17 Janeiro 2020
"Repetidamente se diz que morreu o professor do papa Francisco. Tal afirmação corre o risco de ofuscar o grande mérito próprio de Juan Carlos Scannone (1931-2019)", escreve Eloy Patricio Mealla, filósofo argentino e professor de Filosofia na Universidad Nacional de Moreno (Buenos Aires).
No artigo abaixo, Mealla descreve o itinerário de Juan Carlos Scannone - falecido em 28-11-2019 -, no qual, segundo o filósofo, se vê "refletida a captação do melhor da filosofia e da teologia contemporânea europeia da metade do século XX e até os dias de hoje, em contato direto com alguns de seus principais representantes, e, ao mesmo tempo, emergindo como um dos protagonistas primordiais da filosofia e da teologia latino-americana".
Descrevendo a influência de Paul Ricœur e Emmanuel Lévinas na produção filosófica e teológica de Scannone, Mealla destaca que "ele incorporou em sua reflexão filosófica e teológica a mediação das ciências sociais pelo discernimento dos sinais dos tempos nos níveis mundial, continental, nacional e local".
O artigo é de Eloy Patricio Mealla, publicado por Reflexión y Liberación, 07-01-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Repetidamente se diz que morreu o professor do papa Francisco. Tal afirmação corre o risco de ofuscar o grande mérito próprio de Juan Carlos Scannone (1931-2019), somente alguns poucos anos mais velho que Francisco. Na realidade, Scannone, em sua época de prática de magistério como jesuíta, deu aulas de grego, seguramente muito elementares, ao seminarista Jorge Bergoglio, que depois entraria na Companhia de Jesus. Na realidade, na formação inicial de Bergoglio destacam-se, como o mesmo declarou, seu “mestre” direto” o padre Miguel Angel Fiorito, s.j. (1916-2005) e a obra do francês Gaston Fessard, também jesuíta. A ele caberia agregar todo o clima da época expressado no que depois se chamará a Escola Argentina de Teologia ou Teologia do Povo, surgida ao final dos anos 1960, quando Bergoglio estreava seu ministério sacerdotal.
A relação entre Scannone e Bergoglio precisa ser situada no intenso intercâmbio como companheiros da mesma comunidade jesuítica, e sem esquecer que depois Bergoglio foi seu superior provincial em um período não isento de tensões. A interação acadêmica – se é que pode se chamar assim – mais importante entre ambos se deu na ocasião do Congresso Internacional de Teologia “Evangelização da cultura e enculturação do Evangelho” que ocorreu em dezembro de 1985 no Colégio Máximo, na localidade de San Miguel, província de Buenos Aires. Nesse momento, Jorge Bergoglio, que até pouco tempo era provincial, era o reitor do Máximo, e Scannone foi o organizador principal do congresso.
Scannone também dá conta da ascendência de Fiorito em sua formação inicial, completada depois em Innsbruck (Áustria) em contato com Karl Rahner. Foi ordenado sacerdote em 1962 e obteve a graduação em teologia em 1963. Depois continuou estudando em Munique, onde obteve o doutorado em filosofia em 1967 com uma tese sobre Maurice Blondel. Ao final desse ano voltou à Argentina e se relacionou pouco tempo com Enrique Dussel que junto com Carlos Cullen, Mario Casalla, Osvaldo Ardiles e outros filósofos dão origem à Filosofia da Libertação, que terá uma notável projeção latino-americana e depois mundial. Simultaneamente, vai se constituindo em um dos principais expoentes da teologia da libertação, ainda que ele prefira falar de diferentes correntes ou teologias da libertação. A uma delas denomina Teologia desde a práxis dos povos latino-americanos, habitualmente também conhecida como Teologia do Povo, fruto de um grupo de teólogos e pastoralistas argentinos liderados por Lucio Gera, e na qual habitualmente também está Scannone.
Não cabe, nesta breve nota, fazer uma trajetória completa de Juan Carlos Scannone. Para isso, remetemos à obra coletiva que foi publicada por ocasião dos seus oitenta anos, a qual contém sua própria “Autobiografia Intelectual” e, entre outras, as apresentações completíssimas de sua obra até a atualidade feitas por Jorge Seibold, Carlos Galli e Ariel Fresia (Cantó y Figueroa, eds., 2013).
Para sintetizar muito rapidamente, diremos que no itinerário de Juan Carlos Scannone vemos refletida a captação do melhor da filosofia e da teologia contemporânea europeia da metade do século XX até os dias de hoje, em contato direto com alguns de seus principais representantes e, ao mesmo tempo, emergindo como um dos protagonistas primordiais da filosofia e da teologia latino-americana.
Scannone costumava reiterar a importância de prestar atenção à filosofia que sempre oferece novos motivos e faz refletir a teologia. Precisamente esta afirmação nos remete ao famoso apotegma de Paul Ricœur, “o símbolo dá que pensar”. Justamente, Juan Carlos Scannone foi um – se não o principal – introdutor de Ricœur na América Latina. Foi assim que, já em 1977, deu o seminário “O símbolo na filosofia de Paul Ricœur” na Área San Miguel da Universidad del Salvador (Colegio Máximo).
Certamente Ricœur é um dos autores que Scannone mais assimilou com uma notável capacidade de relê-lo e recriá-lo desde a perspectiva latino-americana, particularmente no que se refere à linguagem simbólico-religiosa. Não de uma maneira mecânica e subordinada, mas sim como expoente desde um pensamento situado em nossa região. A esse aspecto de sua vasta obra no campo da filosofia e da teologia nos referimos aqui brevemente.
Paul Ricœur, apoiado em três autores – Marx, Nietzsche e Freud – os quais denomina “mestres da suspeita”, se propõe superar o “logocentrismo” da modernidade. Há que se superar a “ilusão da consciência” que se crê clarividente, não há consciência certa e imediata do mesmo. Isso não significa ceder ao niilismo pós-modernista, mas convida a “pensar de outro modo”. Isto é, a razão pura extravia-se, necessita de outros saberes que a complementem; sem negá-la, podem alentar outra forma de pensar e de atuar.
Esse rumo é retomado por Juan Carlos Scannone quando em várias de suas obras alude à “racionalidade sapiencial”, a qual define como uma racionalidade “radicalmente e originariamente humana, por se tratar da racionalidade mais própria do mundo da vida, por ser essencialmente respeitosa ao mesmo tempo das diferenças e da unidade plural, pode assimilar o desafio da modernidade, realocando sabiamente as outras formas de racionalidade sem tocar na sua autonomia, seu caráter crítico e sua diferenciação, próprias da herança moderna” (Scannone, 1991, p. 157).
Essa racionalidade – segundo o filósofo jesuíta – não está em oposição intransponível com a racionalidade científico-tecnológica, nem tampouco identifica-se necessariamente com formas pré-modernas. Scannone vê concretizada a racionalidade sapiencial nas “criadoras sínteses vitais” que se foram realizando na “mestiçagem cultural” latino-americana (Scannone, 1990b).
Na realidade, isso é possível porque não se trata de um “choque” entre racionalidade ou irracionalidade, entre civilização e barbárie, porque a sabedoria popular latino-americana também tem racionalidade, “arraigada no solo cultural, e eticamente orientada à justiça, impregnada do sentido cristão do homem e da vida; que não por isso deixa de ser verdadeira racionalidade humana” (Scannone, 1990a).
Para Ricœur, a sabedoria dos povos possui um núcleo ético-mítico. Isto é, um núcleo de valores que residem nas atitudes concretas diante da vida e expressam-se em símbolo que, igual à psicanálise, requerem decifração. Ao mesmo tempo, no interior da linguagem simbólica há uma região peculiar que é a linguagem religiosa, e dentro dela uma “província particular” conformada pelos “símbolos da confissão do mal”. O mal como “enigma único”, como um “desafio incomparável” enquanto é um convite “a pensar mais, a pensar de outro modo”. O desafio é como escutar essa linguagem sem por isso desdenhar o valor da racionalidade.
A pergunta que segue é como seguir falando de Deus em meio a tanto mal? Já em pleno Iluminismo, o próprio Kant ficou profundamente comovido por essa questão após o terremoto de Lisboa de 1755. Em nossa época, Hans Jonas e Johann Baptist Metz perguntaram-se sobre como é possível falar de Deus depois do Holocausto.
Levando em conta essa perspectiva, Scannone retoma a pergunta do teólogo peruano Gustavo Gutiérrez sobre como falar de Deus a partir de Ayacucho, ou seja, desde os pobres e oprimidos. Ayacucho, em quéchua, é o lugar dos mortos, e mesmo assim neste caso, especialmente refere-se a uma das zonas mais pobres de Lima. Essa questão está em conexão direta com a “irrupção do pobre” que também Gutiérrez abordou com anterioridade.
Scannone considera que essa irrupção oferece à filosofia não somente um ponto de partida (do que pensar) e conteúdo de pensamento (o que pensar), mas sim também um novo desde onde (lugar hermenêutico) e um para quê (como serviço teórico a favor dos pobres). A emergência do pobre permite que resplandeça o ser humano como tal, despojado de posses, do poder e do saber. Eles revelam a nudez do ser humano radical e, ao mesmo tempo, sua absoluta dignidade. E acrescenta: “Eles melhor transparecem a riqueza ética e metafísica da pobreza ontológica de todo homem em sua própria humanidade”.
Ademais, Scannone interpreta a irrupção do pobre como a ruptura crítica “com atitudes, costumes, pressupostos socioculturais e estruturas anteriores”, provocando a “tomada de consciência ética” sobre as “causas” não naturais, mas sim “históricas” e estruturais da pobreza e da desigualdade e exclusão injustas; e por outro, “o protagonismo social dos pobres e excluídos (em alguns países, em último lugar, os aborígenes e/ou afro-americanos) na sociedade civil e política, e na vida das confissões religiosas, sobretudo da majoritária Igreja Católica” (Scannone, 1993).
Mesmo assim, a irrupção do pobre, é motivo de “assombro radical” que se move a filosofar, pois em contextos de “exclusão, marginalização e morte”, dão-se em situações de vida “humana” digna, cheias de alegria, canto, beleza, solidariedade, abertura para a natureza, os outros e Deus.
Scannone reitera:
“Na irrupção do pobre na América Latina, mostra-se 'já' uma 'antecipação' simbólica do 'ainda não' para além da história, cuja metáfora latino-americana é a 'festa' popular. Pois na América Latina os pobres sabem “celebrar a vida e criar” espaços de “liberdade e solidariedade”, ainda em circunstâncias de morte, opressão e discriminação, como são as atuais. Não em último lugar conseguem, graças a seu sentido ‘sapiencial e religioso’ da Transcendência” (Scannone, 2012, p.124).
Esta perspectiva é assumida por Francisco, citando expressamente a Scannone, quando na sua encíclica Laudato Si’ afirma que em meio às condições adversas como “por exemplo, nas ‘villas’, 'chabolas 'ou favelas da América Latina [...] muitas pessoas, nestas condições, são capazes de tecer laços de pertença e convivência que transformam a superlotação numa experiência comunitária, onde se derrubam os muros do eu e se superam as barreiras do egoísmo. Esta experiência de salvação comunitária é o que muitas vezes suscita reações criativas para melhorar um edifício ou um bairro” (LS, 117).
Outra das fontes do pensamento de Scannone está no pensamento de Emmanuel Lévinas, de quem ele toma a categoria fenomenológica de "face", mas assumida e relida da situação em si por importantes textos filosóficos e religiosos latino-americanos. Refere-se às "faces sofredoras de nossos irmãos", testemunhada, por exemplo, nos Documentos das Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano de Medellín em 1968 e, por último, no Sínodo da Amazônia.
Todos esses textos tomados neste caso não teologicamente, como adverte Scannone, mas como "testemunho religioso e histórico", também são "rostos sofredores de Cristo", que nos questionam e desafiam (Aparecida, 2007, n ° 393; 407-430).
Por outro lado, Scannone ressalta que a categoria de testemunho – também extraída da pedreira ricœuriana – exige discernimento, pois o que foi testemunhado ou o que é procurado como um movimento em direção ao divino pode deslizar para ídolos. Em efeito:
“Ante os ídolos, o homem é escravizado pelo fascínio ou pelo medo, ou, pelo contrário, tenta manipulá-los magicamente ou usá-los para mascarar ideologicamente suas reivindicações de autoconfiança e poder, a fim de dominar outros homens - mesmo suas liberdades e consciências” - em nome de um pseudoabsoluto que, em última análise, é o produto da própria autoabsorção” (Scannone, 2005, p. 280).
Portanto, os sinais que permanecem como tais, e não são ofuscados pelos ídolos, podem permitir que “o relacionamento com o Santo ou com Deus, em vez de escravizar, liberte; em vez de separar os homens em lutas pelo poder ou por ter, os una; em vez de se perder na particularidade das culturas, pelo contrário, respeite, melhore, aprofunde e transcenda a unidade plural e uma comunhão entre diferentes” (Scannone, 2005, ibid.).
Da mesma forma, Scannone, também inspirado por Lévinas, refere-se aos pobres como vítima, enfatizando, em nossa opinião, a causalidade ética de sua situação, rejeitando sua naturalização ou qualquer interpretação fatalista dela. Dessa maneira, consideramos que a questão de como falar sobre Deus é redobrada e aguçada, agora “das vítimas de violência, injustiça e exclusão social” ou, mais humildemente, “frente às vítimas”. Não fazer isso seria cair na religião como ideologia ou idolatria. Podemos dizer que ignorar a paixão das vítimas afetaria a autenticidade da transcendência em relação ao Santo Mistério (Scannone, 2005, p. 104).
Juan Carlos Scannone propõe-nos repetidamente a pensar localmente, sem negar a universalidade. Mas é uma universalidade situada - tanto histórica quanto culturalmente - e, portanto, não unívoca ou dialética, mas “analógica”. Agora, pensar hoje na América Latina implica referir-se não apenas a “relações intersubjetivas, mas sociais, estruturais, conflituosas”, em que a racionalidade sábia percebe “no caso da irrupção dos pobres a Transcendência de Deus” (Scannone, 2012, p. 122-123). Tal percepção, para ser autêntica e não idólatra, leva à resposta ética e política, particularmente exigida hoje na América Latina, onde continuando décadas e séculos de sofrimento, verificamos o que podemos chamar de “crise humanitária”, expressa em novas vítimas, resultado da persistência da pobreza e da desigualdade, migração forçada, tráfico de pessoas, armas e drogas e violência política e diária.
A preocupação permanente de Scannone com a questão social constituiu-o como uma das referências da Doutrina Social da Igreja na América Latina, promovendo desde 1987, além de outras iniciativas e publicações, o diálogo interdisciplinar por meio do qual mais tarde foi chamado de Grupo Farrell. Dessa maneira, ele incorporou em sua reflexão filosófica e teológica a mediação das ciências sociais – podemos acrescentar que elas também nos fazem pensar – para o discernimento dos sinais dos tempos nos níveis mundial, continental, nacional e local.
Blanco, A. (comp., (2015), Religación desde la América profunda. Miradas sobre el fenómeno religioso en el pensamiento latinoamericano, Ed. del Signo, Buenos Aires, 2015.
Cantó, J.M. y Figueroa, P, eds. (2013), Filosofía y Teología en diálogo desde América Latina. Homenaje a Juan Carlos Scannone sj en su 80 cumpleaños, Córdoba, EDUCC.
Scannone, Juan Carlos (2005), Religión y nuevo pensamiento. Hacia una filosofía de la religión en América Latina, Barcelona, Anthropos.
Scannone, J. C. (1990a). “La racionalidad científico-tecnológica y la racionalidad sapiencial de la cultura latinoamericana”, en Nuevo punto de partida en la filosofía latinoamericana, Ed. Guadalupe, Buenos Aires.
Scannone, J.C. (1990b) “Mestizaje cultural: categoría teórica fecunda para interpretar la realidad latinoameicana”, en Scannone, J. C, Nuevo punto de partida en la filosofía latinoamericana, Ed. Guadalupe, Buenos Aires.
Scannone., J.C. (1991), “Nueva modernidad adveniente y cultura emergente en América Latina”, Stromata, Vol. 47, Nº. 1-2, 1991.
Scannone, J.C. (1993), “La irrupción del pobre y la pregunta filosófica en América Latina”, en Juan Carlos Scannone y Marcelo Perine (comps.), en Irrupción del pobre y quehacer filosófico. Hacia una nueva racionalidad. Buenos Aires, Bonum, 1993.
Scannone, J.C. (2012), “La trascendencia como intrínsecamente constitutiva de ética y política”, Open Insight, Nº 3, pp. 113–127.
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Juan Carlos Scannone: a racionalidade sapiencial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU