11 Setembro 2019
A visita do Papa Francisco à África destaca uma tendência crescente em direção ao catolicismo descolonizante.
A análise é de Elizabeth A. Foster, professora associada de história da Universidade Tufts, em Massachusetts, e autora de “African Catholic: Decolonization and the Transformation of the Church”. O artigo é publicado por The Washington Post, 10-09-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O Papa Francisco iniciou uma viagem a três países africanos na semana passada, e por uma boa razão. A África tem a população católica que mais rapidamente cresce no planeta, com a projeção de alcançar quase 350 milhões de fiéis em 2050. Ao estender a mão para esta crescente população dos fiéis, o papa deve também olhar para a história do catolicismo na região. Ele pode fazer isso não apenas para conectar os católicos africanos com o passado deles, mas para enfatizar a sua própria mensagem de mudança. Como um reformador que busca modelar a Igreja, Francisco poderá se inspirar nos africanos que desempenharam um papel central na reorientação do catolicismo nas décadas de 1950 e 1960. Essa visita de Francisco ocorre num momento em que o catolicismo está no meio de uma grande mudança, comparável em importância histórica à sua inicial difusão pelo Império Romano ou às revoltas da Reforma Protestante. A força da Igreja em suas fortalezas europeias de longa data está evaporando. As vocações sacerdotais estão tão raras que os bispos têm confiado cada vez mais no clero da África para conduzir as suas igrejas. Em 2015, por exemplo, havia mais de um mil padres africanos francófonos trabalhando na França.
O crescimento da Igreja na África faz parte de seu impressionante sucesso no sul global, que a eleição de Francisco – o primeiro papa latino-americano – reflete.
O que é igualmente notável é que a transformação católica na África aconteceu no espaço de somente duas gerações. Consideremos o fato de que só em 1964 é que houve santos africanos modernos na Igreja, quando Paulo VI canonizou mártires ugandenses durante o Concílio Vaticano II. Além disso, papa algum havia colocado os pés na África subsaariana até 50 anos atrás, quando Paulo foi a Uganda visitar o santuário dos novos santos em 1969.
Naquela época, embora grande parte da África havia se tornado independente do controle europeu, a Igreja ainda dependia muito de missionários vindos das ex-potências coloniais para cuidar dos rebanhos africanos. Prelados africanos ocuparam os assentos episcopais mais visíveis a partir da década de 1950, mas não havia pessoal suficiente dentre eles, nem padres locais o bastante, para circularem. No entanto, hoje, estas mesmas sociedades missionárias estão cada vez mais africanas em suas composições. A Sociedade dos Missionários da África, fundada pelo cardeal francês Charles Lavigerie e coloquialmente conhecida como os Padres Brancos, é hoje liderada por um religioso do Zâmbia, o Pe. Stanley Lubungo.
Como essa transição aconteceu de maneira tão rápida? E por que ela ocorreu na segunda metade do século XX? Afinal, os missionários católicos europeus vinham evangelizando a África há décadas, e mesmo há séculos, antes disso. Por que um processo que prosseguiu lentamente por muito tempo de repente se acelera de forma exponencial?
O período da descolonização entre 1945 e 1965 foi o ponto de inflexão crucial. Após a Segunda Guerra Mundial, mesmo enquanto as potências europeias tentavam desesperadamente manter as suas colônias africanas, o Vaticano começou a se distanciar dos regimes coloniais e a exortar os missionários europeus a formarem os seus próprios substitutos africanos o mais rápido possível.
Primeiramente, o Vaticano só buscava ter um clero local suficiente para ocupar os púlpitos caso os europeus fossem expulsos de um dado território. Mas a “descolonização” da Igreja passou a significar muito mais que isso graças a intelectuais católicos africanos, ao clero e aos leigos que convidaram a hierarquia para tornar o catolicismo mais hospitaleiro aos africanos. Para eles, esta proposta significava conservar o catolicismo em sua característica de ser universal, e não meramente europeia. Ela precisou ser capaz de abraçar a cultura africana, os valores africanos e o povo africano.
O mais destacado entre estes ativistas católicos africanos foi Alioune Diop, senegalês convertido do Islã e que foi o organizador por trás do movimento de negritude. A negritude, que primeiro surgiu entre escritores francófonos afro-caribenhos e africanos na Paris de meados do século XX, celebrava a literatura, a arte e a cultura negras, ao mesmo tempo que rejeitava o colonialismo e a assimilação às normas europeias.
Diop fundou a revista bilíngue Présence Africaine, que publicava a obra de escritores, pensadores e artistas negros, além de uma casa editorial e uma livraria de mesmo nome. Fundou a Sociedade da Cultura Africana e organizou importantes conferências internacionais de artistas e intelectuais negros em Paris em 1956, Roma em 1959 e Dacar em 1966. Diop também cultivou uma vertente católica da negritude que usava todas essas plataformas para promover uma visão nova, mais inclusiva do catolicismo.
A partir do final da década de 1940, Diop foi um defensor incansável da reforma de religião que adotou e recebeu a atenção dos papas João XXIII e Paulo VI. Durante o Concílio Vaticano II, ele organizou um lobby permanente em Roma de católicos da Sociedade da Cultura Africana. Em 1963, em meio ao Concílio, lamentou-se na rádio Vaticano que os católicos africanos precisassem “pegar emprestado o pensamento, a espiritualidade, a liturgia teológica” dos países ocidentais e manifestou o desejo de que eles fossem capazes de “expressar a pessoalidade africana no coração do catolicismo”.
Diop percebia que era o momento de os africanos, há tempos somente receptores da instrução missionária, doar um pouco de sua própria sabedoria à Igreja. Citou, por exemplo, a abertura ao Islã que caracterizava os católicos de seu país natal, o Senegal. Essa ideia foi desenvolvida no Concílio pelo jovem bispo africano de Dacar, Dom Hyacinthe Thiandoum, e se refletiu nos ensinamentos finais conciliares.
Houve, portanto, uma importante ligação entre a descolonização da África e a reorientação do catolicismo no Concílio Vaticano II. Sim, houve os gestos simbólicos da canonização de santos africanos, ou a elevação de Paul Zoungrana, o primeiro cardeal africano francófono, que leu uma das mensagens de encerramento do Concílio aos fiéis em 1965.
Entretanto, houve também o espírito de diálogo com as demais religiões, uma maior abertura ao mundo além da Europa e uma solidariedade com os povos empobrecidos do mundo subdesenvolvido. Intelectuais católicos africanos insistiam que tinham um conhecimento, nascido de suas culturas singulares e da experiência de colonização, para partilhar com os católicos europeus. A hierarquia os escutou, o que definiu o cenário para essa rápida expansão da Igreja na África.
Não se segue, no entanto, que os católicos africanos se alinhem, atualmente, com os europeus progressistas, muito embora os dois grupos tenham sido aliados contra o colonialismo e o racismo nas décadas de 1950 e 1960. Pelo contrário, muitos, embora certamente não todos, dos prelados, do clero e dos leigos africanos de hoje são céticos em relação a Francisco. O Cardeal Robert Sarah, destacado tradicionalista da Guiné, tem denunciado a “idolatria da liberdade ocidental” como uma “besta apocalíptica” e criticou o casamento homoafetivo, a fluidez de gênero, o divórcio, o aborto e a eutanásia como sérias ameaças à família.
Os católicos europeus e americanos de esquerda ficam geralmente consternados com pontos de vista tão estridentes como este. No entanto, é importante lembrar que Diop, independentemente de se concordaria com Sarah, defendia que os católicos africanos não deveriam se conformar com as ideias e os valores europeus prevalecentes.
Dado o crescimento da religião na África, parece razoável esperar que um africano possa estar no assento de Francisco antes que passem outras duas gerações, e talvez muito antes disso. É difícil ver como o predomínio europeu no Colégio Cardinalício possa persistir indefinidamente, dada a demografia da Igreja. As lideranças católicas africanas poderão conduzir a Igreja em uma direção mais progressista em certo sentido, mas poderão fazer exatamente o contrário em outros sentidos. A única certeza é que, embora todas as estradas ainda levem a Roma por enquanto, o assento histórico da Igreja está cada vez mais na periferia remota de um novo império católico do sul global.
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Como a África está transformando a Igreja Católica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU