17 Janeiro 2020
“Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29).
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 2° Domingo do Advento - Ciclo A (19/01/2020) que corresponde ao texto bíblico de João 1,29-34.
Estamos no início de um novo ciclo litúrgico, o “Tempo Comum”, centrado no Evangelho de Mateus; mas, o relato deste domingo é tirado do evangelho de João, que começa com uma imagem forte de João Batista, retomando o motivo do domingo anterior (batismo de Jesus), que hoje é revelado como o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.
Começamos, então, o novo ano afirmando que o sinal de Deus é um Cordeiro; não é a Águia destruidora, nem o Leão furioso que se impõe na selva do mundo, nem o pesado Elefante... O sinal é um Cordeiro que nos conduz ao campo da vida, desde o princípio dos tempos. Jesus, o Cordeiro que se faz presente entre os pequenos, os fracos, excluídos..., e abre caminhos de vida para todos.
Segundo os evangelhos, já não há mais necessidade de sacrifícios de animais, realizados por grandes sacerdotes, porque Deus se fez Cordeiro entre os cordeiros, porque é Graça que perdoa e que ama, e porque os seres humanos podem corresponder, entrando em sintonia com seu amor.
Esta é a experiência fontal: frente a uma religião centrada nos pecados e sacrifícios, o Jesus do 4º. Evangelho abre um caminho de graça aos homens e mulheres de todos os tempos; assim, rompe a escravidão religiosa, centrada nas culpas e expiações, e oferece o dom da salvação a todos, sem exceção: judeus e pagãos, cristãos e não cristãos.
No evangelho deste domingo, João Batista não só aponta para quem é Jesus, mas também indica sua missão: “tirar o pecado do mundo”. Tanto no texto grego como latino, “pecado” está no singular. Não se refere aos “pecados” individuais, tais como os entendemos hoje. No evangelho de João, “pecado do mundo” tem um significado muito preciso: é o mundo fechado que rejeita Deus, é o mundo que quer dominar pela força e sacrificar os outros para se impor, é a injustiça e a violência que se expressam nas diferentes formas de intolerâncias e preconceitos, é a humilhação que desumaniza a todos...
Trata-se do “pecado de raiz”, a opressão que, enraizada nas estruturas sociais-política-econômicas-religiosas, atrofia o ser humano, impedindo-o desenvolver-se como pessoa e como ser de relações. Todos os demais pecados se reduzem a este.
O dinamismo do mal está entranhado no nosso mundo exterior e interior, nos nossos projetos, desejos e ações. A experiência do pecado é de desvio de rota, de frustração da nossa vocação, experiência que nos desumaniza e nos faz viver uma existência vazia; com isso passamos a viver exilados, desterrados...
O modo de “tirar” este pecado não é através de uma morte expiatória. Jesus tira o pecado do mundo destruindo a opressão, ativa e passiva, não pagando a Deus uma dívida que nós tínhamos contraído. Aqui não estamos diante de um Deus ofendido que exige a morte do Filho para satisfazer suas ânsias de justiça. Nada a ver com a experiência do Abbá que Jesus viveu.
O “pecado do mundo” não tem que ser expiado, mas arrancado, eliminado, destruído. Jesus “tira” o pecado do mundo inteiro, reconstruindo as relações quebradas; não aniquila alguns pecados concretos, algumas faltas particulares, mas o “pecado cósmico”, ou seja, tudo o que trava o fluir da vida.
Para o evangelista João, portanto, há um só pecado (a opressão, a injustiça) e um só mandamento (o serviço, o amor). Jesus tirou o pecado do mundo escolhendo o caminho do serviço, da humildade, da pobreza, amando a todos indistintamente até à entrega radical. Esta atitude destrói toda forma de domínio, de injustiça e violência, revelando que a salvação de Deus chegou para todos. Ao abrir o caminho da verdadeira vida, Jesus rompe todas as cadeias que mantinham oprimidas todas as pessoas.
Na perspectiva bíblica, o pecado aparece em primeiro lugar como a ruptura de uma aliança com o Criador, com os outros e com as criaturas. Não se trata de uma mera infração, uma quebra de lei, nem mesmo de uma falta contra nós mesmos, mas sim de quebra de uma relação de amor e de amizade.
Em uma palavra, trata-se de uma recusa a viver e a amar.
Os horrores do sofrimento que o ódio, a violência, o terrorismo, a injustiça, a exclusão... apresentam aos nossos olhos, descrevem, em imagens bem vivas, a “experiência infernal” que a humanidade vive. Elas estão aí, onipresentes, como pesadelo assustador diante de nossa vista, veiculadas diariamente pelos meios de comunicação. São a consequência da resistência do nosso mundo em deixar-se transformar pelo amor redentor do Senhor; são expressões do fechamento da humanidade à proposta de vida do Criador, alimentando o dinamismo de morte, presente em seu interior.
É a partir daqui que o relato evangélico deste domingo desperta em nós a tomada de consciência de uma “história de pecado”: história de desintegração, de divisão, de desumanização...
Nosso drama é perder a memória de que somos parte do todo: ao distanciar-nos do Deus Criador, rompemos a relação cordial com todos e caímos num devastador vazio existencial. O “auto-centramento”, sem levar em conta a rede de vida que nos envolve, provoca a quebra da “re-ligação” com tudo e com todos.
São as “amarras sociais” que nos prendem, atrofiam nossa liberdade, bloqueiam o fluxo da vida divina e matam o impulso de “expandir-nos” em direção aos outros e à realidade que nos cerca.
Este é o veneno que nos corrói por dentro: petrificação de nossa interioridade, a perda do gosto pela verdade, pelo belo e pelo bem, o extravio da ternura e da transcendência, a atrofia da comunhão com o todo cósmico, o esvaziamento dos encontros...
O pecado – enquanto ruptura de relações - nos faz cegos e surdos diante do mundo da exclusão e da violência. E se há fome e sofrimento ao nosso redor, isso já não nos impacta. A maldade, a mentira, o preconceito, a intolerância..., não nos afetam mais. Não choramos mais as dores do mundo que construímos e ao qual pertencemos; anestesiamos nossa sensibilidade e entramos num estado de apatia e indiferença para com o mundo, as coisas e as pessoas. A compaixão está cada vez mais ausente da esfera pública e de nossas relações com o outro diferente e com o outro distante que sofre.
Aqui está a chave da incapacidade de nossa sociedade para responder aos desafios atuais.
O que buscamos, ao considerar o “pecado da humanidade”, é alimentar o desejo e o compromisso de que o mundo seja novamente o sonho de Deus: lugar onde todas as expressões de vida se encontram, em profunda sintonia. Está em nossas mãos construir outro mundo.
Nossa vocação, como seguidores(as) do Cordeiro é a de construir pontes e ser presença reconciliadora em situações de fronteira, colocando nossas energias, nossa formação, nossa vida a serviço, para criar, alimentar e sustentar os laços humanos, as relações sociais, as estruturas políticas e econômicas que tornem possível a solidariedade entre todos os seres humanos e aponte para um mundo fraterno e justo.
É aqui, neste mundo, que Deus nos chama a estender o seu Reinado, trabalhando cada dia como amigos de Jesus que passam, se compadecem, curam, ajudam, transformam, multiplicam os esforços humanos.
Apaixonados por Deus, nos apaixonamos pelo mundo que, em sua diversidade, riqueza, profundidade, fragilidade, sabedoria... nos fala e nos revela o rosto misericordioso do Deus que se humanizou para humanizar nossa vida.
Nós só poderemos chegar a ser pontes, em meio às divisões de um mundo fragmentado, se tivermos feito a experiência do encontro com a Misericórdia reconstrutora do Deus Pai-Mãe.
Desse modo, frente a uma “cultura da morte”, cooperaremos com o Senhor na construção de um mundo novo, para uma “globalização na solidariedade”.
A conversão significa, portanto, re-orientar a cabeça e o coração para as “margens”, ativar o dinamismo da compaixão, desenvolver uma sensibilidade solidária e assumir lutas em defesa da vida e da dignidade das pessoas: “um outro mundo é possível”
Contemple a realidade com os olhos misericordiosos do Pai e com os olhos dos excluídos deste mundo; sinta a dor do Pai e a dor dos excluídos; olhe o rosto dos feridos deste mundo; olhe o rosto do Crucificado.
- Faça memória do mundo fragmentado, dividido, desumanizador... que clama por reconciliação.
- Sua presença, neste mundo, faz diferença? Você deixa fluir, através de todo o seu ser, a vida do Cordeiro?
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