuidado com a Casa Comum.
10º Mandamento: viverás uma igreja em saída, pautada na sinodalidade, comprometida com a defesa da vida na Amazônia e para a Amazônia.
Esses Dez Mandamentos do Sínodo indicam-nos a direção a percorrer para a construção de uma Igreja em saída e sociedades justas e solidárias, em torno de uma região tão importante e querida. O alcance dos Dez Mandamentos do Sínodo é reforçado e se amplia a partir da Exortação Apostólica pós-sinodal, “Querida Amazônia”, anunciada pelo Papa Francisco, em 12 de fevereiro de 2020.
Nesta exortação, o grito da floresta, das águas e dos povos são anunciados em sonhos e poesias pelo Papa Francisco, a partir da constatação de que “nas condições atuais, com este modo de tratar a Amazônia, tanta riqueza de vida e de tão grande beleza está tomando o rumo do fim” (n. 45). Mas há também, um apelo para o cuidado com a Amazônia, vinculando este cuidado com o cuidado do meio ambiente e do ser humano.
A carta papal “Querida Amazônia” cultiva uma Amazônia de esperança, já lançada pelo Sínodo, e aponta a educação e a conversão ecológica individual e coletiva como ingredientes das mudanças - “Não haverá uma ecologia sã e sustentável, capaz de transformar seja o que for, se não mudarem as pessoas, se não forem incentivadas a adotar outro estilo de vida, menos voraz, mais sereno, mais respeitador, menos ansioso, mais fraterno” (n. 58).
Dando voz aos poetas, o Papa Francisco apresenta seus argumentos articulando-os em quatro sonhos (n. 7), que correspondem às cinco conversões do Documento Final do Sínodo.
“Sonho com uma Amazónia que lute pelos direitos dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos, de modo que a sua voz seja ouvida e sua dignidade promovida”.
“Sonho com uma Amazónia que preserve a riqueza cultural que a carateriza e na qual brilha de maneira tão variada a beleza humana”.
“Sonho com uma Amazónia que guarde zelosamente a sedutora beleza natural que a adorna, a vida transbordante que enche os seus rios e as suas florestas”.
“Sonho com comunidades cristãs capazes de se devotar e encarnar de tal modo na Amazónia, que deem à Igreja rostos novos com traços amazônicos”.
O desejo de dar significado e interpretar os sonhos do Papa Francisco, me levou a procurar os elementos da Exortação “Querida Amazônia” que o motivam interiormente, a partir dos quais se lançam como perspectivas que ele vislumbra para a Amazônia e que ressoam como os caminhos a serem percorridos pela Igreja e pela sociedade. Sugiro, assim, alguns desafios a serem enfrentados, sob a forma de um decálogo, que se articulam com os Dez Mandamentos do Sínodo, aqui apresentados.
1º: de uma Igreja ao lado dos oprimidos e com a voz forte dos pobres na Amazônia.
2º: do diálogo social e inter-religioso, do respeito e do encontro que ajudem no cuidado e no crescimento da Amazônia.
3º: de apreciar a beleza do território, a diversidade, a sabedoria e a riqueza cultural dos povos da Amazônia.
4º: do cuidado do meio ambiente e das pessoas e de intervenção no território de forma sustentável, junto com os atores sociais locais, preservando seus estilo de vida e valores.
5º: de escutar o grito do rio Amazonas e de entrar em comunhão com a floresta, unindo nossas vozes e as transformando em choro e oração.
6º: de uma Igreja com rosto amazônico para permitir e incentivar uma renovada inculturação do Evangelho na Amazônia.
7º: de sacramentos inclusivos e acessíveis a todos, e de uma Igreja que tenha um cuidado especial em compreender, consolar e integrar os mais necessitados.
8º: de mais missionários e mais leigos comprometidos com o desenvolvimento de uma cultura eclesial própria na Amazônia.
9º: de mais mulheres protagonistas na Amazônia, com participação real e efetiva na organização, nas decisões mais importantes e na guia das comunidades.
10º: do transbordamento, com coragem e generosidade, que transcenda oposições dialéticas e que busque trajetórias mais amplas e ousadas de atuação da Igreja na Amazônia.
Ao colocar a Igreja, com sua experiência e consciência, para “contribuir para o cuidado e o crescimento da Amazônia” (n. 60), o Papa Francisco mostra coragem, atenção e reforça a construção dos novos caminhos para a Amazônia, discutidos ao longo do processo sinodal, acalanta o sonho de uma Igreja de rosto novo com traços amazônicos e traz esperança em sua convocação para “avançar por caminhos concretos que permitam transformar a realidade da Amazônia e libertá-la dos males que a afligem” (n.111). Ele nos ensina que a esperança “é a virtude que nos coloca a caminho, dá asas para continuar, mesmo quando os obstáculos parecem intransponíveis” (Papa Francisco, 9 de janeiro de 2020).
Cabe a nós mantermos as esperanças e trilharmos os caminhos apontados pelo Sínodo e pela Exortação apostólica pós-sinodal para a nossa “Querida Amazônia”.
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Decálogos do Sínodo e da Exortação pós-sinodal “Querida Amazônia” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU