22 Julho 2013
A teologia da libertação na Argentina assume a forma peculiar de "Teología del pueblo". Com uma ênfase particular na inculturação e na religiosidade popular.
A reportagem é de Alessandro Armato, publicada no sítio MissiOnline, 01-11-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Filósofo e teólogo próximo do ramo argentino da teologia da libertação, a chamada Teología del Pueblo, o padre Juan Carlos Scannone, jesuíta, é um personagem de destaque no panorama intelectual católico do Cone Sul. Discípulo de Karl Rahner, ele participou como protagonista da evolução do intenso debate pós-conciliar da América Latina. Professor universitário, é autor de inúmeros livros e artigos relevantes. Encontramo-lo no Colégio Máximo de San Miguel, onde vive, nos arredores de Buenos Aires.
Eis a entrevista.
O que significa fazer teologia no e a partir do Cone Sul?
O aspecto fundamental é a inculturação. Como mensagem de salvação para todos, a teologia tem um significado universal. Mas, como reflexão sobre uma fé que se incultura, a teologia também deve se inculturar. Ora, o Cone Sul faz parte do mundo ocidental, mas apresenta uma miscigenação cultural com diversas variantes. Isso requer uma perspectiva teológica específica.
Na Argentina, essa perspectiva específica é a Teología del Pueblo.
Para compreendê-la, é preciso partir do aparecimento da Teologia da Libertação, em torno da Conferência do Episcopado Latino-Americano de Medellín, em 1968. Essa teologia, que é uma das grandes contribuições da América Latina para a cultura universal, assume a forma específica, na Argentina, da "Teologia do Povo". Trata-se de uma perspectiva própria, original, como reconhece o próprio Gustavo Gutiérrez, pai da Teologia da Libertação.
Em que ela difere desta última?
A diferença é que aqui nunca foram utilizadas nem a metodologia marxista de análise da realidade, nem categorias tomadas do marxismo, talvez por influência do peronismo.
No âmbito especificamente teológico, o que caracteriza essa perspectiva?
Uma revalorização da cultura e da religiosidade popular, tanto argentina quanto latino-americana. Daí o nome de Teologia do Povo (embora quem a chamou assim pela primeira vez foi um teólogo uruguaio que a criticava, Juan Luis Segundo). Fala-se do povo como sujeito histórico-cultural, e da religiosidade popular como uma forma inculturada de fé cristã católica no povo argentino e latino-americano. É uma linha que privilegia mais a análise histórico-cultural do que a sócio-estrutural.
Quem deu corpo a essa teologia?
O grande teólogo é Lucio Gera, um imigrante italiano que chegou à Argentina quando criança. Gera era líder da Comissão Episcopal de Pastoral (Coepal), constituída pelos bispos argentinos no rescaldo do Concílio Vaticano II. A Teologia do Povo ganha forma nesse âmbito. Além de Gera, na Comissão estavam Justino O'Farrell, Gerardo Farrel, Rafael Tello, Alberto Sily, Fernando Boasso, Dom Enrique Angelelli, Dom Manuel Marengo e outros. Juntos elaboraram o famoso "Documento de San Miguel", em 1969, um dos textos mais significativos e influentes da história da Igreja argentina, em que se fala, dentre outras coisas, da pastoral popular pensada não só para o povo, mas a partir do povo. A ideia de fundo é que o povo latino-americano já foi evangelizado e, portanto, apresenta muitos elementos que não são apenas "sementes", mas "frutos" do Verbo.
O que Roma pensava a respeito?
Roma criticou as várias formas de teologia da libertação que se referiam ao marxismo. A corrente argentina, que não apresentava sinais disso, era vista de forma positiva.
E o que pensava a ditadura de Videla (1976-1983)?
Os militares, ao contrário, eram pouco sutis. Para eles, "libertação" e "opção pelos pobres" significavam automaticamente marxismo. Não distinguiam entre as diversas correntes. Eu mesmo, que nunca tive nada a ver com o marxismo, era considerado como tal. Até o futuro cardeal Pironio, do qual hoje está em andamento a causa de beatificação, era visto como marxista pela inteligência militar. Era pura ignorância.
Quais foram os frutos da Teologia do Povo?
Um dos principais frutos foi a valorização da religiosidade popular, que deixou uma grande marca em toda a Igreja argentina. Eu penso na pastoral dos santuários. Para a festa de San Cayetano, padroeiro do pão e do trabalho, há pessoas que ficam na fila por até 15 dias para entrar primeiro no santuário. Mas eu também penso nas peregrinações juvenis a pé a Luján, idealizadas por Rafael Tello durante o regime militar, que mobilizam ainda hoje centenas de milhares de pessoas a cada ano. Essas manifestações religiosas sempre existiram. Mas o mais interessante dessa teologia é o fato de tê-la reconhecido como autêntica fé popular. Tanto que, ultimamente, como evidenciado pelo documento de Aparecida, fala-se oficialmente de espiritualidade e de mística populares. O próprio Bento XVI disse em Aparecida que a piedade popular é um dos grandes tesouros da América Latina. O tema ainda é muito atual.
A ideia começou na Argentina?
No Concílio, não se falava a respeito. O primeiro que falou sobre isso em nível universal foi Paulo VI. Mas é muito provável, quase certo, que a revalorização começou na Argentina com o grupo da Coepal. Depois, vários bispos latino-americanos apresentaram essas ideias no Sínodo de 1974 sobre a evangelização. Daí, provavelmente através de Pironio, argentino amigo dos membros da Coepal, elas passaram para a exortação pós-sinodal Evangelii nuntiandi, de Paulo VI, e, depois, para a Conferência do Episcopado Latino-Americano de Puebla, que é a aplicação da Evangelii nuntiandi na América Latina, onde Lucio Gera figura entre os redatores do documento sobre a evangelização da cultura. É uma viagem de ida e volta entre a América Latina e Roma.
Em Medellín já não se falava de religiosidade popular?
Falava-se a respeito como de uma religião natural, unicamente como "semente do Verbo". Enquanto, para a Teologia do Povo argentina, trata-se de um autêntico catolicismo popular, "fruto" do Verbo. Como "sementes" são entendidas só as religiões aborígines ou afro-americanas.
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A teologia do povo. Entrevista com Juan Carlos Scannone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU