13 Fevereiro 2020
“O modelo extrativo dominante tem trazido resultados calamitosos, causando estragos na Amazônia e a seus povos. A fim de avançar e reverter este modelo destrutivo-extrativista, precisamos urgentemente abraçar uma terceira via, um caminho que cultive a Amazônia sem destruí-la, um caminho que trabalhe com a população local sem a colonizar (cf. QA, 28), um caminho que conjugue as culturas ancestrais indígenas com as técnicas contemporâneas”, afirmou Carlos Nobre, cientista brasileiro, ao apresentar, em Roma, a Exortação Apostólica “Querida Amazônia”.
Segundo ele, “a comunidade científica está ansiosa para ver os sonhos sociais, culturais, pastorais e ecológicos do papa virarem realidade. Com os povos originários sendo os protagonistas deste novo caminho, com a riqueza da diversidade cultural e biológica da região, e com os católicos mobilizando-se para promover a inclusão e a sustentabilidade, os novos modelos de produção que cuidam da Amazônia poderão acontecer, e os sonhos do Papa Francisco tornar-se-ão realidade”.
O artigo é publicado por Sala de Imprensa da Santa Sé, 12-02-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Na qualidade de cientista que trabalha na área da ecologia há mais de 35 anos, especialmente nas questões ecológicas da região amazônica, dou as boas-vindas à exortação do Papa Francisco Querida Amazônia (QAm). Claro está que tanto a exortação quanto o Documento Final do Sínodo dos Bispos, a que a exortação faz referência (cf. QAm, 2, 3), têm inspiração na encíclica Laudato Si’: Sobre o cuidado da casa comum (2015). Alguns bispos, como o Cardeal Pedro Barreto, do Peru, têm chamado este sínodo de o “filho da Laudato Si’”. A presente exortação apostólica pode bem ser a filha de Laudato Si’.
A Laudato Si’ e seus filhos são mensagens éticas e espirituais fundamentadas na ciência, mas não em qualquer ciência. Todas estas mensagens são compatíveis com o melhor das pesquisas científicas disponíveis hoje. Em nome da comunidade científica, eu gostaria de endossar plenamente as proposições socioecológicas de “Querida Amazônia” e de seu irmão, o Documento Final do Sínodo para a Amazônia, “Amazônia: Novos Caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral”.
Permitam-me brevemente comentar sobre alguns pontos da exortação relacionados à minha especialidade científica.
O Papa Francisco exorta-nos para que busquemos uma produção agrícola sustentável, pois os agronegócios atuais da região são insustentáveis (cf. QA, 17). Ele também nos exorta a buscar fontes não poluentes de energia, pois as fontes energéticas com origem nos combustíveis fósseis estão poluindo a Amazônia – e o planeta inteiro (ibidem). O papa ainda quer que criemos empregos decentes que não comprometam a dignidade dos trabalhadores, nem a vida cultural e os ecossistemas (ibidem). Francisco propõe que construamos um modelo de desenvolvimento na Amazônia – e no mundo – no qual ninguém é deixado para trás (ibidem) e onde a natureza é preservada.
Isso, é claro, requer a participação das comunidades indígenas (cf. QA, 26), que são os melhores guardiões das florestas e que podem nos ensinar como trabalhar com, cuidar da, e amar a Amazônia (cf. QAm, 55). Por exemplo, durante milhares de anos os índios têm praticado um tipo sustentável de agricultura que preserva a biodiversidade, cuidando das espécies atualmente ameaçadas – como o açaí – e que permite a restauração da floresta, por exemplo, com a rotação de pequenas áreas de cultivo em regiões desmatadas.
Podemos argumentar que a sabedoria ancestral indígena não basta para cultivar a riqueza da Amazônia sem desenraizá-la ou enfraquecê-la (cf. QAm, 28). Por essa razão, concordo com o Papa Francisco quando explica que, a fim de cuidarmos da Amazônia, precisamos conjugar a sabedoria ancestral indígena com os conhecimentos técnicos contemporâneo (cf. QAm, 51). Na verdade, como escreveu o Sínodo dos Bispos no Documento Final, a combinação da ciência e das tecnologias avançadas com o conhecimento local tradicional pode gerar uma bioeconomia inovadora de florestas em pé e rios correntes (cf. Doc Final, 11), a qual pode substituir o modelo atual de produção que vem levando ao desmatamento. Seria uma “ecologia integral” em ação que pode fomentar o “pleno desenvolvimento do gênero humano” (LS, 62).
Por muitas décadas, o debate sobre a Amazônia dividia-se em duas visões opostas: uma da conservação pura, ao ponto de ignorar as necessidades das comunidades locais; a outra do desenvolvimento intensivo dos recursos, baseado na extração de minérios, petróleo e gás, desmatamento, energia hidrelétrica e commodities agrícolas. Ironicamente, toda esta exploração é feita para alimentar os mercados de fora – e longe – da Amazônia.
Este modelo extrativo dominante tem trazido resultados calamitosos, causando estragos na Amazônia e a seus povos. A fim de avançar e reverter este modelo destrutivo-extrativista, precisamos urgentemente abraçar uma terceira via, um caminho que cultive a Amazônia sem destruí-la, um caminho que trabalhe com a população local sem a colonizar (cf. QA, 28), um caminho que conjugue as culturas ancestrais indígenas com as técnicas contemporâneas.
Para concluir, como cientista sei que a floresta amazônica é como o “coração biológico” da Terra. Dado que nós humanos não podemos viver sem um coração, o planeta (pelo menos, o planeta que conhecemos) não pode viver sem a Amazônia. Mas a Amazônia tem lutado, clamado, a ponto de estarmos perto de atingir um momento crítico e passar de uma das maiores florestas tropicais do mundo para uma savana. Isso terá consequências terríveis para o território amazônico, para os povos que aí vivem e para o resto do mundo.
Para evitar que isso aconteça, e para responder ao clamor da Amazônia e para manter em boa saúde o coração da Terra, precisamos imediatamente abandonar o modelo atual que destrói a floresta, polui seus rios e não traz bem-estar às pessoas.
Convencido estou de que este importante apelo do Papa Francisco vai encorajar a Igreja Católica inteira a desempenhar este importante e profético papel na Amazônia e além. A comunidade científica está ansiosa para ver os sonhos sociais, culturais, pastorais e ecológicos do papa virarem realidade. Com os povos originários sendo os protagonistas deste novo caminho, com a riqueza da diversidade cultural e biológica da região, e com os católicos mobilizando-se para promover a inclusão e a sustentabilidade, os novos modelos de produção que cuidam da Amazônia poderão acontecer, e os sonhos do Papa Francisco tornar-se-ão realidade. Obrigado a você, Papa Francisco, por esta inspiradora exortação.
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“A floresta amazônica é como o “coração biológico” da Terra. O planeta (pelo menos, o planeta que conhecemos) não pode viver sem a Amazônia” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU