16 Dezembro 2019
O reputado teólogo e professor, considerado um dos grandes mestres mundiais da Teologia, Peter Hünermann participou do Seminário organizado em Caracas em apoio ao papa Francisco e suas reformas. Nos oferece nesta entrevista sua visão sobre as necessidades da Igreja atual, que para recuperar a credibilidade e servir verdadeiramente ao povo tem que assumir um processo sinodal como o iniciado na Alemanha. Também se confessa impressionado pelo povo venezuelano, esperançado em meio à violência e à pobreza, onde os movimentos eclesiais puseram suas raízes. E do embate que teve com Ratzinger e suas posturas conservadoras, quando o Papa emérito era professor e cardeal.
A entrevista é de José Manuel Vidal, publicada por Religión Digital, 15-12-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Qual a sua avaliação do Congresso de Caracas sobre as reformas do Papa? O que fica dele?
Para mim foi uma experiência que pôs de manifesto um movimento que existe e é grande. Um movimento importante, do Espírito, de abertura ao mundo moderno. A Igreja está se abrindo aos problemas reais do mundo de hoje. Os participantes realmente me impressionaram, começando pelo cardeal Baltazar Porras e passando por diferentes freiras e professores. Vi esse eco em todas essas pessoas, apesar de a situação política e social ser desastrosa, é a opressão própria de uma ditadura, e não resta esperança de que o chefe de Estado pense humanamente. Para mim, vi o símbolo da força da fé e de como o espírito faz com que todas as classes de pessoas participem.
O que achou do cardeal Baltazar Porras?
Muito simples e aberto, colega dos teólogos, muito adepto de manter proximidade do povo. Encantou-me pela forma que é acolhido pelo seu povo.
Um Congresso de status teológico e, ao mesmo tempo, pastoral.
Sim, claro. Aqui foi combinada essa altura teológica com a simplicidade da fé, vivida na cotidianidade.
Vocês deram esperança também ao povo. O fato de que tantos teólogos importantes tenham vindo à Venezuela reconforta-o.
Claro, eu tive essa impressão, do agradecimento do povo, por termos vindo. Pode ser também um sinal, creio, de que a Igreja de outros países está em alerta, em solidariedade e comunhão com eles. Isso dá força e o que eu vi é a força da alegria: sempre rindo.
Houve um momento que, para mim, foi impressionante: a ovação ao padre Luis Ugalde. O povo se levantou depois do jesuíta, que parece ser uma autoridade no país, denunciou a “ditadura”.
Sobretudo porque ele fez um resumo da história da Igreja na Venezuela, que supõe recordar as etapas das diferentes ditaduras... Essa recordação foi brutal para o povo, que está mal hoje. Porém sua fé cresceu manifestamente, inclusive entre os jovens, na universidade... É um povo reprimido pelo que vive, mas carregado de esperança.
Às vezes é difícil entender como, depois de 20 anos deste regime, seguem tendo esperança.
Exato. Foram gerações que se viram obrigadas a mantê-la. Creio que, depois de Chávez, cresceram essas esperanças, e depois rapidamente voltaram à desilusão.
Mudou a sua percepção sobre a Venezuela?
Sim, eu estive na Venezuela há mais de 30 anos, em contato com a população católica da universidade. Estavam focados no desenvolvimento do país e uma crise assim era impensável. Em relação estreita com a Europa, exportavam açúcar... e agora vejo tudo isso perdido, e precisarão lutar mais uma vez.
Faz falta um Oscar Romero?
Sim, ainda que seja duro dizer. Os venezuelanos necessitam de um santo como Romero.
Se não, parece que não há saída. Já está assim há muitos anos...
Claro, não se vê futuro. E os jovens? Se não têm futuro, rebelam-se, radicalizam: assim surgem as violências. Ainda que, apesar dessa violência, tem sido trabalhada e construída uma Igreja muito viva. De uma criatividade enorme.
Em nossos países não se vê, porém aqui as pessoas da Igreja são jovens.
Exato... aqui entendem a necessidade de vincularem-se a algo sólido e rico, que cubra os desejos mais profundos do homem.
O congresso também serviu para expressar o apoio total ao Papa?
Claro, sim. Todas as posturas de Bergoglio, desde a “Evangelii Gaudium” até a Igreja em saída, foram levantadas. Não sei desde quando ele tinha a ideia de um Sínodo Pan-amazônico... me levo a pensar que ele já tinha essa intenção, e então os bispos da Amazônia – Cláudio Hummes e os demais – lhe falaram das necessidades. E logo assumiu como um desafio, porque este Papa está em contato contínuo com as Igrejas da periferia. Deixa-se orientar por elas, para dar rumo à Igreja universal.
O Papa necessita desse apoio, visto que uma parte da hierarquia está atacando-o?
Atacam-no continuamente. Porém é realmente impressionante como ele assume essa oposição. Quando os jornalistas lhe perguntam sobre seus críticos, respondeu que isso é uma honra para ele. Ninguém entende o que ele diz, porém ele diz, porque vive assim. Sua honra é fazer a vontade do Pai e, se gente importante se mostra contra, é porque ele está conseguindo essa missão. É uma expressão simbólica.
A hierarquia da Igreja alemã, está com ele?
A maioria, sim. Por isso decidiu fazer o processo sinodal. O cardeal Marx tem uma grande responsabilidade empreendendo-o.
O cardeal Reinhard Marx encarna a sucessão de Karl Lehmann na Alemanha?
De certa maneira sim. Lehmann era uma grande figura, um líder nato, um intelectual da altura de Erasmo. Conhecia tantas coisas! Por sua inteligência, realmente teve uma grande facilidade para falar com todos e marcar a Igreja alemã.
Marcou uma época?
Claro... foi eleito pela maioria dos bispos quando teve a mudança entre o bispo de Colônia e o de Munique... E Lehmann foi eleito com muita diferença, porque era sempre votado pelos jovens.
Marx continua essa linha?
Sim, claro. Marx fez doutorado em Doutrina Social da Igreja e trabalhou muito nesse setor. Porém não tem essa autoridade universal de Lehmann... Cada um tem seus carismas e seus limites. O importante é que compreendeu que já não se pode continuar como antes.
No processo, o que é preciso mudar?
Precisa mudar e discutir de uma maneira muito real as verdadeiras razões pelas quais a Igreja está perdendo credibilidade sem parar. É muito interessante que as propostas de pontos a serem discutidos puderam vir tanto do episcopado como da base, do Comitê Central, dos leigos... da parte dos bispos veio a proposta de abordar um tema fundamental: a distribuição do poder e do exercício do poder na Igreja. Por parte do Comitê, a proposta que veio foi a adesão das mulheres ao exercício dos ministérios. O diaconato feminino.
É um primeiro passo?
Exato, é a porta. Os temas de moral, sexualidade, família... e a indenização das vítimas de abusos. Este é um fenômeno antigo, praticado nos colégios e outros lugares... Na Alemanha foram sendo revelados os casos, e começou este processo de denúncia aos abusadores e reconhecimento das vítimas. Agora na Alemanha, a Igreja Católica está muito comprometida a respeito disso, defendendo o compromisso social contra os abusos sexuais.
Mais que qualquer outra instituição?
Fomos os primeiros. Há colégios intelectual e pedagogicamente de elite que não entraram neste compromisso.
Que propostas sairão do processo sinodal alemão?
A primeira é da questão do poder, que está se trabalhando de uma maneira muito sólida. Seria algo como um Direito de Administração na Igreja, que facilita a denúncia das más práticas dos eleitos. Atacar a corrupção. Também nos referimos à transparência não somente financeira, mas nas corporações profissionais. É preciso regras, para que possamos dizer “ele não fez bem seu trabalho” como se pode dizer de um médico, por exemplo. Há várias formas de criar um departamento deste tipo dentro do Direito Canônico.
Então isso pode se efetivar?
Claramente, trabalha-se nisto.
E o diaconato da mulher?
Eu acredito que isso deve sair do próprio Papa, que tem a responsabilidade em mãos. Havia diáconas em Hagia Sofia, em Constantinopla, ao final do século IV. Os teólogos conhecem a História e os concílios.
A questão, teologicamente, não está fechada, como se dizia na época de João Paulo II?
Claro, está aberta. Basílio Magno e Gregório Nacianceno, os pais da Igreja, tinham uma irmã, que foi a abadessa de uma importante abadia. Uma mulher inteligente e forte que impulsionou o pensamento de São Basílio e que também foi diácona. Nesse tempo, havia diáconas casadas, diáconas monjas, diáconas virgens que viviam em comunidade... Segundo as circunstâncias sociais, muitas realizavam esses serviços. Creio que temos que fazer o mesmo. É uma besteria não ver que a Igreja tem uma dimensão essencial que é o diaconato. O papa Bento, em sua encíclica sobre a caridade, desenvolve muito bem essa dimensão: a missão da Igreja é servir aos pobres, e isso não tem a ver com sexo. Nesse aspecto, a situação de hoje em dia é que 80% das pessoas que cuidam das paróquias são mulheres. Em todas as partes.
É um antitestemunho que a Igreja atual não seja igualitária?
A dimensão diaconal deve ser pública e seu acesso para todos.
A Alemanha seria um exemplo disso, e por isso estão atacando tanto...
Já antes do Vaticano II havia um movimento para estabelecer o diaconato. Surgiu a questão de por que não integrar as mulheres. Eu conheci um diácono que depois foi ordenado sacerdote. Ele trabalhou de guarda florestal e decidia o que plantar. Então sentiu a vocação de trabalhar para os homens. Viu o problema da Floresta Negra, que estava se destruindo, e quis trabalhar pela sociedade. Era um tipo extraordinário e finalmente começou uma vida dedicada a esta vocação. Quando o Vaticano II foi anunciado, a ideia do diaconato foi se expandindo entre essas pessoas vocacionadas, jovens, que queriam assumir desafios diretamente.
Doeu o ataque recente que Bento XVI fez contra você?
Eu não o respondi. Tenho a impressão de que Ratzinger tem um trauma comigo. A situação para mim é muito estranha. Antes de Declaração de Colônia, na Alemanha, tivemos a impressão de que em Roma preparava-se uma dogmatização. E para o povo é central que não se dogmatize. Havia um incêndio teológico, uma polarização... e o que decidimos foi criar um centro, no Leste da Alemanha, onde as duas correntes pudessem se encontrar e dialogar. Caíram os muros, porque estávamos muito separados. Essas coisas também se discutiram na faculdade e decidimos criar a Associação de Teólogos. Queríamos que todo aquele que tivesse um cargo acadêmico de ensino de Teologia tivesse avesso à Declaração, ainda que não tivesse a assinado.
Lehmann havia dialogado com gente da Polônia, de todas as partes, e Ratzinger já conhecíamos, éramos professores. Em janeiro, Lehmann pediu que fizéssemos uma audiência e em fevereiro, quando terminou o semestre, com os exames, me deu uma data: a quarta-feira de cinzas em Roma. Fui para lá e chegou ao Vaticano à pé. Dei bom dia ao cardeal. Ele me disse: “Agora você é presidente da Internacional Socialista”. Eu lhe disse: “Desculpe, que Internacional Socialista? Me elegeram presidente da Associação de Teólogos”. “Dá no mesmo”, me disse. Eu não entendia nada. Outro professor de nossa faculdade, que era de opção socialista, havia publicado em revista da esquerda católica.
Ratzinger, como professor, tomou posições exageradas. Por exemplo, protestou contra Kadafi. Eu já sabia que o socialismo o incomodava, porém esperava que me escutasse.
Não te escutou?
Naturalmente que não. Para mim, sua Teologia Moral havia perdido o Evangelho. Outros moralistas, ao contrário, sim se abriram a novas interpretações. Eu lhe perguntei se acreditava realmente no que dizia... Nós dois fizemos estudos de Moral juntos, e pensávamos tão diferente... Nós dois estudamos em Roma, com os mesmos professores, severos, completos, de primeira qualidade.
Como terminou sua entrevista com Ratzinger?
Me explicou todas essas coisas lindas de sua teoria da caridade. Eu queria explicar-lhe minha visão de uma moral nova, com Direitos Humanos, apesar das reticências da Igreja reacionária. Não conseguimos nos comunicar. Foi complicado porque, depois dessa discordância, um dia Lehmann me telefonou e me disse para ir a Mainz. Nós nos conhecemos depois de suas celebrações e ele me disse que, estando em Roma, Ratzinger o avisou para ir ao Santo Ofício, e lá perguntou se ateus também eram admitidos em nossa Associação. Lehmann respondeu que queria falar comigo e esclarecer essas questões. Quem substituiu João Paulo II na Universidade da Polônia lançou uma acusação contra a Associação. Eu pensei que havia várias maneiras de explicar a Teologia, que na Alemanha não precisava ser a mesma que na Holanda ou na Itália. De fato, a História da Itália, por exemplo, não pode ser entendida sem o conhecimento da História da Igreja. Nossa visão era que localmente cada país tivesse liberdade para encontrar uma regulamentação adequada. Uma intenção clara, da qual eles nos acusavam de admitir ateus... eu tinha provas, as listas de teólogos, mas mantive os nomes em segredo, porque não achei necessário ou prudente publicá-los.
E daí vem o trauma para Ratzinger, depois de tantos anos?
Ele me acusou de organizar da Associação Teológica um movimento contra a autoridade do magistério. E essa ideia foi fixada nele de uma maneira muito profunda.
Você guarda rancor do papa emérito?
Não guardo rancor de Bento XVI, mesmo que ele tenha me desautorizado publicamente.
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“Não guardo rancor de Bento XVI, mesmo que ele tenha me desautorizado publicamente”. Entrevista com Peter Hünermann - Instituto Humanitas Unisinos - IHU