01 Mai 2018
Nesse domingo de manhã, duas das três vítimas chilenas se assomaram de um terraço do Palácio Apostólico vaticano para acompanhar o Regina Coeli do Papa Francisco, sorrindo e cumprimentando os fotógrafos. Só esse já era um sinal de que o muro começou a desmoronar, de que aquela Santa Sé considerada durante décadas como um reflexo em escala mais ampla de uma Igreja que não soube e não quis escutar a sua dor pode ser a partir de hoje uma “casa” também para eles.
A reportagem é de Salvatore Cernuzio, publicada por Vatican Insider, 30-04-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Juan Carlos Cruz e James Hamilton, duas das três vítimas chilenas do Pe. Fernando Karadima convidadas a Roma pelo papa (o terceiro, José Andrés Murillo, estava ausente nesse domingo), pareciam à vontade junto com o Pe. Jordi Bertomeu, oficial catalão da Congregação para a Doutrina da Fé e “braço direito” do arcebispo maltês Charles Scicluna durante a missão especial de fevereiro ao Chile.
Mérito das recentes conversas com Francisco em Santa Marta, desejadas pelo próprio pontífice que, após a carta “penitencial” ao episcopado chileno na qual pedira novamente perdão e reiterara sua vergonha pelos casos de abuso, convocou todos ao Vaticano para tentar para encerrar esse dramático capítulo da Igreja no Chile, deflagrado em nível internacional com a viagem de janeiro.
Conversas “positivas”, “intensas”, “construtivas”, “respeitosas”, “sinceras”, que ocorreram de sexta-feira a domingo entre o papa e os três principais acusadores de Karadima e das hierarquias eclesiásticas chilenas, culpadas – segundo eles – de terem encoberto as violências, começando pelo bispo de Osorno, Juan Barros. Pelo menos foi nesses termos que os próprios Cruz, Hamilton e Murillo definiram os diálogos com o papa em posts (aliás, muito semelhantes entre si) publicados em seus perfis sociais.
Atualmente, são apenas esses tuítes que oferecem um vislumbre do que aconteceu nesses três dias. Como informava uma nota do porta-voz vaticano Greg Burke, não há e não haverá uma versão ou um relato oficial. As conversas foram privadas e assim permanecerão para sempre. Por vontade do papa, acima de tudo, que quis dar às conversas um caráter de imediaticidade, sinceridade, espontaneidade, sem qualquer pauta pré-estabelecida nem pressões externas.
Alguns detalhes ou conteúdos, talvez, serão revelados publicamente no próximo dia 2 de maio, durante a coletiva de imprensa que deverá estar muito lotada na sede da Imprensa Estrangeira em Roma. Então, os três chilenos falarão com os jornalistas. Desde que chegaram à capital italiana, nenhum deles quis conceder declarações e entrevistas, mantendo uma relação também muito cautelosa com os jornalistas. Especialmente Cruz, que também é jornalista nos Estados Unidos, onde vive há décadas e onde publicou o livro “O fim da inocência”, sobre a experiência de abusos entre 1981 e 1995, mostrou grande reserva.
Provavelmente o mais conhecido entre as vítimas, considerando seu compromisso para trazer a verdade à tona por mais de oito anos, Cruz era até então o elemento mais crítico contra Francisco e seu pontificado, especialmente após a viagem ao Chile e as declarações do papa sobre as responsabilidades de Barros. A frieza inicial com o pontífice, no entanto, já se dissolveu a partir do primeiro aperto de mão.
“Mais de duas horas e meia durou minha reunião de hoje com o papa. Estou comovido. Ele me escutou com grande respeito, carinho e proximidade, como um pai. Aprofundamos muitos temas”, tuitou ele na tarde desse domingo, poucos minutos depois do encontro na Domus vaticana. “Hoje tenho mais esperança no futuro da nossa Igreja. Apesar de a tarefa ser enorme.”
“Terminada a reunião com o Santo Padre, pouco mais de duas horas, sincera, acolhedora e enormemente construtiva”, escreveu Hamilton, por sua vez, apreciado médico gastroenterologista, na noite de sábado, 28, logo após um breve primeiro tuíte pós-audiência: “Muito contente e satisfeito”.
Quase 24 horas antes, foi enviado o tuíte de Murillo, na sexta-feira, 27: “Hoje conversei falei por duas horas com o papa. De maneira muito respeitosa e franca, expressei-lhe a importância de entender o abuso como um abuso de poder. Da necessidade de assumir a responsabilidade, o cuidado e não só o perdão”.
As vítimas, que até há algum tempo demonstravam uma certa relutância diante da mão estendida de Bergoglio, mesmo após a referida carta, a ponto de pôr em dúvida a sua eventual partida para Roma, voltaram nessa segunda-feira, todos juntos, para Santa Marta. Com eles, provavelmente estariam também Dom Scicluna que, durante sua missão de fevereiro, os encontrou por um longo tempo para dialogar e acolher elementos, detalhes, recordações, documentos. Todo o material que, junto com o fornecido pelas 60 pessoas ouvidas durante os cerca de 15 dias de investigação, serviu para compilar boa parte do volumoso dossiê de mais de 2.000 documentos entregues ao papa assim que retornou a Roma.
Também era provável que, no encontro, pudessem estar – mas apenas para uma saudação ao papa – alguns parentes das vítimas: o filho de Andrés Murillo, a segunda esposa de James Hamilton e outros amigos e familiares.
Alguns interlocutores observaram durante essas horas que o Papa Francisco sempre pareceu muito sereno e descontraído, mas, ao mesmo tempo, muito atento e concentrado, e em inúmeros momentos das conversas fez anotações. Afável, às vezes brincalhão, disponível, Bergoglio também se interessou pela vida atual dos três homens, pelas suas famílias, pelo seu trabalho e pelas propostas sobre como agir diante dos casos de abuso e como evitá-los.
Enquanto as vítimas estão em Roma, chegou do Chile um documento intitulado “Rumo a um caminho de renovação eclesial”. É uma nota da Conferência Episcopal do Chile, assinada pelo presidente dos bispos, Dom Santiago Silva Retamales, e publicada no site do episcopado chileno, que também se prepara para a viagem a Roma.
“Receber um convite do papa para ir a Roma, porque há coisas que, como bispos e Igreja no Chile não estamos fazendo bem, não tem nada de agradável”, diz o texto. “Como Vigário de Cristo – observam os bispos – ele nos ajudará a discernir como acompanhar as vítimas, como reparar o mal causado e tomar medidas que ajudem a recompor a comunhão eclesial.”
Comunhão minada pela grave “manipulação das consciências”, pelos crimes ainda mais graves de pedofilia e os abusos de poder. “A solução não passa por decisões superficiais nem apenas por medidas de curto prazo”, escrevem os bispos, sem esconder, porém, que o caminho rumo à renovação será longo e “um desafio de todo o povo de Deus”.
“O sofrimento profundo por causa desses atos deploráveis, difícil de curar, nos foi mostrado pelas vítimas, com seu testemunho e seus depoimentos”, afirmam. E reiteram que, na base, há uma nova consciência: “De que os abusos de poder e o abuso sexual na Igreja não podem ocorrer nunca mais”.
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Papa conclui conversas com vítimas chilenas: ''Comovidos e satisfeitos. Encontros construtivos'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU