24 Junho 2018
"Erasmo não cai em equívoco quando afirma que "aqueles que querem crescer na liberdade trazida por Cristo - como adverte Paulo - em primeiro lugar devem ter cuidado para não tornar a liberdade um pretexto para viver segundo a sua própria vontade, para não confundir a maldade com a liberdade"", escreve a Redação TDF, em artigo publicado por Tempi di Fraternita, 14-06-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Tudo começou com a visita do Papa Francisco durante a comemoração comum luterano-católica de reforma (31 outubro - 1 novembro de 2016) e com os comentários publicados em sites “duros e puros” dos extremistas católicos (Fundação Lepanto, "Radici Cristiane", "Corrispondenza Romana", "Rosso Porpora", etc.) . Os "ateus devotos" viam na "virada luterana", de Francisco (com o escandaloso selo do Correio Vaticano) uma oportunidade de ouro para apresentar coletivamente a conta das reclamações a um papa não alinhado, pela condenação da política do desperdício, pela comunhão dos divorciados, pelo "quem sou eu para julgar", pelo encontro com a pastora lésbica casada em casamento homoafetivo, pela reabilitação da teologia da libertação, pela ironia da "lista de espera", etc. Mas, na verdade, uma reclamação, a respeito dos 500 anos da Reforma Luterana, tínhamos que fazê-la também nós, porque Francisco ao se encontrar com os Valdenses e os Luteranos esqueceu completamente Erasmo, que permaneceu um padre da inabalável "fé católica", que pode muito bem ser considerado o primeiro inspirador da reforma (Lutero o considerava o seu mestre) mesmo que com alguma "distinção". TDF quis, com esta edição especial, reparar uma "damnatio memoriae", certamente não porque Erasmo de Rotterdam tenha necessidade de defensores, mas porque nós precisamos dele e de seu testemunho para nos adaptarmos a uma modernidade absoluta, abandonando atávicos acanhamentos e velados resíduos de identitarismo religioso.
Quem olha para a história humana de Erasmo percebe um cenário inesperado, como quando, ao alcançar um cume inviolado, descortina-se ao olhar um inteiro continente inesperado.
Deixando o vício da hagiografia e do culto da personalidade, descobrimos não só um humanista respeitadíssimo, filólogo, rigoroso editor dos clássicos da literatura greco-romana, mas o cristão que substituiu o critério da autoridade pelo critério da fidelidade ao dado objetivo do texto bíblico/evangélico, que significa investigar laicamente – com critérios científicos - os dados fundamentais da "ortodoxia” teológica. Isso significa liberdade de investigação absoluta com os critérios da hermenêutica e da antropologia (evidentemente evolutiva) encontrando um terreno comum em que as espiritualidades possam se confrontar, fazer uma autocrítica e dialogar, enriquecendo-se e purificando-se mutuamente. Significa dar um novo sentido para o ecumenismo subtraindo-o às negociações entre poderes confessionais para entregá-lo à liberdade profética do “povo de Deus" em que "não há judeu nem grego, homem ou mulher, livre ou escravo". Isso significa remover toda força aos fundamentalismos teológicos, às santas inquisições, aos autoritarismos e às ditaduras sem entrar no mérito de sua justificação, às guerras "santas”, "justas", "proletárias", "democráticas" ou "republicanas", porque os únicos a lucrar são os comerciantes da morte. Na política significa substituir à raposa ou ao leão da metáfora maquiavélica, a metáfora erasmiana do ouriço, porque a tirania não vence com a astúcia nem com a violência, mas tornando-se impermeável às lisonjas e às ameaças do poder.
No final da Idade Média, a meteorologia aconselhava a resignação, porque o mundo era rural. O tempo (atmosférico) faz o que quer, e o agricultor só pode se adaptar. O tempo é justo, não tem favoritismos: o sol brilha e a chuva cai sobre os bons e os maus, os ricos e os pobres: a morte acerta as contas, o pobre Lázaro no paraíso e o rico Epulão no inferno.
Francisco de Assis antecipa a conclusão: o sol, a lua, as estrelas são o patrimônio dos pobres, junto com o ar, fogo, água e todo o Universo. Os pobres não devem esperar por Cristo porque já o são. Os pobres são aqueles que sustentam a Igreja (ou seja, o mundo) enquanto o Papa dorme, como o representa Giotto em Assis. Uma mensagem que precisa ser desarmada no imaginário coletivo, fazendo de Francisco um místico excepcional, irrepetível e acima de tudo inimitável.
O Humanismo italiano descobre as raízes da mensagem cristã nas antigas filosofias e estuda os autores greco-latinos e judaicos como vozes proféticas: os pintores retratarão as Sibilas.
O Sol e a Lua neste mundo são os poderosos, que partilham as riquezas produzidas por quem trabalha, prometendo "indulgências", como se fossem os donos do Céu e da Terra, que são de Deus, ou seja, de todos, e não do imperador ou do papa. Jan Hus não se deixa intimidar pelos títulos. O Evangelho é o Evangelho e "o romano pontífice é o representante de Pedro se vive como Pedro, mas se vive como Judas Iscariotes é o representante de Judas Iscariotes"; merece a fogueira. O ano é 1415. Antes de sua execução, Hus teria declarado: "Hoje, vocês queimam um ganso, mas das cinzas se levantará um cisne".
Cem anos mais tarde, Erasmo de Rotterdam, humanista e filólogo, imagina três graus de dignidade na Igreja (ou seja, no mundo): ao primeiro pertencem o papa, os cardeais, os bispos; ao segundo, o imperador, os nobres, os generais, os magistrados.
"Mas em um corpo não há apenas os olhos, ou seja, os membros mais nobres, existem também os pés, as nádegas, os órgãos genitais, por mais grosseiro que possa parecer, mas aquele é o Corpo de Cristo."
E ele continua: "Qual é a diferença entre uma cidade e um mosteiro, entre os monges e cidadãos? Que os monges vivem sem trabalhar, graças ao trabalho dos cidadãos empreendedores e operosos e, portanto, mais virtuosos?".
Calvino tira às suas consequências: basta com os sacramentos, as procissões, a adoração de santos e suas relíquias, o cristão encontra a Graça no ascetismo do trabalho. Alguém continuará: a riqueza produzida pelo trabalho é abençoada por Deus; se a riqueza é um sinal da Graça divina, o cofre é o novo tabernáculo: e nasce Deus do mercado.
Entre 1492 e 1550 a Cristandade descobre o Novo Mundo, em nome dos Reis Cristãos e de Majestades Católicas, e o conquista assaltando-o à mão armada e praticando um horrível genocídio (com a aprovação do Papa Alexandre VI), do qual ninguém na Europa parece se aperceber.
Nem mesmo Erasmo e Lutero, embora falem de liberdade e de Evangelho. Mas eles abrem o caminho a Rabelais, Montaigne, Giordano Bruno e Galileu. Pascal e Spinoza seguirão: é a modernidade.
E se a "heresia luterana" a que Erasmo não quis aderir, traz consigo as guerras religiosas e se os camponeses entendem a mensagem da liberdade da 'Reforma' como uma libertação da escravidão, eles interpretaram erroneamente e devem ser eliminados. E se o Papa Júlio - o mecenas/artífice da grande beleza, mas a que preço! - combate pessoalmente uma guerra de conquista, Erasmo escreveu um memorável panfleto contra todas as guerras: "A guerra agrada a quem nunca a experimentou" e o manda para o inferno. Não é possível justificar a guerra com o pretexto de converter os infiéis: se queremos convertê-los, vivamos o evangelho, mostrando-lhes que não queremos roubar-lhes sua riqueza e suas terras. A verdadeira "Reforma" é a "loucura" da paz na terra. Uma revolução ainda a ser implementada.
Há outra maneira de compreender a "Reforma" como portadora de valores e princípios como a liberdade de consciência, a separação entre igreja e Estado, a não-violência, que decorrem em grande parte da área de dissidência radical da Reforma e, em vez disso, foram atribuídos indevidamente a Lutero e à Reforma magisterial.
Erasmo não cai em equívoco quando afirma que "aqueles que querem crescer na liberdade trazida por Cristo - como adverte Paulo - em primeiro lugar devem ter cuidado para não tornar a liberdade um pretexto para viver segundo a sua própria vontade, para não confundir a maldade com a liberdade".
E mais ainda: "Os mais distantes da verdadeira religião são aqueles que se consideram muito religiosos". Erasmo é o "defensor do cristianismo crítico" (Leon Halkin): o seu convite para a laicidade, para a terrenidade, foi aceito por Rosmini, Buonaiuti, Bonhoeffer, Capitini Turoldo, Casaldáliga, Panikkar, Balducci, dom Milani e não só ... (todos em "lista de espera"?): eles entenderam a substância. O Evangelho não é o anúncio de uma nova religião, mas a proposta (feita por um leigo, Jeoschua/Jesus) de um modo fraternal de vida e posicionamento no mundo. A paz resume todos os valores terrestres e, portanto, divinos - como a liberdade e a justiça que são seus elementos constitutivos - porque não pode ser procurada, senão juntos (as religiões tendem a separar em vez de unir). A livre procura é garantia de paz: Michele Pellegrino disse isso aos padres do Concílio Vaticano II e Carlo Maria Martini o praticou.
A paz na Terra consiste em procurá-la juntos.
Essa é a vontade divina e a esperança humana: a reforma perene. Talvez a Páscoa sejamos nós, se passarmos do devocionismo à responsabilidade, da autodefesa agressiva à autoironia desarmante.
O Papa Francisco está na desconfortável posição de um papa-rei que quer demolir os símbolos da realeza "mundana": Jesus de Nazaré "sabendo que eles estavam para vir e lavá-lo à força a fim de constituí-lo rei, retirou-se novamente para o monte, ele sozinho" (Jo 6, 15). O próximo papa, se houver um, poderia chamar-se Erasmo Primeiro?
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