11 Mai 2019
O motu proprio do Papa Francisco, Vos estis lux mundi estabelece novos procedimentos para denunciar assédios e violências, e garantir que bispos e superiores religiosos prestem contas de seu trabalho. Foi introduzida a obrigatoriedade a clérigos e religiosos de denunciar os abusos. Cada diocese deverá dotar-se de um sistema facilmente acessível ao público para receber as informações.
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada por Vatican News, 09-05-2019.
“Vos estis lux mundi, Vós sois a luz do mundo. Nosso Senhor Jesus Cristo chama cada fiel a ser exemplo luminoso de virtude, integridade e santidade”.
Do Evangelho de Mateus foram extraídos o título e as primeiras palavras do novo Motu proprio do Papa Francisco dedicado à luta contra os abusos sexuais cometidos por clérigos e religiosos, e às ações ou omissões dos bispos e dos superiores religiosos “tendentes a interferir ou contornar” as investigações sobre os abusos. O Papa recorda que os “crimes de abuso sexual ofendem Nosso Senhor, causam danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e lesam a comunidade dos fiéis”, e menciona a responsabilidade particular que têm os sucessores dos apóstolos em prevenir tais crimes.
O documento representa um fruto imediato do encontro sobre a proteção dos menores realizado no Vaticano, em fevereiro de 2019. Estabelece novas normas para combater os abusos sexuais e garantir que bispos e superiores religiosos prestem contas de suas ações. É uma normativa universal, que se aplica a toda a Igreja Católica.
Entre as novidades previstas está a obrigatoriedade, para todas as dioceses do mundo, de dotarem-se até junho de 2020 de “um ou mais sistemas estáveis e facilmente acessíveis ao público para apresentar as informações” a respeito dos abusos sexuais cometidos por clérigos e religiosos, o uso de material pornográfico infantil e o acobertamento dos próprios abusos. A normativa não especifica em que consistem esses “sistemas”, para deixar às dioceses a escolha operativa, que poderá ser diferente de acordo com as várias culturas e condições locais. O que se quer é que as pessoas que sofreram abusos possam recorrer à Igreja local certas de que serão bem acolhidas, que serão protegidas de represálias e que suas denúncias serão tratadas com a máxima seriedade.
Outra novidade diz respeito à obrigatoriedade para todos os clérigos, os religiosos e as religiosas de “comunicar prontamente” à autoridade eclesiástica todas as notícias de abusos que tiverem conhecimento, assim como as eventuais omissões e acobertamentos na gestão dos casos de abusos. Se até hoje esta obrigação chamava em causa, num certo sentido, somente a consciência individual, de agora em diante se torna um preceito legal estabelecido universalmente. A obrigatoriedade em si é atribuída somente aos clérigos e religiosos, mas todos os leigos também podem e são encorajados a utilizar o sistema para comunicar abusos e assédios às autoridades eclesiásticas competentes.
O documento compreende não somente os assédios e violências contra os menores e os adultos vulneráveis, mas diz respeito também à violência sexual e aos assédios que derivam do abuso de autoridade. Esta obrigatoriedade inclui também qualquer caso de violência contra religiosas por parte de clérigos, assim como também o caso de assédios a seminaristas ou noviços adultos.
Entre os elementos de maior destaque está a identificação, como categoria específica, da chamada conduta de acobertamento, que consiste “em ações ou omissões com tendência a interferir ou contornar as investigações civis ou as investigações canônicas, administrativas ou criminais, contra um clérigo ou um religioso, relativas aos crimes” de abuso sexual. Trata-se daqueles que, exercendo cargos de particular responsabilidade na Igreja, ao invés de investigar os abusos cometidos por outros, os esconderam, protegendo o suposto réu ao invés de apoiar as vítimas.
Vos estis lux mundi acentua a importância de proteger os menores (pessoas com menos de 18 anos) e as pessoas vulneráveis. De fato, é ampliada a noção de “pessoa vulnerável”, não mais restrita somente às pessoas que não têm “o uso habitual” da razão, mas compreende também os casos ocasionais e transitórios de incapacidade de entender e querer, além das deficiências de ordem física. Nisto, o novo Motu proprio se inspira na recente Lei vaticana (n. CCXCVII de 26 de março de 2019).
A obrigatoriedade de comunicar ao responsável local ou ao superior religioso não interfere e nem modifica qualquer outra obrigação de denúncia eventualmente existente nas leis dos respectivos países. As normas, de fato, “aplicam-se sem prejuízo dos direitos e obrigações estabelecidos em cada local pelas leis estatais, particularmente aquelas relativas a eventuais obrigações de comunicação às autoridades civis competentes”.
Também são significativos os parágrafos dedicados a proteger quem se oferece para fazer as denúncias. Quem apresenta notícias de abusos, segundo prevê o Motu proprio, não pode, de fato, ser submetido a “danos, retaliações ou discriminações” em decorrência daquilo que assinalou. Uma atenção também ao problema das vítimas que, no passado, foram reduzidas ao silêncio. Essas normas universais preveem que “não pode ser” imposto a elas “qualquer ônus de silêncio a respeito do conteúdo” da informação.
Obviamente, o segredo de confissão permanece absoluto e inviolável e, portanto, não é de modo algum tocado por esta normativa. Vos estis lux mundi estabelece ainda que as vítimas e suas famílias devem ser tratadas com dignidade e respeito e devem receber uma apropriada assistência espiritual, médica e psicológica.
O Motu proprio disciplina as investigações a cargo dos bispos, dos cardeais, dos superiores religiosos e daqueles que têm a responsabilidade, mesmo que temporariamente, de guiar uma diocese ou outra Igreja particular. Esta disciplina deverá ser observada não somente se essas pessoas forem investigadas por abusos sexuais realizados diretamente, mas também se forem denunciadas por terem “acobertado” ou não terem investigado abusos dos quais tiveram conhecimento e que cabia a elas combater.
É significativa a novidade a respeito do envolvimento na investigação prévia do arcebispo metropolitano, que recebe da Santa Sé o mandato de investigar caso a pessoa denunciada seja um bispo. O seu papel, tradicional da Igreja, fica assim reforçado e comprova a vontade de valorizar os recursos locais, inclusive para questões acerca da investigação dos bispos. Aquele que for encarregado de investigar, após trinta dias, deve transmitir à Santa Sé “um relatório informativo sobre o estado das investigações”, que “devem ser concluídas no prazo de noventa dias” (são possíveis adiamentos por “fundados motivos”). Isso estabelece tempos precisos e, pela primeira vez, pede-se que os Dicastérios interessados ajam com tempestividade.
Citando o artigo do Código Canônico, que destaca a preciosa contribuição dos leigos, as normas do Motu proprio preveem que o metropolitano, ao conduzir as investigações, possa contar com a ajuda de “pessoas qualificadas”, segundo “as necessidades do caso e, em particular, tendo em conta a cooperação que pode ser oferecida pelos leigos”.
O Papa afirmou mais de uma vez que as especializações e as capacidades profissionais dos leigos representam um recurso importante para a Igreja. As normas preveem agora que as conferências episcopais e as dioceses possam preparar listas de pessoas qualificadas disponíveis a colaborar, mas a responsabilidade última sobre as investigações permanece confiada ao arcebispo metropolitano.
Reitera-se o princípio da presunção de inocência da pessoa investigada, que será avisada da existência da própria investigação quando for solicitado pelo Dicastério competente. A acusação, de fato, deve ser notificada obrigatoriamente somente quando houver a abertura de um processo formal e, se considerada oportuna para garantir a integridade da investigação ou das provas, pode ser omitida na fase preliminar.
O Motu proprio não traz modificações às penas previstas para os crimes, mas estabelece o procedimento para a comunicação e realizar a investigação prévia. No encerramento da investigação, o arcebispo metropolitano (ou em determinados casos o bispo da diocese sufragânea com maior antiguidade de nomeação) encaminha os resultados ao Dicastério vaticano competente e cessa, assim, a sua tarefa. O Dicastério competente procede então “nos termos do direito, de acordo com o previsto para o caso específico”, agindo, portanto, com base nas normas canônicas já existentes. Com base nos resultados da investigação prévia, a Santa Sé pode imediatamente impor medidas preventivas e restritivas à pessoa investigada.
Com este novo instrumento jurídico desejado por Francisco, a Igreja Católica realiza um novo e incisivo passo na prevenção e combate dos abusos, que enfatiza ações concretas. Como escreve o Papa no início do documento: “Para que tais fenômenos, em todas as suas formas, não aconteçam mais, é necessária uma conversão contínua e profunda dos corações, atestada por ações concretas e eficazes que envolvam a todos na Igreja”.
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Novas normas para toda a Igreja contra quem abusa ou acoberta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU