24 Agosto 2019
No final de julho, ocorreu um encontro, na Universidade John Carroll, em Cleveland, Ohio, em que mais de duas dúzias de universitários de 14 campi jesuítas se reuniram para uma formação intensiva. Por um lado, funcionou como um retiro espiritual inaciano; por outro, foi um acampamento para a formação de jovens ativistas.
O relato é de John Gehring, publicado por National Catholic Reporter, 22-08-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
John Gehring dirige o programa católico “Faith in Public Life” e é autor do livro The Francis Effect: A Radical Pope’s Challenge to the American Catholic Church. O programa Faith in Public Life foi um dos apoiadores da Ignatian Justice Summit, encontro de formação ocorrido em julho de 2019 na Universidade John Carroll, em Ohio, EUA.
“Quais as estruturas de injustiça que me beneficiam e das quais a nossas universidades também se beneficiam?”, perguntou Marcos Gonzales, jesuíta que leciona na Brophy College Preparatory, em Phoenix, no Arizona. Os alunos sentados em círculo tomam notas. Um banner com uma famosa exortação de Santo Inácio – “Vão em frente e incendeiem o mundo!” – é colocado no centro do grupo reunido. Uma mesa com alimentos salgados há no fundo da sala para que façam um lanche pela manhã nestes longos dias.
Gonzales, de 35 anos, que já trabalhou com ex-integrantes de gangues em Los Angeles e que por anos ministrou a migrantes, resume os “Exercícios Espirituais” inacianos como um modo de relacionar a defesa pela imigração a valores mais profundos. “Muitos são ativistas pela justiça social”, diz ele, “mas, para nós, fé e justiça jamais se separam. Aprovamos uma lei, e ela altera a forma como devemos agir. Mas o trabalho de transformar o coração é o que fazemos no ativismo. Isso é o mais difícil de fazer”.
O religioso então dá uma dica prática atrevida aos jovens ativistas: “Se quiserem fazer uma atividade em seus campi e o administrador perguntar por que motivo, digam: ‘as Preferências Apostólicas Universais’”, observa ele com um sorriso irônico referindo-se às prioridades temáticas definidas pelos jesuítas do mundo todo: mostrar o caminho para Deus através dos Exercícios Espirituais e do discernimento; caminhar com os pobres, os descartados do mundo, os vulneráveis em sua dignidade em uma missão de reconciliação e justiça; acompanhar os jovens na criação de um futuro promissor; e colaborar no cuidado da Casa Comum. “As universidades de vocês têm a responsabilidade de realizar estes objetivos”, completou Gonzales.
Esta formação de três dias, encontro da Ignatian Justice Summit focado na ajuda aos alunos para que sejam mais eficientes na defesa dos imigrantes em seus campi e em políticas locais e nacionais, é coordenada pela Ignatian Solidarity Network (Rede Inaciana de Solidariedade), organização americana com sede em Cleveland.
A Ignatian Solidarity Network é amplamente conhecida nos círculos católicos pela realização anual do encontro “Ignatian Family Teach-In for Justice”, evento que atrai mais de 1.500 secundaristas e universitários de instituições jesuítas a Washington, DC, onde participam de oficinas, formações e visitam a Colina do Capitólio. A rede originou-se durante décadas de organização e protesto feitos em resposta aos assassinatos, em 1989, de seis padres jesuítas, suas trabalhadoras domésticas e a filha de uma delas pelos militares salvadorenhos na Universidade da América Central, em El Salvador. Dezenove dos 26 soldados tiveram sua formação naquela que era chamada de a Escola das Américas, do exército americano, em Fort Benning, no estado da Georgia. Desde os anos 90, ativistas católicos e outros começaram a se reunir para uma vigília no lado de fora dos portões da Escola, chamando a atenção para o papel dos Estados Unidos no treinamento militar dos envolvidos nos assassinatos dos jesuítas e em outras campanhas de terror em toda a América Latina. O encontro anual surgiu a partir deste movimento.
A Ignatian Solidarity Network foi fundada em 2004. Recentemente ela realizou uma viagem de imersão a El Paso, no Texas, e a Ciudad Juárez, na fronteira entre EUA e México. Ela coordena a Campaign for Hospitality (Campanha para a Hospitalidade), que envolve escolas, paróquias e a comunidade jesuíta em geral comprometidos na questão da migração.
Inspirada pelo chamado do Papa Francisco para criarmos uma cultura do encontro, bem como para sermos uma resposta oportuna a crescente retórica e políticas anti-imigratórias de parte da Casa Branca e de legislaturas estaduais, esta campanha focaliza a educação sobre os migrantes e a experiência direta com eles, ao mesmo tempo em que oferece ferramentas jurídicas para a defesa de pessoas e instituições. Uma atividade semelhante chamada Ignatian Carbon Challenge (Desafio Inaciano do Carbono) incentiva as faculdades jesuítas a se conscientizarem sobre a crise climática através da oração, educação e de mudanças concretas nas políticas implementas em seus campi. No próximo mês, a Ignatian Solidarity Network coordenará um encontro paroquial em Nova Jersey para funcionários e paroquianos ao redor do tema da justiça em mais de duas dúzias de igrejas.
No momento em que a Ignatian Solidarity Network celebra o seu 15º aniversário, veem-se sinais de que ela emerge como uma das organizações católicas voltadas à justiça social mais significativas e inovadoras dos EUA. Ela tem criado também aquele espaço raro em que os jovens católicos – muitas vezes desiludidos e desconectados da Igreja – ainda encontram alimento para a sua fé num momento em que a crise de abusos clericais novamente castiga as instituições católicas.
Em junho, a Ignatian Solidarity Network recebeu uma doação de US$ 750.000 da Campanha Católica para o Desenvolvimento Humano, programa da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA. O fundo que se estenderá por três anos – doação que é um reflexo da crescente visibilidade da Ignatian Solidarity Network como uma liderança entre as entidades religiosas – permitirá que a organização expanda a sua capacidade de atuação e aprofunde a sua rede de trabalho.
“É enorme para nós”, diz Chris Kerr, de 41 anos, diretor executivo da Ignatian Solidarity Network desde 2011. “Este valor vai, de fato, nos ajudar a garantir que aqueles que se encontram mais vulneráveis em se tratando de políticas imigratórias e que são os mais marginalizados por estas políticas não fiquem apenas nas rodas de diálogo, mas tenham voz e um papel de liderança nas nossas atividades”.
José Cabrera, formado no ano passado pela Universidade Xavier, em Cincinnati, Ohio, é o novo diretor de educação do setor de imigração, cargo que só foi possível com a recente doação. Junto com aproximadamente outros 700 mil jovens imigrantes de todo o país, José está enquadrado na Ação Deferida para Chegadas Infantis (Daca), programa da era Obama que dava proteção temporária contra deportação de filhos de imigrantes indocumentados trazidos para os Estados Unidos enquanto eram menores. Em 2017, o presidente Trump anunciou que terminaria com o programa. O futuro do Daca permanece incerto.
Aos 24 anos, José já é um ativista experiente no campo da imigração, com uma história pessoal ao mesmo tempo desoladora e inspiradora. A sua história ele conta frequentemente – em passeatas a favor da imigração, a professores, diante de membros do Congresso – e, hoje, conta-a de novo para os ativistas universitários reunidos.
Aos 4 anos, José cruzou a fronteira mexicana com os EUA junto da mãe. Um coiote, termo usado para referir a pessoa que auxilia imigrantes indocumentados a cruzar a fronteira, convenceu sua mãe de que, se recebesse mais dinheiro, José poderia usar os documentos de cidadão americano de seu próprio filho. Ela concordou. José e a mãe ficaram separados por quatro dias até se verem novamente. “Vivemos como sem-teto por um ano”, conta José aos alunos enquanto caminha pela sala, marcando suas palavras com gestos animados. “Minha mãe vendia tamales, chiles rellenos, tudo o que podia, economizando dinheiro, até o dia em que conseguimos um apartamento de um dormitório no bairro mais duro de Cincinnati. Ela trabalhava o dia inteiro. Abandonou o seu segundo emprego e se transformou em ativista, dando início a uma organização sem fins lucrativos que ajuda os trabalhadores indocumentados”. O jovem pausa para depois continuar: “Vejam, o movimento do corpo é central. Vocês precisam pôr o corpo inteiro na causa. Isso atrai as pessoas!”
Thairy Garcia, aluna da St. Peter’s University, em Nova Jersey, associa a história de José com uma vontade de querer transformar a dor em algo positivo. Quando tinha 11 anos, o seu pai indocumentado foi posto num centro de detenção para imigrantes. Mais tarde foi solto, mas depois deportado para a Guatemala dois atrás.
“Tive de aprender muito cedo aquilo que a maioria das crianças não precisam conhecer”, diz ela. “Estou com raiva. Não pude fazer nada pelo meu pai, e me senti sem forças, mas quero aprender a usar esta experiência para me conectar com os outros e ajudá-los na mesma situação”.
Outros alunos aqui, todos nomeados para a formação oferecida pela Ignatian Solidarity Network por ministros ou diretores dos centros de serviço e justiça das universidades onde estudam, não têm uma relação imediata com as questões imigratórias, mas se sentem ansiosos para a mergulhar no tema.
Sarah Tooley, de 19 anos, estudante de ciência política e comunicação na Universidade de Creighton, trabalha ativamente no Centro Schlegel de Serviço e Justiça de sua instituição em Omaha, no estado de Nebraska. “Sendo eu da raça branca, sei que tenho privilégios e quero usar isso como uma plataforma para ser solidária com as pessoas”, explicou. Sarah lembra o beato Stanley Rother, que, assim como ela, também era natural de Oklahoma. A jovem participou da missa de beatificação. “Quero dizer, ele era um fazendeiro que foi para a Guatemala trabalhar por justiça. Seu nome foi colocado numa lista negra. Quanta coragem ele precisou ter? Quero ser um pequeno exemplo assim”.
Para Joanna Williams, a questão da imigração não é um exercício abstrato, intelectual. Diretora de educação da organização Kino Border Initiative, em Nogales, no Arizona, e em Sonora, no México, Joanna convive com o sofrimento e esperanças de migrantes diariamente. Em uma sessão com os alunos, ela assim diz:
“A política é uma prateleira vazia, a menos que esteja conectada com histórias individuais e com a experiência das pessoas”, conta ela ao grupo. “Esse é o principal motivo por que estamos aqui”. A onda de políticas anti-imigração que veio junto com o governo Trump, diz Joanna, representa uma crise diária para as famílias de imigrantes. Ela nota que poucos dias antes o atual governo federal tinha oficialmente começado a praticar a política de deportação de pessoas imigrantes, política que permite que agentes federais mandem de volta imediatamente um imigrante para o seu país de origem sem nenhuma audiência na justiça.
Joanna divide os alunos em dois pequenos grupos para que pensem sobre as barreiras que os imigrantes enfrentam em suas comunidades. Um apoio não suficiente a alunos indocumentados e uma falta de serviços de tradução para imigrantes são citados. Um aluno lamenta que agentes de Centro de Imigração e Alfândega estão autorizados a divulgar vagas e a recrutar candidatos dentro do campus como parte das oportunidades ofertadas em feiras de empregos. Joanna circula pela sala, ouve as conversas e oferece orientação.
Segundo ela, aprender onde aplicar, de forma mais estratégica, uma pressão em defesa desta população é fundamental. Aqui podem ser lembrados os reitores, os deputados estaduais ou representantes dos condados. Alguns alunos ansiavam por ideias novas. “Algumas municipalidades e cidades financiam os seus próprios programas de auxílio jurídico a imigrantes”, diz Joanna ao grupo, “mas a maioria das cidades ainda não o fazem. Vocês podem trabalhar para que a cidade onde vocês moram crie um fundos jurídicos de defesa aos imigrantes ou, se já houver, podem atuar no sentido de expandi-los”. Outros alunos lançaram ideias complementadoras: “Pensemos de forma mais radical!”, Joanna diz incentivando-os. “Quando falamos da defesa dos direitos e de políticas, precisamos pensar o próximo passo pragmático. Mas é realmente importante ter o todo presente e representar o sistema inteiro”.
Os alunos foram para o lado de fora no campus, que estava praticamente vazio por estarmos no período de férias. Eles se sentaram ao redor de mesas dispostas sob à sombra de árvores. Kent Adams, ativista do Centro para a Justiça Social, da Universidade de Georgetown, coordena o “DC Schools Project”, programa de apoio a jovens e adultos imigrantes em Washington. “Com estes ataques contra os imigrantes, estamos tentando preparar as famílias para que conheçam os seus direitos”, disse ele.
Em outra mesa, Marissa Ocampo, da Universidade de Santa Clara, na Califórnia, lança algumas ideias com sua colega, Yesenia Magdaleno-Solis. As duas gostam da proposta de usar a arte e fazer apresentações multimídias como forma de ajudar a educar os alunos a respeito da imigração. Mesmo em um campus bastante progressista como o da universidade em que estudam, surgem momentos de tensão. “Houve uma festa pró-Trump em meu dormitório depois das eleições”, diz Marissa. “Senti mais medo depois desse dia”.
Miles Tiemeyer, vice-presidente organização estudantil “College Democrats”, da Universidade Xavier, em Cincinnati, falou que os alunos montaram um posto de fronteira falso no campus há alguns anos. Passar da conscientização para políticas específicas é o próximo passo. “Estamos tentando trabalhar com a reitoria para deixar de se investir em combustíveis fósseis, mas também queremos ver se a instituição não tem mais investido em prisões privadas ou centros de detenção”.
Depois de um intervalo e do churrasco oferecido pelos funcionários da Ignatian Solidarity Network no Parque Edgewater, junto ao rio Erie, os alunos estão de volta ao trabalho. No painel que destacou jovens recém-formados em universidades jesuítas, Li Adorno, formado em 2017 pela St. Peter’s University, em Nova Jersey, falou sobre como os alunos ativistas poderiam atuar no sentido da conscientização em torno dos alunos indocumentados, população que, por muitos anos, se sentiu invisível nos campi. Na qualidade de líder estudantil, Li Adorno redigiu uma carta aberta ao reitor da universidade em que destacou os desafios de ser indocumentado. Quando os protestos estudantis começaram a chamar a atenção em nível nacional para os alunos indocumentados, o líder estudantil coordenou uma passeata do lado de fora da universidade. Este ato fez a diferença. Em 2014, a St. Peter’s inaugurou o Centro para Alunos Indocumentados, espaço acolhedor no campus que oferece uma gama de apoio, incluindo consultoria jurídica com advogados especialistas na área migratória, orientação para saúde mental, recursos financeiros e oportunidades de empregos compatíveis com os estudos. A St. Peter’s é a primeira universidade jesuíta a ter um centro dedicado especialmente a alunos sem documentos.
No último dia de formação, os alunos desenvolveram os planos de ação. Entre as ideias estão a realização da “UndocuWeek”, ciclo de atividades nos campi voltadas para a conscientização; o uso do Instagram e outras mídias sociais para ajudar a contar as histórias de imigrantes; simulações de populações refugiadas; e o uso da arte para ajudar a transformar a narrativa sobre os migrantes.
José Cabrera, o jovem formado pela Universidade Xavier que falou sobre o poder dos relatos pessoais e que atualmente coordena o grupo de defesa aos imigrantes da Ignatian Solidarity Network, envia os alunos de volta para as suas casas com uma mensagem:
“Organizem e desafiem as pessoas”, diz ele. “Contem com o nosso apoio. Não se sintam sós. Lembrem-se: este movimento, mesmo sendo difícil, é um movimento bonito e é para todos. A imigração não é só uma questão do povo latino”.
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Rede inaciana de solidariedade educa e inspira ativistas jovens pela imigração - Instituto Humanitas Unisinos - IHU