“Querida Amazônia”: Papa Francisco sonha e nos desperta novamente. Artigo de Pierluigi Consorti

O papa Francisco recebeu, durante o Sínodo, planta de indígena da região da Amazônia. | Foto: Vatican News

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14 Fevereiro 2020

Talvez não tenhamos toda essa necessidade de padres – sejam eles celibatários ou casados –, mas sim de homens e de mulheres que anunciem o Evangelho e cuidem uns dos outros.

A opinião é de Pierluigi Consorti, advogado italiano, professor da Universidade de Pisa e especializado em direito eclesiástico, em artigo publicado por seu blog na página da universidade, 13-02-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Nessa quarta-feira, 12, foi apresentada ao público a exortação apostólica pós-sinodal “Querida Amazônia”, que era muito aguardada, principalmente porque o documento final do Sínodo, entre muitas coisas, apresentava um parágrafo (n. 111) que continha uma proposta à autoridade competente para que estabelecesse “critérios e disposições para ordenar sacerdotes a homens idôneos e reconhecidos pela comunidade, que tenham um diaconato permanente fecundo e recebam uma formação adequada para o presbiterado”.

Essa proposta foi sentida por muitos como uma fresta através da qual se poderia introduzir uma exceção à regra do celibato compulsório, que alguns desejam, e outros, ao contrário, abominam como uma concessão ao século.

Como já observei, o celibato obrigatório não é um dogma de fé, e a Igreja Católica também já conhece clérigos casados. Por esse motivo, a proposta sinodal nunca me pareceu audaciosa demais, pois se limita a pedir que – dada a excepcionalidade da situação amazônica – clérigos já casados (tais são os diáconos permanentes) pudessem, sob determinadas condições [1], ser ordenados presbíteros [2].

De todos os modos, em torno dessa proposta, adensaram-se esperanças e temores, e muitos aguardavam uma palavra definitiva do papa, implicitamente considerado como “a autoridade competente” para estabelecer critérios e disposições a esse respeito. Uma expectativa legítima, dado que os católicos estão habituados a imaginar o papa como autoridade suprema e absoluta, a quem cabe a última palavra sobre todas as coisas.

Em vez disso, o Papa Francisco deixou todos um pouco pasmos. Ele formulou uma exortação apostólica pós-sinodal dirigida ao povo de Deus e a todas as pessoas de boa vontade (enquanto a Amoris laetitia, por exemplo, era dirigida apenas aos fiéis católicos) e a dirigiu a partir de São João de Latrão – onde está a sua cátedra episcopal – em vez de São Pedro – a partir de onde ele exerce o ministério petrino.

Mas, acima de tudo, ele optou por se expressar em tom profético, como um velho que sonha, e não como um papa que reina. Um velho que sonha graças à escuta das perguntas e das propostas que o Sínodo formulou no documento que a exortação apresenta oficialmente, convidando todos a lerem-no na íntegra para se comprometerem com a sua aplicação e se deixarem inspirar, assim como ele fez.

Na verdade, pela primeira vez, estamos diante de um texto magisterial poético, que não dispõe, mas convida a sonhar. E que sonhos! Sonhos grandes, que colocam a famosa proposta dos viri probati como um dos muitos desafios lançados pelo Sínodo: por assim dizer, o 111º de 120!

Entendo bem que o teólogo esperava algo mais, e o canonista buscava a norma definitiva. Francisco, porém, não é o bispo da última palavra, mas sim o pastor que inicia processos. Não é aquele que os guia, mas sim que os inicia.

Por isso, a “Querida Amazônia” se apresenta como uma das etapas do processo sinodal mais recente, que, por sua vez, está construindo – fatigantemente – a imagem de uma Igreja totalmente sinodal, na qual o magistério pontifício não substitui o sinodal, mas até o pressupõe. como fonte inspiradora.

Desse ponto de vista, a “Querida Amazônia” nos surpreende porque, em certo sentido, inverte a hierarquia das fontes eclesiais: é o papa que apresenta o Sínodo ao mundo e pede que todos se deixem interrogar pelas suas perguntas.

Esse velho papa lê o Sínodo e sonha. E muitos de nós, pelo contrário, gostaríamos que ele dispusesse, decidisse, fechasse os inúmeros processos abertos. Os católicos não estão habituados a uma Igreja de perguntas abertas e de expectativas desatendidas que esse papa nos entrega. Um homem nascido em 1936, que se tornou padre aos 33 anos de idade e bispo de Roma aos 77 anos, e que vem do outro lado do mundo. É mais amazônico do que romano!

Mas, por graça de Deus, há sete anos, ele luta por uma Igreja pobre e dos pobres, por uma Igreja não clerical e não abusiva. E faz isso iniciando processos nos quais ele se deixa envolver. Nem sempre tudo corre como muitos gostariam, mas ele também não freia o ritmo de quem corre. Como escreveu Stefano Sodaro, “Roma non locuta, causa non finita”.

Diante da “Querida Amazônia”, surpreendemo-nos com pequenos viri probati satisfeitos com pequenos sonhos clericais, enquanto o papa sonha com “comunidades cheias de vida”, em que religiosas e leigos “assumam responsabilidades importantes”, pois na Amazônia (como um pouco em toda parte) “não se trata apenas de facilitar uma presença maior de ministros ordenados que possam celebrar a Eucaristia”; com efeito, “isso seria um objetivo muito limitado”. Pelo contrário, “precisamos de promover o encontro com a Palavra e o amadurecimento na santidade por meio de vários serviços laicais”.

O papa sonha com uma Igreja marcadamente laical, na qual leigos maduros sejam dotados de autoridade: por isso, ele sugere aos bispos (na nota 136 [3]) que apliquem o cânone 517 do Código de Direito Canônico, ou seja, confiar “uma participação no exercício do serviço pastoral da paróquia (…) a um diácono ou a outra pessoa que não possua o caráter sacerdotal, ou a uma comunidade”.

Nada mal como sonho; quem sabe? Talvez não tenhamos toda essa necessidade de padres – sejam eles celibatários ou casados –, mas sim de homens e de mulheres que anunciem o Evangelho e cuidem uns dos outros.

 

Notas:

[1] Ou seja, “ser idôneos” e “reconhecido [como idôneos] pela comunidade”, ser diáconos permanentes “fecundos” (adjetivo, na realidade, bastante ambíguo, que remete a uma espécie de avaliação qualitativa do diaconato desempenhado) e ter recebido uma – não mais bem especificada – “formação adequada para o presbiterado”.

[2] Na verdade, o documento sinodal traz a expressão imprópria “ordenar sacerdotes”.

[3] As notas das exortações apostólicas são sempre muito surpreendentes. Cuidado para não pular as notas!

 

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