18 Julho 2019
“Para ir à lua precisamos de um veículo, para fazer a revolução, também. Para a lua, uma nave espacial, para a revolução, um partido político. Ñukanchik Socialismo é agora um movimento, não diz ser o dono da verdade, nem que é o partido da revolução, diz que deseja ser. Amparado em seus direitos, propõe o debate, convencido de que a polêmica leal e honesta é o melhor caminho para chegar ao coração do povo”, escreve Jorge Oviedo Rueda, narrador, ensaísta, historiador e professor universitário, em artigo publicado por Alai, 08-07-2019. A tradução é do Cepat.
Três anos após o triunfo de Lenin Moreno, começa a ficar claro o panorama político-ideológico do Equador. Há vozes que falam do “legado correísta” começando a dissipar a espessa cortina de ódio que as elites nacionais e seus aliados internacionais levantaram ao redor do progressismo correísta. Só o ódio classista pode explicar que se tenha desejado negar o trabalho histórico do governo aliancista, na década passada.
Com ânimo triunfalista, seu líder anunciou, em certa ocasião, que a Revolução Cidadã duraria 30 anos, o que era um exagero. Contudo, negar sua importância na história recente do Equador não só é uma indecência, como também demonstra a permanência insolente da mentalidade colonial, que não aceita nem no presente e nem no futuro as mudanças históricas que o Equador necessita.
Ñukanchik Socialismo sempre compreendeu a importância histórica da Revolução Cidadã, valorizando-a em sua justa dimensão. Sustentou que Rafael Correa veio para completar a truncada revolução machetera de Eloy Alfaro, sua proposta histórica de consolidar o Estado burguês moderno democratizando o capital, a partir dos setores populares, e fortalecendo, via setor público, um setor médio da sociedade. Toda a obra prática do governo da Revolução Cidadã se localiza neste marco histórico e nisso radica seu limite.
Correa e seus porta-vozes nunca deram atenção às vozes críticas ao seu governo. Não me refiro à “truta oposição”, essa que se preocupava mais com cor daquilo que o líder usava, mas, sim, aquela que foi capaz de fazer delineamentos teóricos e conceituais capazes de empurrar o processo para além de seus limites. Começaram a falar de uma sociedade pós-neoliberal, de um socialismo de mercado e de um ecossocialismo, delineamentos que bem poderiam se encaixar com as concepções dessa oposição teórica, mas que ao ser tratados de maneira tão superficial e irresponsável, não foram além de pinceladas interessantes na paisagem reformista geral da Revolução Cidadã.
A lógica do processo reformista, sem direção revolucionária, como aconteceu ao final, precisou abandonar a projeção popular e dar uma guinada às fórmulas do neoliberalismo fundo-monetarista. O governo de Lenin Moreno é a versão decadente do último correísmo, desse correísmo que havia chegado à bifurcação do caminho e não lhe restava outra coisa a não ser decidir se ia pelo caminho neoliberal ou pela senda arriscada e difícil da radicalização do processo. Lenin Moreno decidiu pelo primeiro. Sem alento histórico nem para decidir a conveniência ou não de um feriado nacional, decidiu se entregar à oligarquia de sempre e aos setores norte-americanos. A pergunta é: o que Rafael Correa teria feito?
Que respondam essa pergunta os especuladores profissionais ou os adivinhadores. Ñukanchik Socialismo volta a apresentar as teses que considera estar à esquerda do projeto reformista de Rafael Correa, aquelas sem as quais, seja qual líder for, continuará girando em torno das eternas fórmulas liberais, neoliberais, keynesianas, neokeynesianas, clássicas ou neoclássicas, ou seja, continuarão mudando a coleira para o mesmo cão do capitalismo:
A pedra angular do pensamento ancestral é o equilíbrio dinâmico. Deve existir equilíbrio na produção, na distribuição, no consumo, na relação do ser humano com a natureza. A falta de equilíbrio altera o fluxo normal de energias entre os múltiplos sistemas que formam o sistema geral da vida. Um sistema econômico-social perde o equilíbrio quando se permite a acumulação da riqueza em poucas mãos.
A partir do regime colonial, perdeu-se o equilíbrio na sociedade americana. Quinhentos anos depois, faz-se necessário restaurar esse equilíbrio. A restauração do equilíbrio agora significa ter fechado um Pachakútic e localizar a sociedade em um nível superior, que durará outros quinhentos anos, momento no qual será necessário voltar a recuperar o equilíbrio perdido até então, para ampliar a espiral histórica, sem trégua e nem descanso, até o infinito.
A sociedade do Sumak Kawsay Revolucionário não elimina o direito à propriedade individual, mas principia a propriedade comunitária sobre os meios de produção, a mesma que, apoiada na noção angular de equilíbrio, torna possível a diferenciação da propriedade entre proprietários individuais e o Estado e, entre eles próprios, impedindo, por meio de um processo permanente de controle a cargo do Estado, que se rompa o equilíbrio estrutural.
Contudo, o equilíbrio cíclico não é somente o resultado da ativação dos “fatores” da história, mas sua conjunção com a vontade do ser humano. A restauração é o ato consciente dos indivíduos em meio a suas circunstâncias históricas. Após esta ruptura com a ordem herdada, então, inicia-se - mas só então - a transição para o pleno equilíbrio das forças produtivas e sociais na qual nada, nem ninguém, estarão excluídos.
A crise atual não é só a crise do sistema capitalista, mas a de sua civilização. O desajuste entre o ser humano e a natureza é de tal intensidade que a humanidade está ameaçada de morte. Entre todos nós, que viajamos nesta nave sideral que se chama Terra, se junta uma vanguarda político-espiritual disposta a assimilar a essência do Sumak Kawsay Revolucionário.
Essa vanguarda se prepara se aproximando do poder das ervas sagradas, interpretando as fontes, vestígios materiais e espirituais das sociedades ancestrais e estudando as ideias autênticas do pensamento revolucionário do ocidente. Quando chega o momento da convulsão revolucionária e essa vanguarda triunfa - sempre fazendo uso da violência revolucionaria -, o inimigo de classe se torna uma minoria, a mesma que vai desaparecendo na medida em que avança o processo de construção da nova sociedade.
Não há fórmulas ideológicas para construir o equilíbrio, só o método dialético legado por Marx, fundido, agora, com a herança do pensamento ancestral americano. Se para algo podem nos servir as experiências históricas do chamado “socialismo real” e a própria história do capitalismo, será para evitar os erros cometidos.
A construção da nova sociedade do Sumak Kawsay é uma experiência inédita que conta somente com a sabedoria humana acumulada durante milênios e o desenvolvimento espiritual alcançado até nossos dias. Uma sociedade de exclusivo desenvolvimento material só pode acabar em destruição, assim como é impossível uma de exclusivo desenvolvimento espiritual. A conjunção de ambos é a nova Utopia.
Se uma vanguarda político-espiritual chegasse a controlar o Estado, se produziria uma mudança qualitativa em sua natureza: deixaria de representar os interesses de uma classe e passaria a representar os de toda a sociedade. As regras do jogo político do velho regime se tornariam obsoletas, sendo construídas, sobre a marcha, outras, que representariam as novas relações de produção e de poder.
Outra economia, outro sistema jurídico, outro sistema educacional, outro tipo de democracia. Não existem fórmulas, tudo depende da dialética sustentada no equilíbrio estrutural. A sociedade em seu conjunto inicia um processo heroico de criação do novo. Processos como os do Progressismo Latino-Americano são o elo prévio da transformação social, mas sem direção revolucionária, esses processos ficam truncados e só servem para consolidar o capitalismo.
Toda forma de luta contra o regime estabelecido é válida, só que nas atuais circunstância históricas, é preciso priorizar a disputa eleitoral. A ativação política do correísmo permitiu que os atores políticos colocassem sobre a mesa todas as suas cartas, motivo pelo qual, a esquerda revolucionária, Ñukanchik Socialismo – que é a nova esquerda no Equador -, tem a oportunidade “democrática” de ser radical, sem que isso signifique pegar em armas, mas, ao contrário, conduzir, sem trégua, nem descanso, uma luta ideológica frontal dentro das normas da “democracia real” que agora existe.
Temos o direito de demonstrar que estamos à esquerda do projeto correísta e de disputar, eleitoralmente, com ele e com o restante das forças. A democracia burguesa, para ser tal, precisa aceitar a existência de uma força política antissistema. Caso não aja assim, ficaria evidente a sua natureza excludente e autoritária, ou seja, antidemocrática e ficariam abertas as portas para outras formas de luta.
A terra será o sustento da nova vida. Podemos prescindir dos bens industriais; dos que a terra nos dá, não. Um sistema de produção agrícola, no qual a indústria seja complementar às necessidades básicas do ser humano, é possível. Ñukanchik Socialismo lutará por isso, até ver o Equador convertido em um belo empório agrícola.
Ao lado da transformação da matriz produtiva, é preciso iniciar a mudança do sistema educacional, sem o qual será impossível consolidar o triunfo político. Nova educação significa nova ciência, necessária para tornar realidade a harmonia das necessidades do ser humano com a natureza. É preciso ensinar as novas gerações a respeitar seu ambiente, objetivo que nunca será conquistado, caso se dê continuidade à educação na ciência burguesa. Depurar a tecnologia para a colocar a nosso serviço e não, como é agora, o ser humano a serviço da tecnologia.
Para ir à lua precisamos de um veículo, para fazer a revolução, também. Para a lua, uma nave espacial, para a revolução, um partido político. Ñukanchik Socialismo é agora um movimento, não diz ser o dono da verdade, nem que é o partido da revolução, diz que deseja ser. Amparado em seus direitos, propõe o debate, convencido de que a polêmica leal e honesta é o melhor caminho para chegar ao coração do povo.
Rejeita o silêncio cúmplice, a tese criminosa de “avançar sem discutir”, a falta de interesse na autocrítica como instrumento de depuração de nossas fileiras. Condena a indiferença política e rejeita a ingerência da nova direita no debate que a esquerda revolucionária trava contra o correísmo [1]. Considera que as linhas gerais do debate estão delineadas entre o reformismo, com todas as suas variantes, e a nova teoria revolucionária, aquela que se localiza à esquerda do projeto de Aliança País e de seu caudilho Rafael Correa Delgado.
[1] Vejam todas as cartas que o jornalista José Hernández dirigiu a personalidades de nosso âmbito político como Rafael Correa e Alberto Acosta. Sua crítica “democrática” usando os argumentos da esquerda revolucionária soa falsa, porque por trás disso não existe proposta política, só o embate para esclarecer quem está melhor capacitado para levar adiante o mesmo projeto reformista. Para os porta-vozes da neodireita, trata-se apenas de uma questão de “estilo”.
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Equador. Os dez princípios da nova sociedade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU