03 Setembro 2018
Cinco dias após a publicação do "comunicado” em que o ex-núncio Carlo Maria Viganò pediu a renúncia do Papa Francisco por alegado encobrimento concedido ao cardeal Theodore McCarrick, molestador em série de seminaristas e jovens sacerdotes, uma nova entrevista do autor aumenta as dúvidas sobre todo o episódio.
A reportagem é de Andre Tornielli, publicada por Vatican Insider, 01-09-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
De fato, perde consistência o peso das supostas sanções que o Papa Ratzinger teria imposto ao cardeal, sobre as quais Viganò insiste enfaticamente em seu texto, mas que não obtiveram qualquer efeito, uma vez que o "sancionado” McCarrick continuou a viajar (mesmo para o Vaticano), realizar conferências e presidir celebrações.
Viganò escreveu no comunicado colocado on-line em uníssono no domingo, 26 de agosto, pela rede midiática ultraconservadora ítalo-americana "Soube com certeza, através do card. Giovanni Battista Re, então Prefeito da Congregação para os Bispos, que o corajoso e valoroso Statement de Richard Sipe teve o resultado desejado. O Papa Bento tinha imposto sanções ao Card. McCarrick semelhantes àquelas agora infligidas a ele pelo Papa Francisco: o cardeal devia deixar o seminário onde morava, não tinha permissão para celebrar em público, participar de reuniões públicas, proferir palestras e viajar, com a obrigação de dedicar-se a uma vida de oração e de penitência”.
Na realidade, as sanções não eram semelhantes. Aquelas de Bento XVI, de acordo com o próprio Viganò, eram pessoais e secretas. Ninguém precisava conhecê-las. Aquelas do papa Francisco, em vez disso, foram de imediato tornadas públicas para que todos soubessem que o idoso cardeal tinha sido sancionado depois do surgimento de uma fundada denúncia de abuso de um menor.
Em que ano aquela decisão pessoal do Papa Ratzinger foi tomada? Presumivelmente, no final de 2008 ou início de 2009, data em que McCarrick realmente acabaria deixando o seminário Redemptoris Mater de Washington para viver em uma paróquia da capital. Recordamos que, naquela época, não só ao Vaticano chegaram informações de denúncias, mas duas dioceses - Metuchen e Newark - pagaram indenizações a antigos sacerdotes abusados por McCarrick na época em que eram seminaristas.
Como foi amplamente documentado nos últimos dias, McCarrick não obedeceria a essas supostas “sanções" decididas pelo Papa Ratzinger, que, por serem secretas, foram comunicadas pelo representante do Pontífice apenas verbalmente ao interessado. E o interessado, ou seja, McCarrick, não só não era obrigado a não informar ninguém sobre essas alegadas sanções, como realmente não as levou absolutamente em consideração, exceto no que diz respeito à sua residência, continuando a manter o seu perfil público habitual.
Os vídeos, fotos, artigos e comunicados que vieram a público nos últimos dias, de fato atestam a completa liberdade de ação que usufruía McCarrick, que por três vezes teve a oportunidade de se encontrar com o próprio Bento XVI no Vaticano, celebrar junto em São Pedro, ordenar diáconos ao lado do Prefeito da Congregação para a doutrina da fé, William Levada, e receber afetuosas congratulações públicas do próprio Viganò em um jantar de gala em Manhattan, em maio de 2012, ainda em pleno pontificado de Ratzinger.
O ex-núncio, diante desse material documental e das questões que foram levantadas, portanto, considerou oportuno intervir novamente para esclarecer os pontos obscuros de seu "comunicado”, que na pressa de pedir a renúncia do atual Pontífice acaba envolvido seus dois antecessores. Ele fez isso para explicar, em essência, ter tido as mãos amarradas: não era ele que tinha a responsabilidade de fazer cumprir essas sanções, porque eram secretas. Viganò concedeu uma breve entrevista ao LifeSiteNews, site conservador estadunidense, reconhecendo que McCarrick, de fato, "não obedeceu" às sanções. Acrescentou que, dada a natureza dessas mesmas sanções escolhidas pelo Pontífice, ele como núncio não tinha autoridade alguma para reforçá-las e torná-las operacionais.
"Eu não estava em posição de impô-las", disse Viganò "especialmente porque essas medidas dadas a McCarrick" tinham sido enviadas "em privado", já que essa "tinha sido a decisão do Papa Bento XVI". Viganò disse que as sanções eram privadas talvez "porque McCarrick já estava aposentado, ou talvez por que Bento pensasse que ele estivesse pronto a obedecer". Mas McCarrick "certamente não obedeceu", acrescentou Viganò, confirmando o que, aliás, também é evidente para todos.
É interessante notar a explicação que o ex-núncio fornece: o Papa Ratzinger provavelmente não queria humilhar publicamente o cardeal molestador - até aquele momento, devemos lembrar, não se sabia que ele também era um abusador de menores - porque ele já estava aposentado. Já não desempenhava mais o ministério de arcebispo de Washington e pouco mais de um ano depois, com oitenta anos, também teria saído do grupo de cardeais com direito de participar do conclave.
Menos lógica aparece, em vez disso, a segunda hipótese proposta por Viganò: o Papa Ratzinger estava convencido de que ele iria obedecer. É lícito perguntar-se: mas se McCarrick mostrou ignorar essas sanções (ou recomendações?) secretas do Papa, que ele próprio recordou em vão ao cardeal, por que não pediu ao próprio Bento para intervir? Talvez transformando aquelas indicações secretas que nunca se tornaram operacionais em sanções públicas, que teriam dado a conhecer a toda a Igreja os graves problemas morais, os abusos e os crimes cometidos pelo importante cardeal estadunidense.
Para justificar o fato de que McCarrick apareceu sem consequências ao lado de Bento XVI junto com outros bispos dos EUA em sua visita ad limina (em janeiro de 2012), Viganò explicou: "Como seria possível imaginar o Papa Bento, com seu caráter suave, enquanto diz ‘O que você está fazendo aqui? ’ na frente dos outros bispos?” Na verdade, sanção secreta significa que ninguém mais sabe disso. Mas por que Bento não pediu posteriormente notícias ao seu núncio apostólico e convidou os seus colaboradores a reiterar a sanção? Poucos meses depois, em abril de 2012, McCarrick estaria novamente com o Papa no Vaticano, em uma audiência com a Fundação Papal. E até mesmo depois dessa audiência, nada aconteceu. Em suma, essas sanções contra o cardeal molestador, se realmente existem, deviam ser recomendações bastante brandas. Ou, pelo menos, assim foram consideradas.
Enquanto se aguardam novas informações e esclarecimentos por parte da Santa Sé, parece de considerável interesse aquilo que relata Edward Pentin em um artigo na National Catholic Register (do grupo EWTN, diretamente envolvidos na operação midiática de Viganò, certamente não hostil ao ex-núncio e bem conectado também com o entourage de Ratzinger). Pentin publica as considerações de uma "fonte confiável” próxima de Bento, que concordou em falar com ele desde que fosse mantido o anonimato. Essa fonte afirma que as acusações de abusos de seminaristas por parte de McCarrick eram "algo certamente conhecido" por Bento XVI. "Certamente se sabia que McCarrick era homossexual e que todos sabiam disso." De acordo com o que o próprio Bento pode lembrar, "a instrução" (não sanção, portanto) era "essencialmente que McCarrick deveria manter um perfil discreto. Não havia um decreto formal, mas apenas um pedido particular".
De acordo com a fonte muito próxima ao Papa Ratzinger citada por Pentin, portanto, não teria se tratado de “sanções", mas apenas de um pedido reservado e privado do Pontífice ao cardeal aposentado, de modo que deixasse o seminário e vivesse mais discretamente. Que não tenha se tratado de uma verdadeira sanção, mas de uma recomendação particular, de um "pedido”, como afirma o colaborador próximo do Papa emérito, é corroborado pela evidência dos fatos. McCarrick em nenhum momento para de viajar, celebrar, efetuar palestras, comparecer a audiências repetidamente no Vaticano. Para tanto, deve significativamente ser redimensionado o âmbito das cada vez mais supostas "sanções” mencionadas por Viganò em seu "comunicado”.
A entrevista de Viganò para o LifeSiteNews é - objetivamente – mais um elemento que traz à tona a manipulação da operação que se realizou nos últimos dias: o pedido de renúncia de Francisco, ou seja, do Papa que foi o primeiro a adotar sanções públicas contra McCarrick fazendo com que fossem respeitadas e tirando o cargo, como na Igreja não acontecia há quase um século.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Viganò: Bento não quis sanções públicas porque McCarrick estava aposentado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU