29 Outubro 2018
A crescente insegurança no país dá munição ao discurso demagógico do candidato de extrema direita. Moradores e ativistas das favelas temem que suas ideias radicais piorem uma situação já caótica.
A reportagem é de Javier Lafuente e Felipe Betim, publicada por El País, 28-10-2018.
O Brasil para o qual alerta Jair Bolsonaro já existe. Sofre com ele Arthur Viana, que é negro e vive no Complexo de Favelas da Maré, no Rio de Janeiro. Há 10 anos, estava com alguns amigos, ao sair da escola, quando explodiu a loucura. Na área havia grupos armados, “como sempre”, e também policiais à paisana. Agentes que começaram o tiroteio. A rua estava cheia. “Eu não podia ver se alguém tinha ficado no caminho, foi traumático”. Com 21 anos, já perdeu amigos, familiares. Como seu tio, que era membro desses grupos criminosos. “Já tinha se rendido e deveria ser detido e processado, mas deu na mesma, um policial o esfaqueou. Hoje meu primo, de três anos, tem medo quando escuta barulho de fogos, porque sabe o que aconteceu, e sabe que foi a polícia.”
Também sofre com esse Brasil Lucas Fordes, de 16 anos, quase um clone físico do jogador de futebol MBappé, que se move inquieto em uma cadeira de rodas enquanto escuta Viana, antes de contar seu caso. Suas histórias: a do dia em que policiais entraram na escola procurando um assaltante que tinha roubado um celular e ameaçaram atirar. Ou a do período em que o Exército tomou o controle da Maré, onde também vive, antes da Copa do Mundo de 2014. “Não podia andar com tranquilidade na rua sem ser abordado ou revistado”. A da noite em que mataram seu pai: certa madrugada, durante o período de intervenção militar, estava num baile funk, bebendo com alguns amigos, quando os militares se aproximaram e deram-lhe choques elétricos. Havia testemunhas, mas não adiantou. O caso ainda aguarda uma decisão judicial.
Sofre-se também, em outra medida, no nobre bairro de Ipanema, onde Fernanda Franco, de 35 anos, em frente a uma livraria, diz que “tudo isto é muito perigoso” e recorda que tentaram assaltá-la com arma duas vezes no último ano. Por isso, diz, votará em Bolsonaro, embora a careta que faz esconda uma espécie de pedido de perdão.
No maior país da América Latina, o número de mortes violentas não parou de subir nos últimos anos. Em 2017, bateu um recorde, 63.880 homicídios, sete por hora, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Indignados, os brasileiros querem respostas rápidas. E o candidato de extrema direita, favorito para a eleição deste domingo, dá essas respostas. A onda de insegurança é munição para suas propostas. Com um discurso duro que reflete toda essa indignação, acompanhado por seu característico gesto de simular uma pistola com o polegar e o indicador, Bolsonaro propõe facilitar o acesso das pessoas às armas; estimular os policiais a matar, dizendo que em vez de ser processado, quem executa um criminoso deve ser condecorado; e endurecer o código penal, para encher ainda mais as já superlotadas prisões. Mais que um antídoto, muitos temem que isso leve a um aumento da violência e que Bolsonaro se transforme em uma versão tropical do presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte.
“Essas medidas são demagógicas, populistas e eleitoreiras”, resume Silvia Ramos, socióloga e especialista em segurança pública do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, da Universidade Cândido Mendes. A única coisa que a tranquiliza é que para pôr em prática os planos que tem, Bolsonaro terá de mudar decretos e protocolos, aprovar novas leis e modificar a Constituição, e para isso precisará de apoios de todo o espectro político. “Se ele conseguir, essas medidas elevarão os números da violência”, adverte Ramos, quem coloca o foco na vizinha Venezuela, o flanco preferido, aliás, de Bolsonaro para atacar seu adversário Fernando Haddad. Em sintonia com milhões de seus seguidores, o candidato ultradireitista tem espalhado a ideia de que um possível triunfo do Partido dos Trabalhadores (PT) transformaria o Brasil em um clone de seu vizinho por sua simpatia do passado com o regime chavista. No entanto, são as intenções de Bolsonaro que mais se assemelham às de Maduro, que pôs em andamento as chamadas Operações para a Liberação e Proteção do Povo (OLP) e fortaleceu os “coletivos”, grupos equivalentes às milícias.
O fenômeno das milícias se concentra principalmente no Estado do Rio. Trata-se de grupos paramilitares, formados geralmente por policiais ou bombeiros, da ativa ou da reserva, que controlam territórios na zona oeste da capital e em outros municípios. Prometiam levar segurança a esses lugares, e por isso foram apoiados durante muito tempo por políticos. Mas acabaram implantando um regime de terror e extorsão. Controlam os serviços de gás, água e Internet, disputam territórios com o tráfico de drogas e concorrem em eleições. Já em outros Estados, sobretudo no Norte e Nordeste, são os grupos de extermínio, também formados por agentes de segurança, que espalham o terror. “Com Bolsonaro, se os controles sociais do uso da violência deixarem de existir, um policial estará livre para fazer o que quiser. Para subornar ou se unir a grupos de extermínio e grupos milicianos”, acredita Daniel Cerqueira, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e conselheiro do Fórum de Segurança Pública. “A violência policial sempre vem com a corrupção. O policial que tem autorização para matar também tem autorização para extorquir”, acrescenta a socióloga Ramos.
“Se incentivamos a polícia a matar ainda mais e as pessoas a ter armas, apelando para a violência e o ódio, estamos criando um terreno fértil para que esses grupos se expandam”, opina Ignacio Cano, sociólogo da Universidade do Estado de Rio de Janeiro (UERJ), acrescentando: “Os policiais brasileiros reconhecem que matam mais de 5.000 pessoas por ano, sem contar as execuções sumárias. Isso vai aumentar com Bolsonaro, quando ele diz que o policial não vai ser processado. Os policiais quase nunca são processados”. Não que grupos de traficantes armados sejam melhores ou não espalhem medo e opressão. O que os moradores das favelas e periferias querem, explica Lidiane Malaquini, que coordena o eixo de segurança pública e acesso à Justiça da ONG Redes da Maré, é não ficar entre fuzis, sejam eles de traficantes ou da polícia. "Muitas vezes colocamos a população da favela entre um e outro, como se fosse uma escolha. O sonho que temos é viver em um território desarmado. Tudo o que fazemos é provocar o Estado para que ele repense a sua forma de atuar no território, para além dessa lógica de enxugar gelo", argumenta.
Denise de Moraes, de 53 anos, confirma. Há quatro anos, um policial matou seu filho Caio, de 20. Ele foi baleado no peito durante uma manifestação no Complexo do Alemão. O crime continua impune. “A polícia vai ter mais poder do que já tem [se Bolsonaro ganhar]”, lamenta essa comerciante, que também não se convence com uma eventual vitória de Haddad. “O que eu quero é um desarmamento, minha família foi morta por armas”, ressalta ela, que após perder o filho também perdeu os pais, que ficaram deprimidos. O agente que atirou em seu filho pertencia a um batalhão do programa cujo nome acaba sendo um paradoxo macabro: Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). No edifício da comunidade Nova Brasília, a delegacia à qual ele pertencia, em pleno Complexo do Alemão, são visíveis os buracos deixados pelos disparos de armas pesadas. Seria inútil tapá-los, já que os confrontos são constantes. Mariete, uma senhora idosa, caminha na manhã chuvosa de quinta-feira perto da delegacia baleada. Olha com o canto dos olhos para alguns policiais parados e, com desprezo, começa a contar que no dia anterior um senhor de 70 anos morreu atingido por uma bala. Diz que dia após dia, com a troca da guarda, a polícia chega insultando, que todos sabem quais são. Conta que os confrontos entre policiais e criminosos ocorrem de manhã. E ninguém faz nada.
Contraditoriamente, esses mesmos eleitores indignados com o terror dos fuzis votaram em peso em Bolsonaro, que conseguiu quase 60% dos votos no Estado do Rio no primeiro turno. Não teria conseguido tamanho apoio sem o voto dos pobres das periferias. Moraes, que votou em Guilherme Boulos (PSOL) no primeiro turno, acredita que a religião é um fator importante na decisão. "Eu devo ir de Haddad, mas você acha que eu não me preocupo com a cartilha [o chamado kit gay] nas escolas? Eu não tenho nenhum preconceito com a orientação sexual das pessoas, mas tenho netos pequenos e não quero que sejam influenciados na escola", explica ela, que é evangélica e frequenta uma igreja Batista. Outras pessoas ouvidas pela reportagem coincidem com sua explicação: o apoio maciço das principais instituições evangélicas do país e as notícias falsas que circulam nas redes, alertando por exemplo para o chamado kit gay, vem conseguindo mobilizar um eleitorado predominantemente religioso e conservador a favor de Bolsonaro.
“Mas os moradores sabem o que querem, sabem do que precisam. Entendem muito bem”, diz a alguns quilômetros dali Arthur Viana, o jovem que decidiu ser ativista depois do assassinato da vereadora Marielle Franco, que cresceu na favela. Lutava contra a política de guerra às drogas que todos os anos mata milhares de jovens, principalmente negros, nas periferias do Brasil. “Se não fizermos algo, continuaremos morrendo. O desafio é construir uma comunidade, unindo aqueles que são de direita, que votam em Bolsonaro, que também sabem que as coisas têm de melhorar, e os ativistas de direitos humanos”, destaca Viana, acrescentando: “A guerra contra as drogas é uma desculpa para manter o controle social. É uma questão econômica, porque há pessoas que estão lucrando, e essas pessoas não vivem aqui. Os políticos sempre gostam de jogar com o medo das pessoas”.
Viana, como Marielle Franco, nasceu e cresceu no Complexo da Maré, um conglomerado de 16 favelas onde vivem 140.000 pessoas, controlado por vários grupos armados e localizado entre duas importantes vias do Rio. No último ano foram realizadas no complexo 41 operações policiais, os centros de saúde estiveram fechados durante 45 dias e as escolas não funcionaram durante 35, segundo os dados da ONG Redes da Maré, que há mais de 20 anos desenvolve trabalhos em vários eixos, sendo um deles o direito a segurança pública e acesso à Justiça — em dias de operação policial, por exemplo, realizam plantões e oferecem assistência jurídica àqueles que necessitam. "Nas favelas o Estado e a sociedade suspendem os direitos. A segurança pública que Bolsonaro fala que vai acontecer já acontece nas favelas. O policial, durante uma operação, muitas vezes rasga toda o sistema de justiça criminal. Ele patrulha, prende, investiga, julga e cumpre penas, que muitas vezes é a tortura e a morte", explica Lidiane Malaquini. Ela acredita que, se colocadas em prática, as propostas de Bolsonaro podem legitimar ainda esta situação. "Muitos movimentos de favela dizem que já vivemos a ditadura na favela. Mas eu concordo em parte. Porque quando isso acontece, ainda geramos constrangimentos no Estado. Se sofremos algum tipo de ameaça, podemos ir na Secretária de Segurança e exigir desculpas. Se temos um presidente ou um governador que legitima essas ações, você nem tem espaço para questionar", argumenta.
Em uma atividade da organização em que trabalham, Viana e Lucas Fordes se reuniram na quinta-feira com um grupo de meninos e meninas. Levaram folhetos lembrando o que a polícia pode e não pode fazer ao entrar: “O policial tem de se identificar e dizer seu posto. Mas não pode ofender uma pessoa”, recordaram. São direitos básicos que ainda não chegaram completamente à Maré. Quando, no final, pediram que as crianças contribuíssem com o debate, só Cauã, de 14 anos, animou-se a falar: “Tudo isto ocorre porque não convivem conosco aqui dentro, não sabem o que passamos. O que mais nos prejudica não são os bandidos ou as drogas, e sim os governantes, a polícia. Como vamos ter uma educação melhor se há três operações policiais por mês?”.
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Um Brasil sem lei que Bolsonaro quer radicalizar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU