29 Novembro 2017
Quando viajam, os papas normalmente querem deixar uma mensagem de justiça, dignidade e paz, ao mesmo tempo desejam fortalecer as relações com os governos. Em geral, não tão difícil reunir estas duas coisas juntas, mas de vez em quando tal experiência se parece mais com um caminhar sobre um campo verbal e político minado.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 27-11-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Este pode ser o caso do Papa Francisco a partir desta segunda-feira, quando começa a sua visita a Myanmar e Bangladesh, que se estender até o dia 2 de dezembro.
Esta é a primeira vez que um papa faz uma escala em Myanmar, país esmagadoramente budista, onde Francisco claramente quer expressar o seu apoio ao povo minoritário muçulmano Rohingya, perseguido no país. É difícil ver como ele será capaz de fazer isto sem antagonizar com as lideranças políticas e militares locais, que, por sua vez, sequer reconhecem os Rohingya como cidadãos.
Acredita-se que 600 mil Rohingya tenham fugido de Myanmar para a vizinha Bangladesh, local da próxima escala de Francisco a partir de 30 de novembro.
Os Rohingya enfrentam perseguições há décadas, e a eles tem sido negado o status de cidadania com base em uma lei de nacionalidade aprovada pelo regime militar do país no ano de 1982. Oficialmente, são considerados – de forma equivocada, aos olhos de muitos especialistas – “intrusos bengalis”.
A onda atual de violência e opressão, contando com operações dos militares locais descritos pela ONU como um “manual para limpeza étnica”, ficou exacerbado em 25 de agosto, quando insurgentes Rohingya atearam fogo em cerca de 30 postos policiais.
O exército respondeu com o que foi chamado de “operações de limpeza”. Desde então, nenhuma organização estrangeira, incluídas a ONU e agências de notícias, tiveram permissão para entrar no estão de Rakhine, onde os Rohingya vivem há várias gerações. No entanto, os refugiados Rohingya em Bangladesh que conversaram com grupos de direitos humanos alegam que a ação militar envolveu assassinato indiscriminado, incêndio criminoso, estupro e remoções forçadas.
Além disso, membros nacionalistas budistas foram acusados de promover ataques aos Rohingya em todo o estado de Rakhine.
No ano passado, a líder nacional do Myanmar Aung San Suu Kyi criou uma Comissão Consultiva para o Estado de Rakhine, composta por de oito membros, para “pensar questões humanitárias e de desenvolvimento, acesso a serviços básicos, garantia dos direitos básicos e segurança para o povo de Rakhine”. O ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan foi um dos membros.
Antes, o governo havia dito que implementaria as recomendações da comissão, as quais foram apresentadas um dia antes da mais recente escalada de violência.
Na quinta-feira, o governo de Bangladesh anunciou um acordo entre os dois países para a repatriação dos refugiados que começaria dentro de dois meses, embora outros detalhes não tenham sido informados.
Também chamados de “muçulmanos do estado de Rakhine” e “muçulmanos indocumentados de Myanmar”, os Rohingya são considerados uma das minorias mais perseguidas do mundo.
Os ancestrais da maior parte deste povo chegaram a Myanmar no século XIX e início do século XX, trazidos de Bangladesh pelos britânicos, que queriam mão de obra barata durante o período colonial. Nem Myanmar nem Bangladesh os veem como cidadãos ou refugiados; os aproximadamente 2 milhões de membros do grupo são essencialmente apátridas.
Há anos correm de um país a outro, fugindo da violência tanto de Estados hostis como de fundamentalistas religiosos, em sua maioria budistas nacionalistas. Os Rohingya têm respondido na mesma moeda, com a queima de 30 delegacias policiais no mais recente ataque encabeçado por uma de suas milícias.
Em outubro de 2016, militantes Rohingya mataram nove policiais em um atentado coordenado contra três postos da polícia no estado de Rakhine, ao norte de Myanmar. Este ano, o Exército de Myanmar respondeu com força brutal. Soldados armados mataram civis, estupraram mulheres e crianças, destruíram vizinhanças inteiras, deslocando mais de 90 mil.
Devido ao status legal indefinido do grupo, muitos desejam deixar ambos os países, dirigindo-se para a Malásia, Tailândia e Indonésia, países que, pelo menos, afirmam estar abertos aos Rohingya.
No entanto, para chegar nestes locais, a maioria tenta o sucesso através de redes de tráfico humano, e quando os seus familiares não conseguem pagar as dívidas contraídas durante a viagem – que pode durar semanas –, são vendidos a setores que precisam de mão de obra barata, se não escrava, tais como a indústria pesqueira da Tailândia, que mantém os mercados dos EUA e Austrália.
Em várias ocasiões o pontífice argentino fez referência aos Rohingya. A última vez que assim fez foi em 27 de agosto, um dia antes de o porta-voz papal, o americano Greg Burke, confirmar a viagem à região.
“Chegaram tristes notícias sobre a perseguição contra a minoria religiosa, os nossos irmãos Rohingya”, disse ele após a oração do Angelus. “Gostaria de expressar toda a minha proximidade a eles, e todos nós pedimos ao Senhor para salvá-los e para suscitar homens e mulheres de boa vontade para ajudá-los, que lhes deem plenos direitos”.
No entanto, na dianteira da viagem, o Cardeal Charles Bo, de Myanmar, urgiu o papa a não empregar a palavra “R” durante a primeira parte de sua viagem à região ou, se fizer, sugeriu que seja indiretamente, chamando-os de o povo que “se autoidentifica como Rohingya”.
Bo teme que se o papa proferir a palavra, protestos budistas em massa poderiam perigar a frágil democracia do país, sem mencionar que poderá pôr vidas em risco como que chamou de “monges extremistas” que perseguem a minoria.
Se Francisco escolher seguir o conselho, o que, segundo Burke, Francisco “leva muito a sério”, ele corre o risco de não agradar a ONGs e grupos de direitos humanos. Mesmo assim, tal decisão não seria inédita: ao priorizar as relações diplomáticas com Myanmar, a ONU evitou usar o termo por muito tempo também, e quando o ex-secretário-geral Ban Ki-moon o empregou no ano passado, o fez indiretamente.
Os muçulmanos Rohingya, no entanto, pensam de um modo diverso. Um ativista político e religioso Rohingya, que não quis se identificar por medo de retaliação, disse que não se importaria se o papa vier a dizer a palavra.
“Ele já a usou e, o que é mais importante, nos chamou de irmãos e irmãs”, disse.
“O Santo Padre Francisco usar o termo não é o problema nem a solução”, contou ao Crux no sábado o ativista.
Segundo ele, o que os Rohingya esperam de Francisco é que devolva o favor que Aung San Suu Kyi lhe pediu por meio de Bo, para que não empregue a palavra “R”.
“Eu diria para ele pedir algo a ela também: resolver este problema em definitivo”, disse.
De acordo com o Rohingya, o papa deveria dizer à líder do país que encontre uma “solução justa para este povo que vem sofrendo há décadas”, ao invés de “dar desculpas esfarrapadas”.
O entrevistado não se atreveu a dizer qual a solução, mas insistiu que o único modo de resolver o problema de uma vez por todas é ouvindo e dialogando com os Rohingya.
“Ela continua fugindo de nós”, disse o ativista, cujo bisavô trabalhou como ministro durante o primeiro governo democrático de Myanmar após a independência na década de 1950. “Sem conversar com a gente, escutar este povo que sofre, não vamos encontrar a solução. Como vítimas, precisamos fazer parte da solução”.
Ele vive em Yangon, e aí sente-se seguro. No entanto, duas de suas irmãs e uma tia perderam tudo nos ataques contra os Rohingya no estado de Arakan em 2012. “Eram pessoas ricas e, da noite para o dia, tornaram-se refugiadas”. Suas casas foram queimadas e atualmente vivem em campos para pessoas deslocadas internamente dentro de Myanmar.
Respondendo à declaração do governo militar de que os Rohingya não são cidadãos de Myanmar, ele crê que ser apenas uma “desculpa” para livrar o país da população muçulmana.
“Se não somos cidadãos deste país, então por favor expliquem para mim por que antes do governo deles nós éramos ministros, parlamentares, participávamos no exército e das forças policiais”, disse.
O governo de Aung San Suu Kyi precisa encontrar uma solução, insiste, não apenas para os Rohingya, mas para os cristãos, que são perseguidos também, muito embora em nível menor: “Eles não possuem direitos religiosos neste país”, completou.
Setembro passado, após começar a última onda de refugiados, a agência para refugiados da ONU advertiu que centenas de milhares de Rohingya estão atualmente “à mercê” do tráfico humano. Após chegar sem dinheiro, alimento, água potável, abrigo e sem falar a língua local, estas pessoas ficam à mercê de qualquer um que ofereça ajuda.
Em três meses, aproximadamente 600 mil Rohingya fugiram de Myanmar para Bangladesh.
Entre os que tentam evitar cair em redes de tráfico humano está a agência católica Caritas Bangladesh, parte da Caritas Internationalis. Atualmente, agentes da Caritas fornecem aquilo que Caroline Brennan definiu como “ajuda que salva vidas” a cerca de 68 mil pessoas.
Brennan trabalha para o Catholic Relief Services – CRS, agência de ajuda internacional da Conferência Episcopal dos EUA. A CRS é parceira da Caritas Bangladesh.
“O nosso apoio irá se expandir segundo as necessidades locais, e provavelmente iremos priorizar abrigos seguros, água potável e cuidados sanitários, além de uma infraestrutura digna”, disse ela ao Crux dias depois de retornar de Bangladesh. Brennan esteve na fronteira sul do país, onde milhares ainda chegam em pequenos botes de madeira, “repleto de migrantes”.
Ela viu homens carregando mães em cestos, fracas demais para caminhar após uma jornada de duas semanas; falou com mães que perderam filhos crescidos no meio da noite, separados numa tentativa desesperada de permanecer sem ser vistos pelos militares, como um caçador e sua presa. São pessoas exaustas física e emocionalmente, disse Brennan.
O que encontrou em Bangladesh são centros de refugiados “em massa e extensos”, montados no que, até julho, eram campos cobertos por vegetação. Descreve-os como um dos maiores campos de refugiados que já viu após tantos anos trabalhando na área humanitária. Outros jornalistas que atuam na região também compararam estes lugares com os campos existentes no Kenya, em meio ao genocídio ruandês.
Os que que chegaram ao local encontram-se em “estado desesperado”, sem saber por quanto tempo conseguirão permanecer ou quando poderão retornar para casa. “Estão passando por grandes necessidades na qualidade dos abrigos, drenagem, higiene”, disse Brennan.
O local não é digno tampouco livre de doenças, e a violência pode irromper nos centros, “mas, ao mesmo tempo, estão aliviados por poderem viver aí”, completou.
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Francisco encara campo minado em Myanmar com os Rohingya - Instituto Humanitas Unisinos - IHU