14 Setembro 2018
Aumento da mortalidade infantil, redução da cobertura vacinal, epidemias variadas, violência maior, retrocessos no combate à Aids, às doenças mentais, nas políticas sobre drogas. Cortes nos orçamentos, nos programas sociais, desemprego enorme, achatamento nos salários, pesquisas paradas. O conjunto aponta para uma situação muito perigosa. O alerta é de Ligia Bahia, médica sanitarista e professora da UFRJ, em entrevista ao TUTAMÉIA (acompanhe no vídeo).
A reportagem é de Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena, publicada por Tutaméia, 13-09-2018.
“Está se anunciando, infelizmente, uma tempestade sanitária perfeita. A gente vai fazer uma pororoca. Tínhamos graves problemas. Alguns estavam sendo atenuados e estávamos indo para frente. Teremos um retrocesso que vai encontrar os problemas sobre o quais ainda não tínhamos conseguido ter solução. Isso tem que ser chamado de bomba, tempestade perfeita”.
Ligia recorre a “termos catastróficos, com os quais economistas tratam as políticas sociais e atacam, por exemplo, a previdência ”. E afirma: “Isso, sim, é que é o desastre. Esse desastre está sendo claramente provocado. É austericídio mesmo. Está ocorrendo na Grécia e em outros países. Estamos vendo isso no Brasil”.
A médica fala da “emenda da morte” – que congelou gastos: “Ela fará com que os indicadores sociais, as políticas sociais no Brasil, que já não são essa beleza, regridam. Virou senso comum a ideia de que estamos melhorando, ainda que de forma lenta. Mas, veja, pode haver regressão. Houve isso na Rússia, quando a URSS se dissolveu e houve uma recessão econômica muito grande. A Rússia perdeu cinco anos de esperança de vida. As políticas sociais são fundamentais para a melhoria das condições de vida e para o prolongamento a vida. A Previdência é fundamental para a longevidade”.
Ligia lembra de como, em anos anteriores, as melhorias na economia e os programas sociais tiveram um impacto enorme na saúde da população. “Aumentar o salário mínimo, a Bolsa Família e aumentar o emprego formal foi sensacional. A mortalidade infantil diminuiu aceleradamente. O pais foi o que teve a maior taxa de aceleração de diminuição da mortalidade infantil”.
Doutora em saúde pública pela Fundação Oswaldo Cruz, Ligia critica a “perda de soberania” na área de saúde. Isso se revela nos embates com farmacêuticas e empresas que atuam mundialmente na área. Não ter uma política pública em várias frentes –também na pesquisa — e ceder aos gigantes do setor é “jogar dinheiro pelo ralo”, diz.
Ligia considera preocupante a crescente desnacionalização do setor. Enfatiza que os grupos financeiros que passaram a atuar na saúde estão focados no curto prazo e podem não ter compromisso com a preservação de serviços e no atendimento à população.
Nesta entrevista, ela dissecou a saúde no Brasil. Avaliou os 30 anos de criação do SUS (Sistema Único de Saúde), uma das maiores conquistas da Constituição de 1988. Analisou o avanço do setor privado na área, com apoio e subsídio estatal. Defensora da saúde pública, ela faz o seu balanço:
“Ganhamos, mas não levamos inteiramente. O projeto do SUS, generoso e democrático, ficou de pé. É verdade que tem problemas de atendimento, de acesso. Mas o setor privado também tem. Há muita insatisfação com saúde, pública e privada. Mas não temos um setor público falido e horroroso e um setor privado maravilhoso”.
Na sua avaliação, se a decisão tivesse sido feita no sentido de concentrar tudo no setor público – e não subsidiar o privado –, “estaríamos muito melhor”. Segundo ela, os países que têm um sistema público universal gastam menos com saúde relativamente e têm melhores condições”.
O Reino Unido é um exemplo. Acaba de comemorar com festa os 70 anos de seu sistema público universal de saúde. “Gasta menos e tem indicadores de saúde muito melhores. A princesa Kate tem filho no mesmo lugar que as outras mulheres têm”, afirma Ligia. E completa: “Do ponto de vista de eficiência, da efetividade, da eficácia, em todas as métricas o sistema universal é melhor”.
Ao historiar o sistema de saúde nos últimos 30 anos, a médica lembra que o Banco Mundial chegou a vaticinar que o SUS era inviável.
Hoje, diz, a instituição prega a existência de uma cobertura universal, não necessariamente pública. E a conversa vai para o avanço da privatização do sistema – sempre com o apoio de dinheiro púbico. Fala da ação de empresários com o poder político, e suas articulações na agência do setor.
E vamos para os planos privados, sempre tão criticados. Ligia:
“Plano privado de saúde é caro no mundo todo e não é para a classe média. Pessoas como eu, em qualquer pais do mundo não têm plano privado. E fica na fila. A classe média no Brasil é contraditória: quer que o filho estude na escola privada, mas que faça faculdade pública. Quer ter plano, mas não quer deixar de ter SUS”.
Para ela, “as empresas estão navegando em céu de brigadeiro. A classe média está refém do plano, e os reajustes são absurdos. Há insatisfação e desilusão em relação ao que se paga e sobre as garantias de coberturas. Há planos e planos. Esse plano que sai na propaganda – com Einstein e Sírio —é só para 5% das pessoas que têm plano. A maioria das pessoas sofre certa humilhação, constrangimentos: o plano não cobre, o quarto é menor etc. É um plano ziriguidum. A maioria das pessoas que tem plano tem aporrinhação com o plano. Esses constrangimentos são ruins e isso não ocorre no sistema público.
E qual a solução? “É o sistema público, mais universal e solidário”.
Nesta entrevista, Ligia fala de aborto, da onda de cesárias, do movimento contra vacinas, de erros em campanhas públicas, das faculdades de medicina, do programa Mais Médicos, da atuação de interesses privados, dos “ataques absurdos que a UFRJ está sofrendo por causa do incêndio no Museu Nacional”.
Trata de retrocessos, do clima de intolerância no país em várias áreas. Cita, por exemplo, o apoio à visão de que crianças com alguma deficiência devam estudar separadamente. “A eugenia, a ideia de que há normais e anormais, que há quem mereça viver e quem não mereça –tudo isso volta com muita força neste momento. É a ideia da sociedade dos saudáveis. Perigosamente nazista. Tudo isso é muito ruim. Os valores de solidariedade estão sendo completamente pisados”.
Em detalhes, Ligia, traça um diagnóstico amplo do setor da saúde. E aponta saídas para o país superar esse momento de desmonte e crise. Seu ponto fulcral: “A saúde é fundamentada na igualdade”.
Pensando na hipótese de um novo governo progressista, perguntamos a Ligia sobre cinco passos essenciais para a melhora da saúde no Brasil. Ela respondeu:
1.Ter um ministro e equipe fortes, como foi, no passado, Adib Jatene. Ter pessoas que tivessem protagonismo, o que facilitaria a negociação com o legislativo e com a área econômica na disputa de recursos. “Trazer, por exemplo, um Drauzio Varella, por mais polêmico do que isso possa ser”, diz.
2. ter porosidade para ouvir os problemas dessa saúde do país.
3. Desfragmentar as políticas sociais. “Não é possível o Minha Casa Minha Vida que não tenha prioridade para quem é deficiente físico. A política de cultura tem que abarcar os grupos identitários, inclusive os loucos. Os loucos culturalmente têm muito a dizer para todos nós. As políticas têm que conversar entre si, talvez criando um polo de aglutinação, como quis fazer o Ministério das Cidades no primeiro governo Lula”.
4. Estabelecer prioridades claras. Uma prioridade epidemiológica. Não é de marca, mais uma UPA, mais aquilo. Isso é um meio para resolver. Tem que priorizar. Pode ser câncer de mama, de colo de útero. Mostrar que vamos diminuir e vamos fazer assim. São prioridades políticas. O Ministério da Saúde não é para construir obras, não é ministério das obras. É para definir políticas de saúde.
5. Dedicar maior atenção com os profissionais de saúde. Definir uma melhor remuneração em troca de mais trabalho. Não será fácil. É preciso ter uma negociação muito clara com sindicatos. Ter servidores públicos tenham compromisso público, sejam capacitados e valorizados. O Canadá conseguiu fazer isso.
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“Tempestade perfeita” ameaça saúde no país, alerta sanitarista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU