11 Dezembro 2019
"O ódio aos judeus remonta a um passado bem longínquo, muito anterior ao nazismo", escreve Luís Corrêa Lima, sacerdote jesuíta, professor da PUC-Rio e trabalha com pesquisa sobre gênero e diversidade sexual.
Segundo ele, "a perseguição nazista contra gays, por sua vez, também remonta a um passado longínquo. Na cristandade, leis civis e eclesiásticas trataram as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo como sodomia, um crime horrendo que provoca tanto a ira de Deus a ponto de supostamente causar tempestades, terremotos, pestes e fomes que destruíram cidades inteiras".
No dia 15 de novembro, o papa Francisco recebeu no Vaticano cerca de 600 participantes do Congresso Internacional de Direito Penal. Em pronunciamento (disponível aqui), o pontífice fez um contundente alerta contra uma cultura do ódio que atualmente dá sinais de força:
“Confesso que, quando ouço algum discurso, alguma pessoa responsável pela ordem ou pelo governo, me lembro dos discursos de Hitler em 1934 e 1936. Hoje. São ações típicas do nazismo que, com suas perseguições contra judeus, ciganos, pessoas de orientação homossexual, representam o modelo negativo por excelência de uma cultura do descarte e do ódio. Assim se fazia naquele momento e essas coisas renascem hoje. Precisamos estar vigilantes, tanto no âmbito civil como eclesial, para evitar qualquer possível comprometimento – que se supõe involuntário – com essas degenerações”.
O ódio nazista contra estas populações baseava-se no mito da raça ariana, em que uma raça supostamente superior deveria habitar a Alemanha, eliminando indivíduos e povos considerados perigosos e nocivos. Naqueles anos, também havia no Brasil um certo antissemitismo. Em 1937, o governo brasileiro divulgou uma conspiração atribuída aos comunistas para tomar o poder, contida num plano com um nome judeu: o Plano Cohen. Era uma farsa do governo que serviu para a instauração da ditadura do Estado Novo. O medo do suposto judeu conspirador aliado ao comunismo minou a democracia, e abriu caminho para o autoritarismo.
Este ódio aos judeus remonta a um passado bem longínquo, muito anterior ao nazismo. Há até mesmo raízes no Novo Testamento, em que se atribui a este povo uma culpa coletiva e hereditária pela morte de Jesus Cristo: “O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos” (Mt 27,25). Os Evangelhos de Mateus e Lucas consideram a destruição de Jerusalém e de seu templo, nos anos 70, uma punição divina por esta morte.
A tradição cristã consolidou a imagem do judeu como povo deicida (que matou Deus). Por muitos séculos na liturgia latina da Sexta-Feira Santa, orava-se pelos “pérfidos judeus”. Originalmente se pensava em pérfidos como não crentes, mas o senso comum logo os associou a traidores. Foram hostilizados por gente simples, confinados em guetos e massacrados por cruzados e por penitentes que se flagelavam. Foram expulsos de reinos e perseguidos pela Inquisição. No século 16, Martin Lutero escreveu contra os judeus, propondo queimar as sinagogas e proibir o culto judaico sob pena de morte. A Alemanha nazista reeditou estes escritos dele, com tiragem de milhões de exemplares.
O antissemitismo moderno e o nazismo têm base secular, alheia ou até em conflito com a religião cristã. Porém, inegavelmente houve pontos de convergência. Somente na década de 1960, com o Concílio Vaticano II, o mundo católico reconsiderou a suposta culpa judaica pela morte de Jesus. Desde então, o povo judeu não deve ser apresentado na pregação e na catequese da Igreja como povo amaldiçoado por Deus. Este é um exemplo da vigilância eclesial, mencionada pelo papa, para se evitar comprometimento com tal degeneração.
A perseguição nazista contra gays, por sua vez, também remonta a um passado longínquo. Na cristandade, leis civis e eclesiásticas trataram as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo como sodomia, um crime horrendo que provoca tanto a ira de Deus a ponto de supostamente causar tempestades, terremotos, pestes e fomes que destruíram cidades inteiras.
O termo sodomia se refere ao relato bíblico de Sodoma e Gomorra, cidades cujos habitantes recusaram a hospitalidade aos que visitavam o patriarca Ló, a ponto tentarem violentá-los sexualmente. Tal pecado clamou aos céus e resultou no castigo divino destruidor (Gn 19). Esta tentativa de violência nada tem a ver com amor ou com relações sexuais livremente consentidas entre pessoas do mesmo sexo, mas séculos depois tal relato bíblico passou a ser interpretado deste modo.
As leis alemãs antes do nazismo já criminalizavam a prática homossexual, mas o regime de Hitler agiu com um rigor implacável e cruel: enviou milhares de homossexuais aos campos de concentração, vestiu-os de uniforme presidiário com um triângulo rosa, submeteu-os à execração e à violência dos demais presos, bem como a experimentos médicos com efeitos devastadores. E, além de tudo isso, o fim do nazismo não aliviou a sorte deles. O governo militar dos aliados manteve os homossexuais encarcerados para continuarem cumprindo pena, ao contrário de outros presos. A homossexualidade continuou criminalizada na Alemanha e só começou a abrandar na década de 1970.
Hoje, cerca de 70 países ainda criminalizam a prática homossexual. Alguns a punem com a morte. Há pouco tempo, eu ouvi o relato dramático de um africano sobre a aliança perversa de católicos, evangélicos e muçulmanos em seu país para prender e espancar LGBT. Mesmo no Brasil, que recentemente criminalizou a homotransfobia, ainda há tristes e abundantes exemplos de violência física e verbal. Muitos ainda consideram os LGBT nocivos e perigosos, assim como eram considerados os judeus no passado. A vigilância para se evitar comprometimento com tal degeneração requer uma ampla revisão de práticas, pregações e formulações doutrinárias no mundo cristão, assim como se fez em relação aos judeus. Ainda há muito a ser feito. Oxalá o alerta do papa Francisco seja um impulso promissor.
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Lembrando Hitler contra gays e judeus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU