21 Novembro 2009
De acordo com o ponto de vista do filósofo e teólogo Leonildo Silveira Campos, “a Reforma não pode ser vista somente como uma guerra entre católicos e protestantes. Os vários movimentos reformadores também tiveram o ‘irmão reformado’ como inimigo”. Além disso, continua, é preciso aplicar a teoria da complexidade ao estudo das reformas, o que nos auxilia a compreender e localizar cada uma das tradições reformadas (luterana, zwingliana, calvinista, anglicana ou radical-anabatista) de tensões, conflitos e diferentes propostas de reforma. Analisando possíveis pontos de proximidade entre o calvinismo e o neopentecostalismo, em específico a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), Campos conclui que “a questão da prosperidade não justifica uma aproximação do calvinismo com a IURD. Esta é uma Igreja que conseguiu assimilar elementos da religiosidade popular católica, indígena e africana, mesclando com elementos da pós-modernidade e de sua vertente religiosa – a Nova Era”. As declarações fazem parte da entrevista a seguir, concedida, por e-mail, à IHU On-Line.
Leonildo Silveira Campos é graduado em filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Mogi das Cruzes, e em teologia pela Igreja Presbiteriana Independente do Brasil. Seu mestrado e doutorado foram realizados na Universidade Metodista de São Paulo - Umesp, com a tese Teatro, templo e mercado: uma análise da organização, rituais, marketing e eficácia comunicativa de um empreendimento neopentecostal - a Igreja Universal do Reino de Deus (Petrópolis: Vozes, 1997). Atualmente, é professor da Umesp e da Faculdade de Teologia da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que diferenças há entre a reforma luterana e calvinista?
Leonildo Silveira Campos - Prefiro não buscar inicialmente as diferenças entre o sistema luterano e o calvinista no nível da teologia ou da filosofia. Tomo como ponto de partida a visão das ciências sociais, que privilegiam o contexto histórico e social em que surgiu a Reforma (ou as reformas protestantes) no século XVI. Essa perspectiva nos permite perceber o cenário em que se deram as reformas como um objeto plural, multifacetado e complexo. Essa visão levou Carter Lindberg (As reformas na Europa. São Leopoldo, Sinodal: 2001) a insistir que não estamos diante de uma, mas de várias reformas religiosas na Europa recém saída da Idade Média.
A visão multifacetada do movimento reformado fica ainda mais desafiadora para o analista quando ele nota o surgimento, em diversas regiões da Europa, de versões locais do que alguém portador de paradigmas simplistas pense ser um só movimento de reforma. Portanto, a teoria da complexidade, se aplicada ao estudo das reformas, nos ajuda na compreensão e localização em cada uma das tradições reformadas (luterana, zwingliana, calvinista, anglicana ou radical-anabatista) de tensões, conflitos e diferentes propostas de reforma.
Há também a questão da análise dos movimentos reformados na linha do tempo. Em que datas as reformas começaram? Na tarefa de responder a essa questão, paira sempre o risco do que Marc Bloch (Apologia da história ou ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p.56) chamou de “ídolo das origens”. Quando por ele influenciados, pensamos poder demarcar o tempo, a data exata em que tais coisas tiveram o seu início. Isto quer dizer ser quase impossível afirmar que os movimentos de reforma protestante começaram com Lutero, Zwinglio ou Calvino, e nem que este ou aquele movimento terminou com a morte do líder que mais visibilidade lhe deu. Além dos líderes há os sucessores. Todos eles contribuíram, acentuaram tendências e ajudaram a dar rumos a um empreendimento muito mais coletivo e nada pessoal.
Cristalização x dinamismo e continuidade
Nessa mesma linha de indagação, podemos perguntar pela tensão que sempre surge entre a tendência das instituições pela cristalização e dos movimentos pelo dinamismo e continuidade. O que acontece quando um movimento reformador se torna uma instituição reformada? Alguns reformados procuraram manter o dinamismo colocando como meta a expressão ecclesia reformata semper reformanda. Por sua vez, Paul Tillich (A era protestante. São Paulo: Ciências da Religião, 1992) captou bem as tensões e crises da “era protestante” ao falar no conflito entre “princípio protestante” e “instituição protestante”. Para ele, o acirramento da modernidade levou o protestantismo a se tornar uma instituição esvaziada do “princípio” profético, pois, a energia desencadeada não se fixou nas instituições reformadas, muito pelo contrário, elas emigraram para os movimentos revolucionários laicos.
Por força do ofício, estou habituado, nos últimos 30 anos, a olhar os fenômenos religiosos a partir de uma perspectiva das ciências sociais aplicadas ao estudo da religião. Nesse esforço, tenho privilegiado dois autores, entre outros, Pierre Bourdieu e Karl Mannheim. De Pierre Bourdieu (Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 92) tenho usado a teoria do campo religioso. Para Bourdieu, o campo é um espaço social marcado por conflitos e lutas entre agentes e instituições. Entre os diversos agentes em luta estão sacerdotes e profetas. Os primeiros tentam reproduzir e dar continuidade à instituição tal como ela se encontra. Já os profetas estão comprometidos com as mudanças. Nos tempos da reforma protestante, quem eram profetas e sacerdotes? Por que sacerdotes surgem mais tarde e se tornam hegemônicos em movimentos marcados pelo dinamismo da tradição profética?
Para Bourdieu, um profeta na sua luta contra os sacerdotes se baseia “na força do grupo que mobiliza por meio de sua aptidão para simbolizar em uma conduta exemplar ou em um discurso os interesses propriamente religiosos de leigos que ocupam uma determinada posição na estrutura social”. Aplicando-se o seu pensamento à Reforma protestante, Lutero, Calvino ou Zwinglio, e seus seguidores, somente deram continuidade ao projeto de reforma porque as “aspirações que já existiam antes dele(s)”, ainda que de um “modo explícito, semiconsciente ou inconsciente”, estavam sintonizadas com um momento social adequado.
Nesse sentido, um profeta ou reformador é um “indivíduo isolado, sem passado, destituído de qualquer caução a não ser ele mesmo”, agindo sobre a realidade com uma “força organizadora e mobilizadora”. É dessa forma que um movimento profético dá origem a uma nova forma de composição no cenário religioso ou político. Também é por tais motivos que cada um desses reformadores, ao questionar a organização religiosa a qual pertence, dela recebe desprezo e oposição. Isto porque, segundo Bourdieu (p.93), “a empresa burocrática de salvação é incondicionalmente hostil ao carisma ‘pessoal’, isto é, profético, místico ou extático”. No caso dos reformadores, o carisma pessoal pode ser visto como um fator capaz de perturbar a ordem eclesiástica, mas a sua continuidade dependeu essencialmente do apoio recebido dos leigos.
Lendo os sinais dos tempos
Mas, um reformador incomoda quando “pretende indicar um caminho original em direção a Deus” diferente do que tem sido proposto pela instituição religiosa. Mas, por que uns tem sucesso onde outros fracassaram? Ora, Lutero e Calvino tiveram sucesso nessa empreitada justamente onde outros anteriormente nada conseguiram. O segredo do sucesso foi porque eles conseguiram conciliar a demanda popular nas regiões em que atuaram com uma proposta de reformulação da visão religiosa de mundo por parte dos leigos. Para Bourdieu (p.94), é esta capacidade de ler os sinais dos tempos que tornam “um determinado indivíduo (...) socialmente predisposto a sentir e a exprimir, com uma força e uma coerência particulares, disposições éticas ou políticas, já presentes, de modo implícito, em todos os membros da classe ou do grupo de seus destinatários”.
Consequentemente, Lutero e Calvino, e até certo ponto Zwinglio, diferentes de João Huss (1373-1415), Wycliff (1320-1384) ou Savonarola (1452-1498), conseguiram um rápido e duradouro sucesso em seus respectivos projetos de reforma da Igreja cristã. Isto porque o sucesso de cada um deles se alimentou de condições peculiares, e, com isso, produziram formas diferenciadas de protestantismos. Lutero atuou na Alemanha; era fiel aos príncipes que o apoiaram politicamente; refletia concepções teológicas mais adaptadas a um mundo marcadamente camponês. Enquanto isso, Calvino mantinha suas ligações com o mundo capitalista que estava se iniciando; tinha como cenário a cidade-estado Genebra, com um governo representativo, no qual ele era a “eminência parda” e que se tornaria um sistema político ideal para a democracia ocidental. Calvino se preocupou com questões econômicas, sugerindo normas sobre a riqueza, posses, comércio, organização política da cidade, baseado em uma preocupação humanista com as pessoas destituídas de recursos econômicos. Ao contrário de Lutero, e dos teólogos católicos medievais, Calvino via o lucro de uma forma positiva.
A proposta de reforma de Calvino foi considerada por André Biéler, um dos maiores especialistas na França a enfocar o humanismo social de Calvino, (O pensamento econômico de Calvino. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990) como “uma reforma integral da sociedade”. Para ele, o calvinismo teria se tornado uma “força permanente de transformação política e social” ao propor novas estruturas para a sociedade, as quais deveriam inibir e eliminar as “forças destrutivas da Igreja e da Sociedade”, entre elas o “nacionalismo religioso, a mística revolucionária, o militarismo e a teocracia”.
Para Biéler, a vida econômica e as reformas sociais propostas por Calvino desafiavam a atuação da Igreja em uma reforma integral da sociedade no sentido político, social, econômico e espiritual. Essa atuação implicava no estabelecimento de regras para a produção da riqueza, no atendimento dos pobres, na distribuição equitativa dos bens entre ricos e pobres. Insistia também Calvino que a propriedade deveria ser defendida do furto, cabendo ao Estado uma função reguladora da economia, da ordem jurídica, do comércio, da propriedade e da escravidão. Por isso mesmo, a atividade dos banqueiros, dos mercadores, dos que emprestavam dinheiro a juros, e as relações entre devedores e credores recebiam uma atenção especial nas ordenanças e na reflexão teológica de Calvino.
Talvez algumas das diferenças entre a proposta reformadora de Lutero e a de Calvino tenham sido bem captadas por R. H. Tawney (A religião e o surgimento do capitalismo. São Paulo: Perspectiva, 1971, p.109): “o Calvinismo foi uma força ativa e radical. Era um credo que buscava não somente purificar o indivíduo, mas ainda reconstruir a Igreja e o Estado, e renovar a sociedade, permeando todos os setores da vida, tanto públicos como privados, com a influência da religião”. Lutero teria sido mais místico, submisso aos poderes políticos, ligado às questões microeconômicas do mundo rural e da pequena cidade. Enquanto Calvino e seus seguidores, segundo Tawney (p.110) abordaram a realidade como “homens de negócios”, enraizados numa realidade urbana. Daí o surgimento de teologias diferentes, pois, refletiam relações e molduras sócio-econômicas diferenciadas.
IHU On-Line - Que comemorações marcaram o quinto centenário de Calvino e qual foi o significado dessa “redescoberta” de Calvino por parte deles?
Leonildo Silveira Campos - Neste ano de 2009, presbiterianos e reformados do mundo todo, sob a liderança da Aliança Reformada Mundial, com sede em Genebra, comemoraram o quinto centenário do nascimento de João Calvino (1509-1564). Os reformados, 75 milhões no mundo, relembraram que Calvino, para fugir das perseguições movidas na França aos huguenotes, se estabeleceu em Genebra (1536), onde iniciou uma reforma religiosa e social que iria atingir outras partes da Europa, especialmente a Inglaterra, Escócia, os Países Baixos, a França e, mais tarde, os Estados Unidos. No ano anterior, em Basiléia, Calvino com apenas 26 anos de idade, escreveu o mais completo texto de teologia protestante do século XVI, A instituição da religião cristã, mais conhecida como Institutas. Ao longo de sua vida, não muito longa, Calvino conseguiu plasmar Genebra de uma forma tal que fez com ela se tornasse a cidade cosmopolita e internacional que é nos dias de hoje. Ainda hoje a Catedral de São Pedro é o lugar em que as autoridades da cidade tomam posse de seus respectivos mandatos políticos.
No Brasil, as igrejas presbiterianas realizaram celebrações em várias datas e lugares. Em Genebra, houve uma grande concentração, para onde líderes de centenas de igrejas presbiterianas e reformadas se dirigiram. A reforma de Genebra, que iniciou antes de Calvino e foi reforçada com a sua chegada à cidade em 1536, não deve ser vista como um fato independente ou isolado de outras reformas e movimentos que estavam acontecendo na Europa. Desde 1517, na Alemanha com Lutero, e na Suíça com Zwinglio, a partir de 1525, havia um pipocar de reformas, estimuladas por uma mudança de mentalidade e de cultura, sintetizadas nas palavras “Renascimento” e “Humanismo”.
A cristandade, especialmente a que se originou na reforma protestante, deve ser vista como um campo de batalha. Este é um outro conceito que temos tomado de Pierre Bourdieu, para quem o espaço religioso é marcado por lutas. Nele, os agentes sempre se encontram divididos e em situação de conflito. Os reformados nunca estiveram fora dessa regra. Eles lutavam contra o catolicismo, mas também contra as diversas versões de protestantismos que foram surgindo nas décadas e séculos posteriores a Lutero. As guerras religiosas custaram a vida de Zwinglio, que morreu em um campo de batalha, e de milhares de católicos e protestantes no decorrer do século da Reforma e da Contra Reforma Católica. Mas a Reforma não pode ser vista somente como uma guerra entre católicos e protestantes. Os vários movimentos reformadores também tiveram o “irmão reformado” como inimigo. A revolta dos camponeses (1525) deixou isso bem claro e foi esmagada com o apoio de Lutero, amigo dos príncipes. Calvino, por sua vez, agiu com mão de ferro contra os hereges, entre eles Miguel Serveto. Rubem Alves (Protestantismo e repressão. São Paulo: Ática, 1979) usou Ernst Troeltsch para apontar para a continuidade de certa tradição inquisitorial que nasceu entre calvinistas e se aninhou no interior de brasileiros que ele classificou como defensores do “protestantismo da reta doutrina”. Essa tentação inquisitorial levou Alves a duvidar que Calvino tenha deixado um legado inteiramente democrático e liberal. Nos meios protestantes brasileiros, explodiu uma “inquisição sem fogueiras”, especialmente nos anos da Ditadura Militar (1964-1985).
IHU On-Line - Como se deu o diálogo entre os próprios protestantes e até onde ele foi possível?
Leonildo Silveira Campos - O protestantismo nasceu do rompimento do diálogo com o catolicismo romano. Seria natural, portanto, pensarmos que a tendência seria surgir entre os reformados o sentimento de serem eles membros de um só corpo e portadores de uma só doutrina. Porém, nada mais distante da realidade. O movimento reformado optou por um modelo oposto ao de centrifugação. Em suas respectivas trajetórias de expansão quanto mais distante do centro irradiador mais mudanças e transformações. Somente no final do século XIX e primeira metade do século XX é que certas parcelas do protestantismo optariam pelo diálogo interno e com a Igreja Católica.
Não se podia, portanto, imaginar que as teologias pudessem ajudar no diálogo dos protestantes entre si. Os dogmáticos e inquisidores, tal como aponta Rubem Alves, não conseguem imaginar uma situação em que o diálogo seja uma forma de aprendizagem. Os que se sentem donos da verdade não se interessam por qualquer tipo de diálogo. O objetivo de qualquer encontro fundamentado na polêmica é levar o adversário ao chão, e não a aprender algo com ele. Por exemplo, Lutero, Zwinglio e seus seguidores debateram longamente a respeito da Eucaristia ou da Santa Ceia. A discussão era se Cristo estava presente na celebração ou se tudo aquilo não passava de um símbolo conforme queria Zwinglio. Lutero acusava Zwinglio de defender uma heresia já condenada no passado – a posição nestoriana a respeito da natureza humana e divina de Jesus. Somavam-se a isso diferenças entre os reformadores quanto à presença da arte, especialmente da música no culto reformado.
Já calvinistas e luteranos se opuseram aos anabatistas em relação ao batismo infantil, admitindo como válido somente o batismo por imersão. Por sua vez, Zwinglio considerava os anabatistas adversários do governo suíço instituído por causa da recusa deles em fazer juramento, de pagar impostos e em participar do serviço militar, elementos básicos da cidadania. Aliás, as opiniões de calvinistas e luteranos se dividiam quanto às formas de se relacionar com a sociedade politicamente organizada. Harro Höpfl (Sobre a autoridade secular. São Paulo: Martins Fontes, 2005) reuniu e comentou dois dos textos mais famosos de Calvino e de Lutero: “Sobre o governo civil”, do primeiro, e “Sobre a autoridade secular” do segundo. O grande desafio para os reformadores protestantes era conciliar o que era entendido como a “vontade de Deus exposta nas Escrituras” com os desafios da ordenação política da sociedade europeia.
IHU On-Line - Que metodologia pode-se usar para o estudo das reformas protestantes do século XVI?
Leonildo Silveira Campos - A historiografia atual tem desconfiado do emprego do método biográfico no estudo da história e da teologia da reforma. No contexto desse marco teórico, não se deve valorizar muito cada um dos reformadores. Essa tendência metodológica evoluiu para uma historiografia totalmente avessa ao estudo dos “grandes heróis”. Porém, para mim, esse é um recurso que ao ser usado com cuidado pode oferecer ganhos para os historiadores interessados em examinar trajetórias e histórias de vida de alguns personagens escolhidos como os mais representativos de um determinado movimento. É claro que essa tarefa corre o risco de não atingir o seu objetivo. Especialmente se o pesquisador se entregar a uma historiografia que valorize apenas os “heróis”, esquecendo-se das forças históricas ou sociais que plasmaram essas biografias e lideranças. Ora, são tais forças que os levaram a uma sintonia com as aspirações, desejos e necessidades de um conjunto de indivíduos situados em uma determinada época e lugar. Parece-me ser esse um dos riscos que correm muitos dos “filhos de Calvino” neste ano de comemoração do quinto centenário de seu nascimento. Nas publicações empenhadas nessa comemoração várias releituras foram feitas de Calvino. Há uma expressão muito conhecida dos historiadores, não me lembro se de Croce ou de Marc Bloch: “o homem é muito mais filho de seu tempo do que de seus pais”. Como chegar ao tempo da reforma protestante do século XVI através de um estudo de um de seus filhos? Que estudo pode ser feito das contribuições dos filhos (de Calvino, por exemplo) à obra e pensamento de seus pais? Não teria Max Weber relacionado muito mais “a ética protestante” dos calvinistas do século XVII com o “espírito do capitalismo” do que o pensamento do próprio Calvino?
O método biográfico aplicado a João Calvino tem muita utilidade na reconstrução de uma determinada sociedade ou grupo social a partir do testemunho dele e de seus seguidores. No caso do calvinismo, os sonhos, anseios, desejos e sofrimento das pessoas de sua época podem ser acessados por meio da análise de seus textos. Nos livros de Calvino, há sistematização teológica, ordenanças civis e eclesiásticas, comentários bíblicos e liturgias. Mas, antes de serem escritos de Calvino, tais documentos devem ser vistos como fragmentos da vida cotidiana de perseguidos político-religiosos da França, que se refugiaram em Genebra. Eles podem nos revelar mais do que o simples exame das formulações doutrinárias da própria Confissão de Fé de Westminster (preparada por uma assembleia entre 1643-46) para subsidiar a unificação entre o protestantismo escocês e o inglês.
Calvino pode ser visto como a ponta de um iceberg capaz de demarcar as fronteiras do pensamento teológico em um momento histórico de turbilhão religioso. Consequentemente, quando da origem e expansão de seus respectivos movimentos, um biografado age como se fosse uma “boia viva” que flutua em um mar agitado. Calvino, no entanto, pode ser visto assim nesse contexto em que um líder é adotado por milhares de pessoas em processo coletivo de recomposição de crenças e práticas quase sempre opostas às principais receitas monopolizadas pelas igrejas e movimentos de onde saíram, foram expulsos ou para elas nunca mais voltariam. Assim ocorreu com o surgimento de denominações cristãs na Inglaterra e nas colônias inglesas da América do Norte, no século XVII. Em suma, Calvino, Lutero, John Knox e outros são mais do que líderes historicamente datáveis, são personalidades corporativas, isto é, pessoas que encarnaram determinados anseios e demandas culturais e históricas.
IHU On-Line - Que outras contribuições as ciências sociais podem oferecer para o estudo da teologia de Calvino e para o seu diálogo com a modernidade?
Leonildo Silveira Campos - Além da contribuição de Bourdieu, tenho, à semelhança de meu mestre e orientador Antonio Gouvêa Mendonça (1922-2007), me reportado aos escritos de Karl Mannheim (Ideologia e utopia. Porto Alegre: Editora Globo, 1954) a respeito das conexões entre o pensamento e o contexto social onde ele é produzido. Dele deduzo que não conseguimos compreender bem determinados modos de pensamento, inclusive o teológico, enquanto permanecerem “obscuras as suas origens sociais”. Para Mannheim “o pensamento humano nasce e opera, não num vácuo social, mas num meio social definido” (p.74). Portanto, o pensamento não está divorciado do contexto social. Muito pelo contrário, ele deve ser compreendido “dentro da moldura concreta de uma situação histórico-social” (p.3). Logo, mudanças e transformações na base social em que o pensamento se aninha acarretam um esgarçamento da lógica ou das relações coerentes entre pensamento e sociedade.
Ora, todo período de crise social, econômica e cultural é momento de desgaste para sistemas religiosos, assim como oportunidade para o surgimento de profetas, reformadores ou líderes messiânicos. Eles são pessoas que conseguem transcender o momento histórico, e buscam apoio nas massas que poderão segui-los nesse processo de contestação da ordem estabelecida. Assim ocorreu com os reformadores ao tentarem superar a situação de crise, produzindo “experiências, ações e modos de pensamento” que somente se tornaram um sucesso “em certos lugares e épocas” (p. 126).
È curioso, todavia, pensar na força de sistemas teológicos e religiosos em outros lugares distantes de onde surgiram. Sobre isso há necessidade de maiores considerações. Porém, basta-nos lembrar que a propagação missionária de um sistema religioso e de pensamento se dá por meio de um processo de hibridização cultural que nunca pode ser descartado. Em outras palavras, nunca recebemos e inserimos em um novo contexto certas ideias e formas de religiosidade sem o aparecimento de fenômenos como sincretismo ou do hibridismo. Sendo assim, um é o calvinismo de Genebra, outro de John Knox na Escócia, outro que resultou da fixação dos peregrinos na América do Norte e de lá trazidos por missionários norte-americanos ao Brasil no século XIX.
Crise do protestantismo histórico
As ideias, sistemas de pensamento e formas de se entender as relações entre Deus e a sociedade humana não são impunemente transferidas de um contexto cultural para outro sem modificações. Não há esse elemento imutável que os fundamentalistas chamam de “uma fé que uma vez foi dada aos santos” como num depósito incorruptível. Esse tesouro “puro” é uma mera abstração intelectual que não condiz com a realidade sócio-cultural vivida pelo ser humano.
Finalmente, as ciências sociais podem nos ajudar na compreensão da chamada “crise do protestantismo histórico”, também encarada por lentes diferenciadas em função do cenário religioso em que tal crise é percebida. Na Europa, Jean-Paul Willaime (La précarité protestante – Sociologie du protestantisme contemporain. Geneve: Labor & Fides, 1992) tem analisado essa crise à luz do fenômeno da secularização, da falta de uma vitalidade que provoque o renascimento e a superação de uma nítida tendência para a decadência e esvaziamento. O fundamentalismo e o ecumenismo aparecem como pólos opostos de tentativas de revitalização. Já na América, o protestantismo que experimenta um longo processo de aclimatação tende, em especial na América Latina, para a pentecostalização e assimilação de valores da cultura religiosa católica, indígena e africana.
O culto racional calvinista, a ênfase na doutrina da predestinação, o sistema representativo de governo, tem se tornado muito mais uma realidade virtual no presbiterianismo brasileiro e latino-americano. O culto presbiteriano recebe uma enorme pressão da improvisação e do espontâneo jeito pentecostal de cultuar a divindade. Há uma absorção do racional pelo lúdico e, em especial, pelo “louvorzão” (uma forma de cânticos liderados por jovens devidamente equipados de tecnologias novas em que a congregação toda participa durante 30 ou 40 minutos, com palmas e gingar de corpos, a som de guitarras e baterias). O governo representativo, menina dos olhos de Calvino, distancia-se do desejo da congregação, cujos membros afirmam que “não pensam como os presbíteros membros do Conselho administrativo local”. Pastores calvinistas imitam bispos pentecostais e católicos, no exercício do poder eclesiástico, assimilando poderes próprios de uma liderança episcopal ou carismática.
Tenho trabalhado com o pressuposto que as ciências sociais nos ajudam a entender as precariedades do protestantismo brasileiro, em especial, o de tradição calvinista. Se o critério for crescimento, sucesso no mercado, o presbiterianismo, portador de uma “herança calvinista” que participava em 34% do grupo de evangélicos em 1930, passou para 7,2% em 1964. Os pentecostais, que eram 9,5% do total de evangélicos em 1930, tornaram-se 77,9% no Censo Demográfico do ano 2000. A síndrome do decréscimo está minando o que foi chamado, em certa época, como a “forma de ser presbiteriano” no Brasil e América Latina. Acredito que, nesse cenário, o presbiterianismo que irá crescer em nosso país não será o herdeiro de Calvino. Haverá um salto de qualidade e restarão apenas pequenos grupos calvinistas conservadores e radicais de um lado e pseudos-calvinistas pentecostalizados de outro.
IHU On-Line - Quais seriam os possíveis pontos comuns entre o calvinismo e o neopentecostalismo, em especial da Igreja Universal do Reino de Deus?
Leonildo Silveira Campos - A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que tenho estudado e acompanhado há quase três décadas, somente no que se relaciona à “teologia da prosperidade” pode parecer ter alguma relação com o calvinismo. Max Weber (A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, Edição de Antonio Flávio Pierucci, São Paulo. Companhia Das Letras: 2004) chamou a atenção para o espírito de disciplina trazido pelo calvinismo, que gerou pessoas interessadas em multiplicar o seu capital por meio de um trabalho no mundo secular, semelhante ao trabalho do monge em um convento. A riqueza acumulada passou a ser um sinal da eficiência da vocação e de que a predestinação estava evidenciada. Essa tese despertou um enorme debate nestes últimos 105 anos da publicação da primeira versão daquele ensaio de Weber.
Não vem ao caso agora explorar em profundidade a tese weberiana. Mas é curioso que, apesar de defendida ardorosamente por poucos, combatida por muitos, o público de um modo geral se esqueceu de Sombart ou das questões levantadas por R.H. Twney, e a tese de Max Weber continua sendo discutida.
A IURD, diferente do calvinismo, prega o livre arbítrio, condena a predestinação como uma heresia criada por Santo Agostinho e não atrai fiéis com o espírito de disciplina próprio dos puritanos ingleses de origem calvinista. O carro-chefe da pregação iurdiana é uma filosofia também presente em outros movimentos religiosos não-cristãos, como, por exemplo, em religiões orientais do tipo da Seicho-no-ie, ou nos que pregam a força da mente sobre a organização da vida financeira das pessoas. Lair Ribeiro seria um bom exemplo laico de praticante e pregador da filosofia da prosperidade.
Na IURD, a busca da prosperidade é para garantir que alguém é filho de um “Deus rico” e que não admite ter filhos pobres. O dinheiro (segundo Macedo, é o “sangue da Igreja”) a ser conquistado, mesmo à custa da fidelidade a um Deus presumivelmente rico, é a chave para a entrada numa sociedade afluente onde somente o TER bens é o que vale. Estar fora da sociedade de consumo, dirigida pelas leis do mercado, é estar fora de uma relação com Deus. Portanto, a conversão envolve o redirecionamento da vida financeira. Porém, insistimos, o dinheiro não é para ficar parado ou para ser reinvestido no sistema que irá produzir mais dinheiro para o fiel. Ser um “abençoado filho de Deus” é ser um consumidor de todos os bens materiais que foram, segundo a IURD, colocados à disposição dos autênticos filhos de Deus. Daí a pregação da autoestima, da crença em suas potencialidades, do despertar da fé que está dentro do próprio indivíduo, o que faz dele um portador de um fragmento de Deus.
A teologia de Calvino está muito longe disso. O homem é corrupto, a maldade tomou conta dele desde que nasceu. Daí a necessidade de buscar a graça e a fé para corrigir essa tendência crônica para o mal. Para Calvino, é de um Deus totalmente soberano que provém o chamado ou a vocação para um indivíduo se integrar no time dos salvos. A salvação vem da aceitação do chamado irresistível. Não depende, portanto, de algo que já esteja dentro do ser humano à espera de um despertamento. Não há nada mais herético para Macedo do que esse “monstruoso ensinamento”.
No que se relaciona à administração da Igreja, a IURD é praticante do sistema episcopal de governo. Tudo está atrelado a uma centralização e uma verticalização do exercício do poder eclesiástico. Em entrevista a nós, em 1994, o então porta-voz da teologia da IURD, o falecido pastor J.Cabral, nos afirmou que Edir Macedo é mais obedecido na sua Igreja do que o Papa na Igreja Católica. Os bispos exercem um papel subalterno em relação a Macedo e os pastores àqueles. Aos fiéis reunidos (uma massa apenas) não se permite nenhuma organização ou escolha de seus representantes em algum tipo de governo. Da eclesiologia calvinista nada há que se assemelhe a eclesiologia da IURD.
No calvinismo, há uma possibilidade de se mudarem as coisas no interior de uma Igreja presbiteriana qualquer. Isso através dos “meios competentes”, isto é, por meio da Assembleia e do Conselho local, dos Concílios regionais (presbitérios) ou dos Sínodos ou Assembleia Geral (de caráter nacional, às vezes, chamado pomposamente de Supremo Concílio). Qual é a possibilidade que alguém ou algum grupo tem de propor mudanças na IURD?
A minha conclusão é que a questão da prosperidade não justifica uma aproximação do calvinismo com a IURD. Esta é uma Igreja que conseguiu assimilar elementos da religiosidade popular católica, indígena e africana, mesclando com elementos da pós-modernidade e de sua vertente religiosa – a Nova Era.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A Reforma. 500 anos depois de Calvino. Entrevista especial Leonildo Silveira Campos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU