16 Junho 2018
“Naqueles anos, percebi com sofrimento e dor (e com muitas lágrimas) uma Igreja que falava dos pobres a partir do palácio, que ditava leis às mulheres a partir de uma cultura e de uma estrutura patriarcais, que falava de aborto, divórcio... pela boca de homens forçados ao celibato, que sentenciava sobre a homossexualidade sem falar com os homossexuais.”
A reflexão é de Franco Barbero, histórico animador das Comunidades de Base italianas, um dos presbíteros que, no período pós-conciliar, mais se envolveu na elaboração de uma teologia e de uma pastoral para as pessoas LGBT. Em 2003, principalmente por causa das bênçãos das uniões de casais homossexuais que ele oferecia na igreja, foi demitido do estado clerical diretamente e sem processo canônico por João Paulo II.
O artigo foi publicado em Adista Documenti, n. 19, 26-05-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Para mim, tudo teve início em dezembro de 1963, quando me encontrei em um confessionário da catedral de Pinerolo com alguns rapazes e moças que, mais por sugestões do que por relatos, mais com os olhos e os suspiros do que com as palavras, me manifestaram sua homossexualidade.
Eu estava despreparado, surpreso, sem a possibilidade de me confrontar com outros coirmãos, exceto com o meu texto de teologia moral. Não escondi minha ignorância e me deixei guiar por uma alta dose de curiosidade: “Sabe, eu sou um padre há pouco tempo, em todos os sentidos... Se você vier me encontrar no seminário, onde eu moro e leciono, você pode me ajudar a entender”.
Eles foram em um número maior do que o esperado. Eu ainda estava bem firme na “verdade” do modelo único, heterossexual, patriarcal, mas também já estava em movimento, graças aos estudos, às pesquisas, à hermenêutica bíblica, à psicanálise, especialmente ao contato vivo e dialógico com esses irmãos e irmãs, que estavam me arrastando para uma nova terra.
Hoje, eu reconheço, com gratidão a Deus e às pessoas homossexuais, os muitos estímulos de conversão que recebi naqueles infinitos diálogos. Além disso, havia o “vento” do Concílio, que me confortava no fato de que existia uma “Igreja extraterritorial”, e a obediência não era mais uma virtude.
Apesar disso, naqueles anos, percebi com sofrimento e dor (e com muitas lágrimas) uma Igreja que falava dos pobres a partir do palácio, que ditava leis às mulheres a partir de uma cultura e de uma estrutura patriarcais, que falava de aborto, divórcio... pela boca de homens forçados ao celibato, que sentenciava sobre a homossexualidade sem falar com os homossexuais.
O mesmo sofrimento que eu ainda sinto hoje, quando leio no “Compêndio” do Catecismo da Igreja Católica que “são pecados gravemente contrários à castidade, cada um segundo a natureza do objeto: o adultério, a masturbação, a fornicação, a pornografia, a prostituição, o estupro, os atos homossexuais. Estes pecados são expressão do vício da luxúria” (n. 492).
Mas, para mim, foi essencial amadurecer a consciência de que, na Igreja de Jesus, todos devem pode estar de rosto aberto, sem pedir permissão, sem suplicar para ter um lugarzinho como penitente e sem mutilar a si mesmos com a “vocação à castidade”, como propõe um ambíguo e tendencioso documento de Turim.
Assim como na Igreja, também na sociedade todos devemos poder estar de cabeça erguida, sem sofrer discriminações pela nossa orientação sexual, assim como pelo nosso credo (ou “não credo”) religião, pelas nossas convicções, pelas nossas escolhas políticas.
Mas nem sempre foi assim na Itália, assim como no resto do mundo. E ainda não é assim. Apesar do tanto que já foi feito. A vergonha, a repressão, a clandestinidade, as correntes de uma terrível condição de vexação e subalternidade começaram a se despedaçar para o movimento gay no dia 28 de junho de 1969.
Em Nova York, pouco depois da uma da manhã, a polícia invadiu um bar chamado Stonewall Inn, um clube gay na Christopher Street, em Greenwich Village. Tratava-se de uma blitz, uma das tantas daqueles anos. Desta vez, porém, ao contrário das outras, tanto dentro do clube quanto fora, as pessoas reagiram à brutalidade da polícia, cansadas das contínuas vexações.
Stonewall é considerado, do ponto de vista simbólico, como o momento do nascimento do movimento de libertação gay moderno em todo o mundo. Tanto que o dia 28 de junho foi escolhido pelo movimento LGBT como a data do “Orgulho Gay”.
Na Itália, o “assalto ao céu” do movimento gay começou um pouco mais tarde. O ano-chave é 1977, o ano do movimento, das universidades ocupadas. Em âmbito homossexual, em 1977, já fazia algum tempo que operava a FUORI (Frente Unitária Homossexual Revolucionária Italiana, na sigla em italiano), sem falar de figuras como Mario Mieli e dos primeiros coletivos militantes.
Antes da FUORI (cujas atividades ganharam corpo em torno de 1971), havia praticamente o vácuo: no limite, para os homossexuais, havia a prisão ou o manicômio.
Em 1979, foi fundado o Narciso-Coletivo Homossexual Revolucionário, visto por muitos em contraposição à FUORI, que havia confluído no Partido Radical e tendia a assumir a questão homossexual como isolada de qualquer contexto político e social.
Em 1980, organizamos a primeira Parada Gay em Bolonha, convencionalmente considerado como o primeiro Pride italiano, embora, na realidade, tinha havido tentativas semelhantes já entre 1978 e 1979.
Aí nasceu o percurso que depois levou ao nascimento do Cassero, o círculo de cultura homossexual que a Prefeitura de Bolonha atribuiu em 1982, primeiro caso na Itália. Depois desse evento, iniciou-se um processo gradual pelo qual o movimento se estruturou até o nascimento da atual Arcigay, que, não por acaso, tem sua sede histórica justamente no Cassero.
Em 1983, enquanto isso, Mario Mieli havia se suicidado, uma grande figura intelectual (em 1977, ele publicara o texto fundamental sobre a questão homossexual, Elementi di critica omosessuale [Elementos de crítica homossexual]), talvez a única grande personalidade de quilate internacional expressada pelo movimento gay italiano.
No contexto dos gays religiosos, muito se deve à visão profética de Ferruccio Castellano, que tentou interceptar a necessidade, expressada ou não expressada, de muitos fiéis, espalhados por toda a Itália, de encontrar uma chave para conciliar a própria orientação sexual com a fé, ambos os componentes profundamente identitários e irrenunciáveis.
Entre as pessoas que apoiaram o nascimento dos grupos gays religiosos na Itália, é preciso lembrar também do Pe. Marco Bisceglia, que figura entre os fundadores do círculo Arcigay de Palermo em 1980. Em 1975 Bisceglia tinha sido suspenso a divinis após um artigo escandalizador publicado no jornal Borghese, em que dois jornalistas escreviam ter recebido a bênção do Pe. Marco depois de terem se apresentado a ele sob as falsas vestes de um casal homossexual. Ainda me lembro das minhas duas viagens a Lavello, onde o Pe. Marco era pároco, e as nossas animadas conversas vespertinas.
Os grupos gays religiosos na Itália estavam inicialmente envolvidos principalmente em um filão de autoajuda, em uma dimensão privada, com encontros nas casas, dormitórios estudantis, momentos de oração e histórias de vida, e começaram a se ampliar, a se estruturar e a ter uma dimensão mais “pública”.
Mas foi apenas muitos anos depois, em particular perto do World Pride 2000 de Roma, que alguns dos grupos conseguiram amadurecer as condições para uma visibilidade real, através das entrevistas, das primeiras conferências e das primeiras publicações.
Eu, enquanto isso, em 1978, depois de conhecer Ferruccio Castellano no ano anterior (que morreu suicida no mesmo ano em que Mário Mieli morreu), decidi dar mais um passo. Ou seja, abençoar, em comunidade ou em grupos cristãos de base, os casais homossexuais após um caminho de busca sobre a pessoa e sobre a mensagem do Jesus histórico. Não me bastava mais debater e dialogar.
Pretendi agir, expressando também liturgicamente, na acolhida eclesial, a bênção daquele Deus que é fonte de todo amor.
O que nos encorajava era a fermentação cultural, as novas fronteiras das teologias feministas e da libertação, o debate teológico e os novos percursos da psicanálise. E, em junho de 1980, Agape, o centro ecumênico valdense de Prali, sediou na Itália o primeiro congresso nacional sobre “Fé cristã e homossexualidade”. Todos os anos, esse campo continua a sua reflexão.
Foi no ano jubilar de 2000, quando fui convidado a Roma para a assembleia das “religiões e homossexualidade”, que muitos tomamos consciência de que já tinha chegado o momento de avançarmos cada vez mais abertamente também nas Igrejas, nas religiões.
Minha palestra – “O dom da homossexualidade” – foi a última gota que fez transbordar o “copo vaticano”. Por isso e por outros “méritos”, incluindo alguns textos que desagradaram a cúpula, em 2003, fui demitido do estado clerical pelo Vaticano, com um decreto ad hoc do papa, sem processo e, portanto, sem nenhuma possibilidade de me defender. Eu tinha apenas o pedido explícito e a possibilidade de me retratar dentro de três meses.
Minha consciência não me permitiu isso e eu rejeitei as propostas mercantis com as quais o Vaticano muitas vezes reduziu os dissidentes ao silêncio.
A partir dos anos 1970, foram dados passos enormes e já adquiridos na percepção comum, assim como na opinião pública católica; os temas LGBT não são mais um tabu, mas sim uma realidade para se lidar com espírito de abertura e diálogo.
É claro, em comparação com outros países, a Itália sente um forte atraso cultural e eclesial. Somente a partir de 2016 é que a Itália tem uma lei para as uniões civis dos casais homossexuais. Foram necessários mais de 40 anos para reconhecer os direitos civis das pessoas LGBT. Excluindo-as, porém, do casamento e da possibilidade de adoção.
Discute-se muito sobre essa palavra “casamento”, mas é apenas uma herança linguística que esconde a discriminação. Enquanto todas as pessoas não tiverem direitos iguais e reais, a luta do movimento LGBT, assim como a de todos os outros movimentos que lutam pelos direitos civis e sociais, deve continuar.
Eu acredito que, como escrevi no meu livro Benedizione delle coppie omosessuali [Bênção dos casais homossexuais] (Ed. L’Harmattan), uma nova consciência cristã, adulta e consciente deve oferecer propostas e provocações construtivas dentro da comunidade eclesial, sem ter medo de que isso envolva uma ruptura da comunhão.
A obediência ao Evangelho pode ser vivida sem quaisquer desobediências explícitas à doutrina oficial?
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Anos 1960-1970: o ''assalto'' ao céu dos fiéis homossexuais, de rosto aberto na Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU