Por: Patricia Fachin | 19 Setembro 2017
A revolução tecnológica e a substituição de algumas atividades humanas por robôs tendem a “aprofundar as tensões já existentes” no mundo do trabalho, especialmente em países que enfrentam um baixo crescimento econômico, mas as mudanças mais drásticas serão visíveis no setor de serviços, diz o sociólogo Ruy Braga à IHU On-Line. “Sem dúvida essa revolução terá impacto na oferta de emprego. A automação contemporânea está mirando, em grande medida, o setor de serviços, isto é, o setor que mais produziu postos de trabalho, ainda que sub-remunerados, no último período, em países como África do Sul e Brasil. Esse setor sofrerá o impacto da difusão da automação”, diz. As agências bancárias, por exemplo, estão entre os setores de serviço que passarão por um “enxugamento fatal no próximo período”.
Ruy Braga tem acompanhado os estudos sobre a precarização do trabalho nos países do BRICS [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul] e afirma que “a difusão desses mecanismos tecnológicos, que viabilizam a chamada economia de plataforma ou economia compartilhada, em especial os aplicativos, tem sido um elemento suplementar de precarização no tocante às tendências de organização do mercado de trabalho nesses diferentes países”. E acrescenta: “Tem um elemento muito forte que se estabelece na interface entre o movimento dessas tecnologias, por um lado, e a informalização e, consequentemente, a precarização do trabalho por outro, enfraquecendo os regimes de proteção trabalhista nesses diferentes países”.
Apesar das mudanças no mundo do trabalho, o sociólogo frisa que “o que é chave nessa questão é que não se trata de uma fatalidade”, ao contrário, trata-se de uma “escolha histórica da sociedade, uma escolha política fundamentada na dinâmica da luta social”. Diante dessa mudança, pontua, “podemos ter uma forma mais protegida ou menos protegida de trabalho e, ao mesmo tempo, é urgente pensarmos, também, sobre a necessidade de reforçarmos os processos, projetos ou dinâmicas de transferência universal de renda, independente do vínculo trabalhista ou não”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, Braga comenta as possibilidades de instituir uma renda universal e também aborda a temática de seu novo livro, intitulado A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul Global (Boitempo, 2017), que analisa as relações entre o neoliberalismo, a precarização do trabalho a partir da crise econômica de 2008 em países como Portugal, Brasil e África do Sul, e as novas lutas sociais nos países da semiperiferia do capitalismo. Para reverter a atual crise econômica, de emprego e de bem-estar social pela qual passam esses e outros países, o sociólogo aposta numa aliança entre o trabalho organizado e o precariado urbano. “Do ponto de vista estratégico, é preciso haver uma aliança entre o trabalho organizado e o precariado urbano. Essa aliança deve ser feita em bases democráticas, o que se supõe reinventar o sindicalismo e os partidos políticos tradicionais que se aliam às forças do trabalho nas diferentes sociedades nacionais, reinventando formas mais democráticas de ações políticas, reforçando a representação política e submetendo os representantes à deliberação dos representados”, sugere.
Ruy Braga | Foto: Surubim News
Ruy Gomes Braga Neto é especialista em Sociologia do Trabalho e leciona no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP, onde coordenou o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania – Cenedic. É autor do livro A pulsão plebeia: trabalho, precariedade e rebeliões sociais (São Paulo: Alameda, 2015), A política do precariado (São Paulo: Boitempo, 2012).
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Que relações o senhor estabelece entre o neoliberalismo e as relações de trabalho em seu novo livro A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul Global (Boitempo, 2017)?
Ruy Braga — No meu novo livro procuro fazer uma análise da relação entre neoliberalismo, precarização do trabalho e o advento de novas lutas sociais em países genericamente considerados semiperiferia do sistema capitalista, no caso, África do Sul, Portugal e Brasil. Ainda, procuro identificar quais são as principais tendências de desenvolvimento deste tipo de conflito entre os trabalhadores precários, por um lado, e as modificações do estado de bem-estar social nesses países desde a implantação de políticas de austeridade, especialmente a partir do advento da crise da globalização em 2008. Então, busco fazer uma análise de amplo espectro histórico a fim de identificar o desenvolvimento desse conflito no contexto da crise da globalização.
Do ponto de vista mais global, alguns padrões foram amadurecendo ao longo desse período que, evidentemente, tem raízes num momento anterior, mas que florescem a partir de 2008, em especial o deslocamento do conflito social do chão de fábrica, das empresas, dos locais de trabalho, para as ruas e praças, para aquilo que podemos chamar, genericamente, de protesto social. Nesse sentido a comparação é muito útil para identificar os padrões de desenvolvimento dessa dinâmica florescente do conflito social contemporâneo.
Para tanto, me apoio em etnografias do trabalho precário, uso dados da minha própria pesquisa de campo e também da minha pesquisa em Portugal, além de utilizar os dados etnográficos e relatórios dos colegas que trabalham na África do Sul. É como se fosse uma etnografia da crise da globalização, mas do ponto de vista desses setores mais precarizados, que sofrem, ou seja, que são mais diretamente afetados pelas políticas de austeridade ensejadas por governos neoliberais.
IHU On-Line – Quais são as características centrais que identificou ao analisar o trabalho precarizado em Portugal, Brasil e África do Sul? Que percentual dos trabalhadores desses países têm empregos precarizados?
Ruy Braga – O essencial em termos comparativos é perceber como há um processo mais ou menos coetâneo de precarização do mercado de trabalho nesses países, a despeito dos diferentes sistemas de proteção social. O que se verifica a partir de 2008, com o aprofundamento da crise da globalização, é que as respostas nacionais dos Estados avançaram na direção da aplicação de políticas neoliberais de mercantilização do trabalho e de diminuição da abrangência da proteção trabalhista. Isso ocorreu com muita clareza tanto em Portugal quanto na África do Sul; no Brasil, ocorreu com um nível de atraso, a partir de 2013 e 2014. Isso faz com que a conclusão seja mais ou menos óbvia: o aprofundar da crise produz o efeito que é a aplicação de políticas neoliberais, que visam à mercantilização do trabalho e, consequentemente, diminuem o nível e a abrangência da proteção trabalhista.
O efeito mais visível desse processo nos três países tem sido a multiplicação de trabalhos intermitentes, com contratos muito curtos e com baixíssimo nível de proteção social, o aumento da terceirização e, como resultado disso, o aprofundamento das desigualdades no interior das classes. Então há uma polarização do mercado de trabalho, onde o núcleo protegido da força de trabalho é cada vez mais seleto e a franja envolvida com o subemprego cresce a cada dia. Isso produz outro elemento: o aprofundamento da inquietação social, especialmente em relação a esses setores mais precarizados e, consequentemente, o avanço de formas de resistência, em especial lutas sociais e protestos que têm propriamente o Estado como objeto, a grande instância a ser interpelada.
Então, me parece que tanto no caso do Brasil quanto no de Portugal e no da África do Sul há um processo que se desenvolve de maneira muito desigual em questão de ritmo, mas que converge para um ponto comum, que é o aumento do subemprego e a diminuição daquele núcleo protegido da força de trabalho nacional. Há diferenças, evidentemente. No caso da África há uma polarização, levando-se em conta as questões raciais, então, a massa dos trabalhadores precarizados é caracterizada por trabalhadores negros a despeito de ter se percebido uma ascensão social de uma elite negra. Em Portugal existe um peso muito grande dessa precarização sobre os setores mais jovens. Especialmente entre 2011 e 2014, houve um crescimento exponencial da emigração jovens; nesse período, mais de 500 mil jovens emigraram de Portugal. No Brasil há um híbrido entre formalização e precarização até o advento da crise de 2015, quando então o país entra no ritmo dessa onda global de precarização.
Vale destacar que nos três casos o aprofundamento da precarização ocorre num contexto de recrudescimento do autoritarismo estatal desses países. Tal processo de desestruturação da proteção trabalhista redundou, em 2012, no massacre de Marikana. Esse autoritarismo tem como seu eixo uma relação entre o capital e o Estado.
IHU On-Line – Além dessas mudanças no mercado de trabalho, que consequências esses países enfrentaram em relação ao estado de bem-estar social por conta da crise econômica de 2008? Pode nos dar exemplos de quais medidas de austeridade foram implementadas?
Ruy Braga – No caso português é bastante simples de identificar isso, porque houve uma imposição e depois uma negociação entre o governo português de Pedro Passos Coelho e as medidas de autoridade impostas pela Troika, pela União Europeia e pelo FMI, naquele contexto de endividamento dos países do sul da Europa, que se passa logo após o advento da crise econômica de 2008 e 2009. Nitidamente o Estado passa a impor medidas cujo principal objetivo era diminuir a proteção trabalhista, conter os gastos de previdência pública e eliminar o gasto social do governo com saúde e educação. Essas três frentes inauguram um período de mercantilização do trabalho e os trabalhadores passam a viver num ritmo mais acelerado para tentar manter o mesmo patamar de vida. Isso levou, de um lado, ao aumento da desigualdade de renda e, de outro, ao endividamento das famílias trabalhadoras ou de classe média.
O caso africano é anterior, ou seja, desde meados da década de 1990 há um processo de privatização dos serviços essenciais e das empresas que prestam esses serviços, e um aprofundamento desse ciclo privatista e aplicação de políticas macroeconômicas ortodoxas. Isso fez com que a indústria sul-africana declinasse e o setor têxtil desaparecesse. Essa medida também gerou uma polarização naqueles mercados que eram basicamente protegidos, que eram os estatais. Isso gerou um aumento da desigualdade no mercado de trabalho e preparou uma crise social que, na sequência, eclodiu, que é a crise das políticas de redução de custos das empresas que foram privatizadas, como as empresas de água, luz etc. Essas empresas quiseram recuperar os valores que foram investidos, e os serviços para a população, aqueles que deveriam ser públicos, passaram a ser caros diante das possibilidades que as famílias pobres tinham de pagar por eles. Essa situação produziu uma onda de protestos para que esses serviços essenciais fossem entregues pelo Estado. No caso sul-africano houve uma maior informalização do mercado de trabalho e um processo de privatização que acabou redundando nesse processo de luta pela entrega dos serviços essenciais.
O caso brasileiro é bastante complexo de ser analisado, porque durante 13, 14 anos tivemos um mercado de trabalho aquecido, que produziu 2,1 milhões de empregos formais por ano, que acabou criando um banco de empregos formais muito importante. No entanto, esses empregos pagavam muito mal: 94% pagavam até 1,5 salário mínimo, e essa onda de formalização veio acompanhada de um aumento exponencial de emprego terceirizado, temporário, ou seja, houve terceirização para os setores subalternos e pejotização para setores profissionais. Somou-se a isso um aumento da rotatividade, a compressão dos trabalhos e a concentração de salários baixos.
Claro que isso veio acompanhado de políticas públicas nos governos Lula e Dilma e de programas de financiamento da casa própria, de acesso à universidade, que serviram para equilibrar os processos de precarização, no entanto, sem conseguir superar os dilemas que produziram e reproduzem o trabalho barato no país. Isso tudo, com o advento da crise, acabou colapsando e agora estamos numa situação na qual o país se aproxima de forma muito acelerada daquele processo que caracteriza países como a África do Sul: um aprofundamento agudo do trabalho informal, intermitente, terceirizado, do colapso das barreiras que separam o trabalho formal e o informal, tendo em vista a eliminação dos direitos trabalhistas.
Os sistemas de proteção do trabalho a nível global estão ruindo diante dessas políticas neoliberais que são implementadas pelos respectivos Estados, cujo objetivo declarado é fazer frente à crise econômica, mas que apenas a aprofunda.
IHU On-Line - O senhor chama atenção para as resistências populares que ocorreram nesses países por conta das políticas de austeridade. No caso do Brasil, as manifestações de Junho de 2013 podem ser classificadas como manifestações desse tipo?
Ruy Braga – Sim, porque as manifestações de Junho tiveram como foco, em primeiro lugar, a questão da tarifa do transporte urbano, que é algo absolutamente central para entender o que aconteceu nas cidades no último período, em relação, de um lado, ao processo de mercantilização das terras urbanas, aos processos de inflação dos preços dos aluguéis e da mudança cada vez maior de parcelas da população para regiões periféricas mais longínquas; e, de outro lado, a uma insatisfação generalizada com o gasto público, porque há uma demanda cada vez maior por investimento em saúde e educação. É claro que se tem, junto com isso, uma parcela da classe média que vai para as ruas motivada pelas questões da corrupção, mas essa parcela é minoritária, chega a 20 ou 30%.
A complexidade de Junho reside justamente nisto: houve um momento em que diferentes classes sociais se encontraram levando demandas distintas e depois se afastaram e se separaram. No entanto, no agregado geral o movimento foi de exigir e interpelar o Estado para que investisse mais em saúde e educação, porque esses são setores mais sensíveis à população e a essa fatia de trabalhadores que ganham muito mal.
IHU On-Line - A que atribui o declínio da sindicalização nesses países, ainda mais nesse contexto de austeridade? Qual é a origem desse fenômeno?
Ruy Braga – A sindicalização no sentido tradicional tem declinado, na maior parte dos países estudados, tendo em vista, em primeiro lugar, a transformação do mercado global de trabalho, porque nos últimos 30 anos o preço da força de trabalho global foi transformado para baixo por conta da entrada de milhões de trabalhadores chineses e indianos nesse mercado competitivo. Ou seja, quando a China e a Índia passam a fazer parte do mercado mundial, o preço da força de trabalho nacional passa a ter um impacto no conjunto das demais forças de trabalho nacionais. Isso fez com que o mercado de trabalho em outros países ficasse mais estressado quando comparado a outros mercados.
Em segundo lugar, há um processo de reestruturação das empresas que, tendo em vista o desenvolvimento tecnológico, tende a polarizar as profissões entre um setor que concentra informação, controle, poder, e uma parcela cada vez maior de setores que são despojados de qualificações e, ao mesmo tempo, se inserem em ocupações subalternas.
Em terceiro lugar, há uma resposta em larga escala do sindicalismo, que não faz uma leitura correta da combinação desses processos e acaba se voltando cada dia mais para o Estado nacional como a única fonte de garantia de poder e negociação organizativo. Os sindicatos tendem a se tornar cada vez mais burocratizados à medida que se aliam prioritariamente aos Estados nacionais, sem se dar conta e perceber que, na verdade, o que eles deveriam fazer é exatamente recompor seu poder organizacional por intermédio dos trabalhadores precários que passam a ser trabalhadores estratégicos nos diferentes mercados de trabalho nacional.
Resumindo, estas são as três fontes de explicação de por que as taxas de sindicalização são declinantes: de um lado, uma compressão global do valor da força de trabalho, de outro, uma estruturação em escala mundial que faz com que se generalizem ocupações sub-remuneradas e precárias e, finalmente, uma leitura política muito corporativista dos sindicatos, que acabam abandonando os setores precarizados em benefício de um alinhamento com o Estado e com os governos.
IHU On-Line — A sua pesquisa também se debruça sobre questões relacionadas à Revolução 4.0 e sobre como ela tende a mudar as relações de trabalho e, inclusive, a própria natureza do trabalho?
Ruy Braga — Eu tenho participado de uma pesquisa internacional sobre os BRICS [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul], que tem se debruçado sobre essas novas tendências de precarização nos países do grupo. Sem dúvida alguma, a difusão desses mecanismos tecnológicos, que viabilizam a chamada economia de plataforma ou economia compartilhada, em especial os aplicativos, tem sido um elemento suplementar de precarização no tocante às tendências de organização do mercado de trabalho nesses diferentes países.
O caso chinês é bastante exemplar: a China tinha um modelo que vigorou até 2008, com o advento da crise da globalização, que fundamentalmente promovia a mudança do trabalho rural para o trabalho urbano, em especial para a indústria de exportação. Agora estão tentando outro modelo para sustentar o crescimento econômico chinês, que, ao mesmo tempo, mercantiliza a terra — no campo —, fazendo com que os camponeses se tornem pequenos proprietários de terra e sejam estimulados a trabalhar na própria terra; isso cria desigualdade no campo.
E nas cidades eles têm investido muito na economia de plataforma, buscando mobilizar aquela força de trabalho que não mais encontra emprego nas indústrias, na economia de serviços. O mecanismo principal são os aplicativos. Então, a economia chinesa tem as maiores empresas nessa área, que não é o Uber, mas é equivalente a um “Uber chinês”, além de outros mecanismos e aplicativos que estimulam esse tipo de engajamento instantâneo, chamado trabalho intermitente, mas mediado por essa economia de plataforma. Então, tem um elemento muito forte que se estabelece na interface entre o movimento dessas tecnologias, por um lado, e a informalização e, consequentemente, a precarização do trabalho por outro, enfraquecendo os regimes de proteção trabalhista nesses diferentes países.
Evidentemente que isso já começa a acontecer no Brasil, notoriamente com o modelo Uber, mas hoje temos uma situação que com a “nova CLT”, ou seja, o golpe da legislação trabalhista que foi dado pelo governo Temer, se instituiu não apenas a universalização da terceirização, mas, principalmente, o estabelecimento do trabalho intermitente. E o trabalho intermitente se adapta bastante bem a essa economia de plataforma, porque com o aplicativo no celular é possível mobilizar uma quantidade bastante conveniente de força de trabalho no momento em que o empregador achar necessário. Portanto, essas reformas estimulam a precarização e reforçam esse elemento degradante do mercado de trabalho que vem junto com a economia de plataforma. São tendências que encontramos em todos os BRICS e, evidentemente, é uma tendência que tende a se aprofundar no próximo período.
IHU On-Line — Que setores, na sua avaliação, serão mais impactados pela Revolução 4.0? O que seria um modelo de legislação trabalhista adequado considerando as mudanças tecnológicas?
Ruy Braga — Sem dúvida, essa revolução terá impacto na oferta de emprego. A automação contemporânea está mirando, em grande medida, o setor de serviços, isto é, o setor que mais produziu postos de trabalho, ainda que sub-remunerados, no último período, em países como África do Sul e Brasil. Esse setor sofrerá o impacto da difusão da automação.
O que parece importante destacar é que, apesar desse impacto, o que de fato regula a oferta de empregos e consequentemente define os contornos do mercado de trabalho é, basicamente, o investimento capitalista. Ou seja, vivemos um período de crise no qual o investimento capitalista está muito baixo e, consequentemente, não tem oferta de empregos. A revolução tecnológica, a automação, e em especial a automação no setor de serviços, aprofundam tensões já existentes tendo em vista o baixo crescimento da economia. No entanto, eu não diria que não haverá trabalho no futuro. Haverá trabalho, sem dúvida nenhuma, a economia há de retomar em algum momento; o problema é quais serão as bases dessa retomada e qual o tipo de trabalho que irá florescer no momento de retomada da economia.
Da forma como as medidas da regulação política do trabalho estão sendo encaminhadas, o que se tem é uma desconstrução da sociedade salarial, com eliminação de qualquer tipo de proteção trabalhista. Consequentemente, quando ocorrer a retomada, nós teremos a multiplicação desses mini jobs: o trabalho intermitente e as formas mais precárias de trabalho. E, ao mesmo tempo, são formas muito degradantes de existência.
O que é chave nessa questão é que não se trata de uma fatalidade, ou seja, é uma escolha histórica da sociedade, uma escolha política fundamentada na dinâmica da luta social. Então, podemos ter uma forma mais protegida ou menos protegida de trabalho e, ao mesmo tempo, é urgente pensarmos também sobre a necessidade de reforçarmos os processos, projetos ou dinâmicas de transferência universal de renda, independente do vínculo trabalhista ou não. Isso, no caso brasileiro, só acontecerá se enfrentarmos o problema da dívida pública e do rentismo, porque não há espaço no orçamento público para universalizar política de transferência de renda senão por intermédio do bloqueio do rentismo, do enfrentamento em relação ao rentismo e à financeirização da economia. Consequentemente temos uma agenda de elevação da proteção do trabalho articulada à universalização de política de garantia de renda. Essas são duas medidas necessárias para enfrentarmos o atual problema do desemprego.
IHU On-Line — O senhor disse que a mudança tecnológica e no mundo do trabalho é uma escolha política e uma escolha da sociedade. Diria que é uma escolha do trabalhador também? Hoje, por exemplo, muitos trabalhadores desempregados veem no Uber uma alternativa à crise e ao desemprego, e outros ainda optam por trocar seus empregos pelo Uber.
Ruy Braga — O Uber não é uma fatalidade, é uma grande corporação internacional e precisa se adaptar às legislações nacionais. É evidente que podemos aumentar e, ao mesmo tempo, garantir a proteção do trabalhador que trabalha para a empresa Uber. Ou seja, a sociedade deve, efetivamente, regular o trabalho de motorista de Uber, como tem ocorrido em cidades como São Francisco e Londres, onde já existe uma legislação específica que regula o trabalho dos motoristas que trabalham para a empresa Uber.
A atratividade desse tipo de emprego para o trabalhador é muito mediada, determinada e condicionada pela questão do desemprego. Então, se temos o desemprego aumentando, naturalmente esse tipo de ocupação se torna mais atraente; com a diminuição do desemprego e com postos de trabalho que remunerem melhor, esse tipo de ocupação tende a tornar-se menos atraente ou então a se mesclar com as necessidades do trabalhador.
O que acontece hoje é uma falsidade: alega-se que o Uber é ótimo porque garante a flexibilidade, mas isso é assim para um trabalhador que está desempregado, ou seja, que não tem outra opção. Portanto, da maneira como a uberização do trabalho tem ocorrido, no contexto brasileiro, sem dúvida leva à precarização e não interessa à classe trabalhadora, em um sentido amplo, como horizonte histórico. Agora, aqueles que estão desempregados, evidentemente, sentem-se atraídos por esse tipo de ocupação. Diga-se de passagem, submetem-se às regras de mercado como qualquer outra, isto é, vai haver uma pressão pela compressão dos preços, o que leva, novamente, à deterioração dos serviços. Logo, isso tudo é muito ligado às dinâmicas estruturais do mercado de trabalho capitalista.
IHU On-Line — Hoje, uma das discussões que volta à pauta é a possibilidade de se instituir uma renda mínima universal, especialmente por conta dos processos de automação e robotização no mundo do trabalho. Alguns sugerem até um tipo de tributação para robôs. Como o senhor vê essa discussão? Que mecanismos possibilitariam garantir essa renda universal para todos?
Ruy Braga — Temos que entender que existe esse interesse da robotização apenas em alguns setores, em especial na indústria de transformação, mas a utilização ou não de robôs, basicamente, é uma variável que se acopla aos custos de produção. Portanto, se a robotização de uma fábrica é mais custosa do que o valor da força de trabalho, isso não vai ocorrer. A economia brasileira é marcadamente barata em termos de trabalho, isto é, o trabalhador brasileiro custa pouco para as empresas, consequentemente, isso produz um desestímulo à robotização. Assim, não parece que hoje, nesse momento, levando em conta as características da indústria de transformação no Brasil, o principal problema seja a robotização; o principal problema é a crise econômica e o baixo nível de investimento capitalista. É isso que, de fato, gera o desemprego, e não uma suposta robotização na indústria. A indústria brasileira é decadente há muitas décadas e não consegue produzir ganhos de produtividade, inclusive porque falta, efetivamente, robotização.
O que tem mais diretamente a ver com a questão do desemprego pela automação, hoje, é a automação no setor de serviços. Levando-se em conta o desenvolvimento de tecnologias, os aplicativos, essa dimensão tecnológica ligada às redes e assim por diante, o setor bancário vai passar por um enxugamento fatal no próximo período: as agências vão se tornar cada dia mais redundantes, tendo em vista a automatização e a informatização do serviço bancário; faremos tudo pela internet ou pelo aplicativo do celular, não vamos precisar ir ao banco, o dinheiro vai se tornar cada vez mais abstrato nesse sentido, pois os pagamentos serão por cartão de crédito — tudo que já existe hoje, mas em nível superior. Isso é um exemplo, por assim, dizer, relacionado à questão da automação do setor de serviços. Outros setores, no interior dos setores de serviços, também vão sendo progressivamente submetidos aos sistemas de informação, consequentemente, à automação, que atinge mais diretamente aquelas burocracias intermediárias das empresas que atuam no setor de serviços. Tende a ser um elemento de aumento de desemprego, mas novamente o que regula o mercado de trabalho é o investimento, e, no caso brasileiro, investe-se muito pouco, com isso se tem um baixo crescimento e não se gera emprego.
IHU On-Line — Como instituir uma renda básica no Brasil e como a discussão sobre a dívida pública pode nos orientar nessa direção?
Ruy Braga — A renda básica já é parte da legislação brasileira, que é a lei que o [Eduardo] Suplicy aprovou no início do primeiro governo Lula. Ela se desenvolve, primeiramente, por intermédio do programa Bolsa Família. Então, o Bolsa Família já é uma renda básica universal, só que, no primeiro momento, focada nos mais vulneráveis. O que temos que ter é uma decisão política e coletiva que envolva a sociedade brasileira no seguinte sentido: nós desejamos continuar tributando os pobres e pagando os bancos a juros acachapantes, transferindo renda de baixo para cima, ou desejamos transferir renda de cima para baixo? Um dos elementos-chave, sem dúvida nenhuma, são os programas de garantia de renda universal.
É uma escolha política que passa pela discussão prévia de “o que fazer com a dívida pública?”, “para onde vai o recurso público?”, “para onde vai o dinheiro público?”. Não tem uma solução fácil, porque o rentismo é muito enraizado no Estado e nos setores de classe média, e mexer nesses mecanismos gera, evidentemente, uma tensão social muito forte. Mas sou a favor da universalização de um rendimento mínimo — não gosto da expressão renda mínima, o melhor seria um rendimento assegurado universal — que garantisse uma renda a uma família ou aos indivíduos que fossem incapazes de produzir, independentemente da sua posição relativa no mercado de trabalho. A partir daí teríamos a base para ampliar direitos trabalhistas e proteção trabalhista de forma mais eficiente.
IHU On-LIne — Qual deveria ser o valor dessa renda?
Ruy Braga — O salário mínimo proposto pelo Dieese está em torno de três mil reais, o que significa um salário para uma família de quatro pessoas. Dividindo esse salário por dois indivíduos adultos, seriam mil e quinhentos para cada um. Portanto, uma renda mínima deveria partir desse patamar de 1.500 reais para cada cidadão. Claro que isso é muito difícil de ser alcançado, mas, ao mesmo tempo, temos 60% do orçamento público comprometido com os juros e a amortização da dívida pública. Logo, se utilizássemos esses recursos para, ao invés de pagar os juros, pagar uma renda mínima, evidentemente, teríamos recursos para chegar próximo a esse valor de 1.500 reais.
Não tenho um plano elaborado, o que temos é um processo de luta social em curso, e nenhuma ideia mirabolante da cabeça de alguém vai resolver o destino dessa luta. No entanto, é claro que devemos nos posicionar diante dessas questões, e me parece correto que nos posicionemos a favor do rendimento universal garantido e da proteção do trabalho.
IHU On-LIne — Como tem se dado essa discussão dentro da esquerda?
Ruy Braga — No geral, quem propôs um rendimento universal foram os setores alinhados à esquerda. Na década de 1990 essa foi uma proposta que teve alguma repercussão no interior do PSDB, que à época ainda era um partido mais à esquerda. Depois essa proposta foi incorporada com muito entusiasmo por alguns setores petistas. Se não houvesse a esquerda, não haveria um debate sobre a renda universal garantida e também não haveria um investimento tão forte e consistente do Estado, nos últimos anos, de políticas de transferência de renda, em especial me refiro ao programa Bolsa Família. Portanto, a esquerda é a principal força motriz por trás desse tipo de política.
IHU On-Line – Como reverter esse quadro de crises econômica, de emprego e do estado de bem-estar social que, segundo seu livro, estão associadas ao neoliberalismo?
Ruy Braga – Do ponto de vista estratégico, é preciso haver uma aliança entre o trabalho organizado e o precariado urbano. Essa aliança deve ser feita em bases democráticas, o que se supõe reinventar o sindicalismo e os partidos políticos tradicionais que se aliam às forças do trabalho nas diferentes sociedades nacionais, reinventando formas mais democráticas de ações políticas, reforçando a representação política e submetendo os representantes à deliberação dos representados. Existem muitas experiências nacionais que apontam nessa direção. Eu citaria o caso português, o qual foi objeto do meu estudo, com o avanço da organização dos trabalhadores precários, uma pressão em renovar a agenda sindical com novas demandas ligadas à juventude, aos trabalhadores imigrantes e às questões de gênero, que foram incorporadas relativamente pelos sindicatos e pelos partidos políticos tradicionais, haja vista por exemplo a formação de coalizões parlamentares que acabaram promovendo o governo de António Costa e as políticas antiausteridade em Portugal.
Por outro lado, diria que esse é um desafio difícil de se alcançar porque as sociedades nacionais estão atravessando um momento de aumento da polarização política e social, um aumento das lutas de classe em escala mundial e um aumento do autoritarismo dos Estados, que procuram conter essas lutas sociais por intermédio de medidas repressivas. Esse impulso que vem de baixo em termos de democratização das formas de representação acaba se chocando com o aumento do autoritarismo em escala nacional. Mas não há outra alternativa que não seja a formação de coalizões democráticas tendo por base as forças do trabalho organizado, de um lado, e as forças do trabalho desorganizado, de outro, em torno de uma agenda que consiga fazer uma síntese entre a defesa da proteção social, por um lado, e o reforço das formas de emancipação social, por outro. Nas questões de emancipação social, citaria a questão de gênero, da juventude, dos imigrantes. Esse seria o caminho para sairmos, numa perspectiva progressista, dessa situação de crise que estamos vivendo hoje.
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Uma saída progressista exige uma nova aliança entre o trabalho organizado e o precariado urbano. Entrevista especial com Ruy Braga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU