“O imaginário de Estado-nação não é um imaginário alternativo ao neoliberalismo”. Entrevista com Christian Laval e Pierre Dardot

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22 Junho 2017

La pesadilla que no acaba nunca (Gedisa) é o último livro traduzido ao castelhano do par intelectual formado pelos franceses Christian Laval (sociólogo) e Pierre Dardot (filósofo). O título faz referência ao fato de que a crise mais grave em muitas décadas não trouxe consigo uma transformação substancial do capitalismo (como aconteceu em 1929), mas a radicalização de sua forma neoliberal.

Esta intensificação da lógica neoliberal – que coloniza as instituições públicas, as relações entre os seres e o interior de nós mesmos – ameaça agora, inclusive, as formas mais ‘light’ da democracia (democracia eleitoral, liberal-representativa). A crise é a oportunidade perfeita para lançar uma autêntica “guerra política” contra todos os obstáculos que freiam o aprofundamento da lógica do benefício.

É urgente e vital esboçar um novo tipo de pensamento e ação transformadora-revolucionária capaz de estar à altura do desafio que o “devir-mundo do capital” apresenta. Segundo Laval e Dardot, a alternativa não passa por renovar a soberania e a social-democracia, mas pelas “políticas do comum”. Ou seja, as práticas de democracia radical que fazem de cada um de nós um agente ativo na configuração da realidade.

A entrevista é de Amador Fernández-Savater, publicada por Rebelión, 21-06-2017. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Para vocês, o neoliberalismo é um projeto diretamente antidemocrático no sentido de que se opõe (tanto na teoria, como na prática) a qualquer suspeita de soberania popular (inclusive, a liberal-representativa). Poderiam explicar isto?

Efetivamente, é importante voltar sobre o projeto em si, tal e como foi elaborado ao longo de várias décadas (desde fins dos anos 1930 até fins dos anos 1960). É necessário levá-lo a sério, ao invés de ignorá-lo com o pretexto de que se trata de um adversário intelectual e político. Não é que este projeto tenha imposto diretamente as políticas neoliberais dos anos 1970-1980. As vias empreendidas pelos diferentes governos foram distintas, desde a ditadura militar de Pinochet, no Chile, que em alguns aspectos fez as vezes de laboratório, até os governos de Thatcher e Reagan. Mas, para além desta diversidade nas formas, o certo é que o projeto neoliberal não deixou de ser desde a origem um projeto antidemocrático, em todas as suas variáveis.

O jornalista e ensaísta estadunidense Walter Lipman, um dos inventores do neoliberalismo antes da Segunda Guerra Mundial, estava preocupado antes de tudo com a “ingovernabilidade” de algumas democracias submetidas” ao ditado das opiniões públicas”. Hayek não deixou de denunciar a onipotência do poder legislativo, para melhor opor a “demarquia” à “democracia”: a demarquia exclui a democracia na medida em que substitui as regras de direito privado e penal, como independentes de toda vontade legislativa. São estas regras as que devem guiar a vontade do próprio legislador. Desta forma, Hayek imagina uma corte constitucional superior a todos os demais poderes encarregados de velar pela intangibilidade destas “leis”.

No entanto, a corrente do neoliberalismo que, neste sentido, acabou sendo a maior e mais influente é, sem dúvida, a do ordoliberalismo alemão. A originalidade desta corrente, cujo fundador foi Walter Eucken, consistiu em que propôs desde muito cedo que se incluísse uma Constituição econômica na Constituição política de cada Estado, de maneira que se garantisse que qualquer política econômica respeitaria a inviolabilidade desses princípios constitucionais. Trata-se dos mesmos princípios que foram, na sequência, consagrados pela construção europeia: estabilidade monetária, equilíbrio orçamentário, concorrência livre e não viciada. Na Alemanha e na Europa, estes princípios inspiraram diretamente a criação de bancos centrais independentes, cuja função consiste em velar por eles, eventualmente contra a vontade dos governos e os parlamentos, e sempre contra a dos povos.

Em definitivo, aqui está o coração da lógica neoliberal: elevar as grandes orientações da política econômica acima de qualquer controle democrático, de maneira que todos os governos futuros ficam de mãos atadas de previamente, independentemente das alternâncias eleitorais. O que o neoliberalismo não tolera é simplesmente a democracia eleitoral sob sua forma mais elementar, assim como a divisão de poderes, pois ambas supõem um obstáculo para esta “constitucionalização” da política econômica. É com isto que nos deparamos hoje sob as mais diversas formas: um processo já bastante avançado de saída da democracia liberal-representativa, em benefício de um sistema de governança informal, que envolve tanto atores privados como estatais.

Estado-nação e neoliberalismo

Em toda a Europa, há um auge do nacionalismo, que vocês explicam como “o desejo de restaurar uma soberania perdida, fantasiada sobre um fundo nostálgico e reativo”. Mas, trata-se de um fenômeno uniforme? Por exemplo, na Espanha há setores de esquerdas muito envolvidos no processo independentista catalão. Expressa-se aí uma rejeição do Estado espanhol, a partir de uma perspectiva “social” e “progressista”. Veem alguma possibilidade de emancipação na via estatal-nacional?

Convém desconfiar da tentação da uniformização a que nos leva um uso indiferenciado dos termos nacionalismo e populismo. O nacional-populismo de um Donald Trump e o neofascismo de uma Marine Le Pen são, por exemplo, o produto direto de mais de 35 anos de dominação neoliberal e não colocam em questão, de maneira alguma, a lógica desta dominação. Representam, inclusive, uma forma agravada da mesma: desregulação financeira, redução dos impostos para os mais ricos, etc. O neoliberalismo se concilia bem com o nacionalismo xenófobo, assim como com muitos outros tipos de ideologias reacionárias, como podemos ver, hoje em dia, na Turquia e no Brasil.

Não podemos confundir sob o mesmo rótulo sumário as aspirações de constituir um Estado, por parte de povos que jamais dispuseram de um Estado independente (Escócia, Catalunha, País Basco etc.), com o nacionalismo reacionário que se desenvolve nas nações há tempo constituídas em Estados ou que exercem um controle sobre “minorias” a partir de um Estado que conquistaram na noite dos tempos. As aspirações nacionais dos povos escoceses e catalães não possuem o mesmo sentido que o nacionalismo expresso por ocasião do Brexit, que procede, por um lado, da nostalgia de uma grandeza perdida, que se trataria de restaurar e, por outro, do ressentimento de populações condenadas à pobreza e à relegação.

Contudo, não é menos certo que seria inútil alimentar a ilusão sobre a possibilidade de que um povo conquiste o direito ao autogoverno no interior da União Europeia, tal e como está construída desde suas origens. A estratégia que consiste em se apoiar na União Europeia para afrouxar o nó do Estado que nega todo direito nacional está condenada ao fracasso. É preciso entender que uma integração destas novas entidades na União Europeia não se daria em condições muito distintas daquelas que foram impostas às nações das quais fazem parte (Espanha, Grã-Bretanha). O que significa que estas nações (Catalunha, Escócia) não seriam “reconhecidas” a não ser na condição de se submeter à lógica ordo-liberal da União Europeia, o que conduziria, cedo ou tarde, a lhes privar de qualquer forma de autogoverno.

Em resumo, a ilusão estaria em acreditar que se pode proceder em dois tempos ou etapas: primeiro, uma união ecumênica orientada a conquistar a independência, que faria abstração das oposições entre interesses sociais antagonistas, e só depois, uma vez conquistada a independência, um confronto em torno das questões sociais entre os “irmãos” de ontem. É preciso evitar absolutamente a ilusão de uma grande família ou de uma comunidade soldada, preservada de toda conflitualidade interna. As oposições sociais devem emergir a partir do próprio interior do combate pelo reconhecimento dos direitos nacionais, a partir de hoje mesmo.

Qual seria então a alternativa? Que outra Europa podemos conceber (ao menos como horizonte) a partir do imaginário das políticas do comum?

É preciso abrir hoje mesmo a perspectiva de uma Federação democrática dos povos europeus por parte daqueles que combatem para conquistar o reconhecimento de seus direitos nacionais. Tal e como soube enxergar Castoriadis, em 1992, uma federação deste tipo não poderia ser democrática a não ser na condição de ser uma Federação de unidades políticas autogovernadas.

Ou seja, por um lado, o princípio da autonomia implica o direito de toda comunidade nacional a se organizar segundo a forma política que deseje, incluindo a do Estado-nação. Mas, por outro lado, este mesmo princípio de autonomia, que é válido para toda coletividade humana, implica a superação do imaginário do Estado-nação e a reabsorção da nação em uma comunidade mais vasta, que englobe, em último termo, a humanidade inteira. Um comum encerrado em fronteiras nacionais não é um verdadeiro comum: independente de qual seja sua escala e caráter (político ou socioeconômico), o comum está necessariamente aberto ao exterior e esta abertura deve se manifestar pela preocupação de integrar suas relações com as outras sociedades, em seu próprio funcionamento interno.

É preciso insistir neste ponto: o imaginário do Estado-nação não é um imaginário alternativo ao neoliberalismo. Se tal imaginário, distante de se ter diluído, se viu em grande medida reforçado nestes últimos anos, se deve em primeiro lugar à “maquinaria político-burocrática” que constitui a União Europeia. O impasse atual vem do fato de que, como dizia Castoriadis, certos povos já constituídos em Estados querem voltar à soberania nacional-estatal, enquanto que os outros estão preocupados sobretudo com a ideia de chegar a se constituir em uma forma estatal “independente”, sem importar o custo, nem o conteúdo. Mas, a concorrência entre soberanias, distante de fragilizar a lógica do neoliberalismo, não faz outra coisa a não ser alimentá-la e reforçá-la.

Velha e nova social-democracia

Poderíamos pensar a crise que, atualmente, o PSOE está atravessando como uma forma nacional particular da crise que afeta o conjunto da social-democracia europeia. A análise de vocês sobre essa crise é muito dura: afirmam que a social-democracia não foi uma vítima, mas um ator decisivo das políticas neoliberais, autodestruindo-se no processo.

A social-democracia europeia foi, e é mais ainda hoje, a primeira responsável em colocar em prática as políticas de austeridade. Assim, quando foi majoritária na Europa, em fins dos anos 1990 e inícios dos anos 2000, seus dirigentes agravaram a deriva anterior, ao invés de iniciar uma reorientação da política europeia. Procederam desmantelando sistematicamente o direito ao trabalho, pela via de uma maior flexibilização do mercado de trabalho (Blair, Schröder, Hollande, Renzi).

O exemplo da França é muito eloquente: muito cedo, ao longo dos anos 1980, sob a égide de Mitterrand, a social-democracia tomou a iniciativa da liberalização do setor financeiro, superando por esta via a muitos governos neoliberais, até o ponto de servir, às vezes, como treinamentos para estes últimos. Convertido desde princípios dos anos 1980 às virtudes da concorrência, Hollande não deixou por sua parte de sonhar em ser o Schröder francês, com o objetivo de deixar a lembrança de um homem de Estado corajoso, capaz de dominar a hostilidade da opinião pública.

Contudo, em geral, é o lugar histórico da social-democracia que está ameaçado, em razão do cerco institucional imposto pelo sistema neoliberal. Hoje em dia, a social-democracia se vê diante da seguinte disjuntiva: somar-se ou romper. Mas, somar-se é se condenar a morrer, tal e como mostra a experiência destes últimos anos, e romper é assumir o risco de um enfrentamento com o sistema, algo que lhe resulta igualmente insuportável. Seus dirigentes preferem se suicidar antes que resistir.

É necessário tomar de uma vez consciência deste fato: a social-democracia deixou de existir e ninguém poderá ressuscitá-la, já que o sistema destruiu todo espaço ou toda margem de manobra para que possa operar uma contra-força em seu seio. Sob este nome de “social-democracia” o que há, na realidade, são esquerdas neoliberais que, já de entrada, inscrevem sua ação no mesmo marco que as direitas neoliberais. Eis, aqui, por que a nós parece mais correto falar de uma “razão política única”, ao invés de um “partido único”.

A “nova política” apresenta, em certas ocasiões, a si mesma como “uma nova social-democracia”, uma social-democracia que seria “real” e não uma opção neoliberal disfarçada de esquerda. O que pensam desta possibilidade?

Preconizar a volta de uma “social-democracia real” é ilusório, por muito que pareça refletir a famosa fórmula dos Indignados: “Democracia real já”. Pois aquela fórmula devia sua força ao questionamento direto da democracia chamada “representativa”: significava no fundo que esta última não era “realmente” uma democracia e que a democracia, para ser real, implica a coparticipação de todos os cidadãos nos assuntos públicos. O princípio político que nós chamamos “o comum”.

O objetivo de constituir uma “social-democracia real” parte de uma constatação compartilhada por muitos: a velha social-democracia (o PSOE, por exemplo) já não seria realmente uma social-democracia, em razão de seu alinhamento puro e simples com o neoliberalismo. Essa constatação é certa, mas por que haveria que deduzir, daí, que é necessário ocupar o espaço que ocupava e que seu fracasso político deixou vacante? É muito melhor colocar em questão a possibilidade de reconstituir uma verdadeira social-democracia nas condições de transformação neoliberal das instituições estatais. A verdade é que esta transformação, devido a seu caráter irreversível, impede definitivamente qualquer retorno: pura e simplesmente, as margens de manobra que permitiram historicamente a social-democracia desempenhar seu papel deixaram de existir.

Já não podemos imaginar construir passo a passo, e sem sairmos do marco parlamentar, uma relação de forças que permita obter concessões em matéria de democracia social. Devemos lembrar que esta estratégia só pode funcionar nas condições próprias da democracia representativa clássica. Tal e como acreditamos ter deixado claro no livro, o neoliberalismo tende a esvaziar tal democracia de qualquer conteúdo. Sendo assim, em nome do combate por uma “democracia real” é preciso assumir esta impossibilidade de retornar à social-democracia.

Em outras palavras: é preciso escolher entre a “social-democracia real” e a “democracia real”. Querer a “social-democracia real” é correr atrás de uma miragem: ao final do caminho renunciaremos a “democracia real”, sem ter restaurado sequer a democracia representativa. Simplesmente, corremos o risco de nos adaptar passivamente ao marco antidemocrático que o neoliberalismo impõe, entrando assim na vida suicida da normalização política como um partido a mais. Porque na ausência daquela democracia em sua forma parlamentarista clássica, nenhuma social-democracia pode chegar a ser “real”.

Governar a partir do Estado e governar contra o Estado

'Podemos' e as candidaturas municipais se apresentaram nas eleições sob a bandeira de “colocar as instituições novamente a serviço das pessoas”. No entanto, uma das descobertas que fizeram muitos companheiros que chegaram ao poder político foi até que ponto as instituições não só são uma ferramenta que possa “se usar bem ou mal” (ao serviço das pessoas ou da oligarquia), mas que são “intrinsecamente neoliberais” em suas maneiras de pensar e atuar, de contratar e avaliar, etc.

A experiência da participação nas instituições políticas tem, com efeito, muito a ensinar a todos os que tenham a ambição de voltá-las contra a lógica neoliberal: percebe-se, em seguida, que estas instituições não são simples meios suscetíveis de servir em fins distintos e opostos, mas que foram redesenhadas mesmo em seu funcionamento e seus métodos de trabalho por décadas de racionalidade neoliberal.

As instituições não são neutras, não mais que o Estado em geral. Por conseguinte, a questão não é tanto entrar nas instituições para fazer delas armas no combate contra a oligarquia neoliberal, mas fazer das instituições um novo terreno de luta. Mas no concreto, para subverter a lógica do Estado e de suas instituições, que é no fundo uma lógica proprietária e monopolizadora.

Isto vale muito particularmente para os governos municipais, que devem construir uma relação de forças contra o Estado central, apoiando-se nos movimentos sociais e trabalhando na coordenação das municipalidades “rebeldes”, seguindo o exemplo do que colocou em marcha Barcelona em Comum.

Vocês utilizam a fórmula “governar contra o Estado”, o que significa?

O que a experiência da participação no poder do Estado demonstra de forma esmagadora é que aqueles que pretenderam tomar o poder para se servir dele como se fosse um instrumento neutro, acabaram por se tornar engrenagens de um poder de Estado convertido, por sua vez, em um fim em si mesmo, que funciona em prol de seu próprio reforço e perpetuação. Já está no momento de compreender que a administração do Estado obedece a uma lógica autônoma em relação à ação dos governos, cujo horizonte temporal é bastante mais limitado e que, nas condições atuais, esta lógica é uma lógica ao mesmo tempo burocrática e de gestão.

Um governo que se preocupe realmente em atuar no sentido dos interesses do povo deverá se dar conta disto. Deverá se apoiar nas iniciativas tomadas a partir de baixo, ou seja, impulsioná-las e favorecer sua coordenação, para quebrar, se for preciso, a resistência da administração pública e impor uma transformação das regras de funcionamento de tal administração, com o olhar posto em uma democracia que integre os cidadãos nos processos de deliberação e de decisão. O que nós entendemos por “governar contra o Estado” não é nem mais nem menos que isto: o Estado neoliberal não é o aliado natural de um governo democrático, mas, ao contrário, é um adversário cuja resistência só poderemos superar apoiando-nos nas mobilizações e nas experiências surgidas da própria sociedade.

O comum: uma nova imaginação política

Vocês afirmam que não é possível entender a força que tem o neoliberalismo, hoje, sem entender a grande impregnação de seu imaginário: como cala em nós sua promessa de liberdade, sua proposta do que é uma forma de vida desejável, etc. Falam da necessidade de opor a esse imaginário um imaginário alternativo. “Não há nada como a potência de um imaginário para fazer nascer o desejo de transformar o mundo”. Em que consiste esse imaginário alternativo? Trata-se de um relato ou de uma narrativa? Como suscitá-lo e estendê-lo?

O imaginário neoliberal se alimenta e se mantém através das práticas que fazem de cada um de nós um “empresário de si mesmo” em todas as esferas da vida. O comum é o princípio que deve presidir o advento de um novo imaginário e de um novo desejo. A única maneira de criá-lo e difundi-lo é partindo das práticas e invenções que se dão no cotidiano e trabalhando em favor de sua propagação. As histórias e os relatos não podem ter uma validade por si mesmos, independentemente das práticas, como se algumas belas fábulas edificantes pudessem propagar o desejo do comum.

Pela mesma razão de fundo, há que rechaçar todos os relatos que se apresentem como elementos de fabricação de uma “identidade populista”, a maneira de Laclau: o comum exclui, por princípio, qualquer clausura em torno de uma identidade e exclui a fortiori qualquer identidade construída pela identificação com um chefe ou líder carismático. São úteis, ao contrário, aqueles “relatos” e “histórias” que ajudem a ver, partindo sempre das experiências em curso, o que seria uma sociedade regida pela lógica do comum. Em uma palavra, trata-se de fazer destas experiências o combustível de uma nova imaginação política coletiva.

Vocês dizem que “o comum” é, no momento, uma “lógica minoritária”, mas devemos entender por isso que é uma lógica destinada a minorias? Na Espanha, há quem argumente que “o comum fica bem como lógica para os pequenos projetos experimentais, mas não para as complexas máquinas públicas como a saúde pública, etc.

É certo que está lógica é ainda, neste estágio, uma “lógica minoritária”, ou seja, uma lógica que não chegou a se impor sobre a lógica proprietária e empresarial, em toda a sociedade. Mas, este é precisamente o motivo pelo qual não se deve ceder em nenhuma vírgula nela. O comum tem a vocação de predominar em escala da sociedade, em seu conjunto, e, por conseguinte, também em escala de um sistema tão complexo como o da saúde pública: a democracia deve prevalecer em todos os escalões deste sistema, ainda que a tendência dominante seja, hoje, a constituição de grandes estruturas burocráticas dirigidas por especialistas gestores. Os especialistas têm seu lugar em uma democracia, mas não devem substituir a todos os atores deste sistema no momento de tomar decisões que incumbem às orientações a seguir em qualquer matéria de saúde pública. O exemplo das clínicas autogeridas na Grécia mostra que podemos contar com iniciativas que venham de baixo, impulsionando sua coordenação democrática.

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