Por: João Vitor Santos | 19 Abril 2017
Imagine uma casa recém construída, mas ainda inacabada. Mesmo sem a obra estar pronta, se decide mexer nos alicerces. Não é preciso entender de construção para saber que essa ideia de reforma pode acabar levando a casa abaixo. A metáfora serve para compreender a ideia da reforma trabalhista que, na perspectiva do professor no Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho – Cesit, José Dari Krein, é uma obra que vai ser custeada apenas pelo trabalhador e que ainda vai acabar sem morada. “Corremos os riscos de querer reformar algo que ainda sequer foi estruturado”, pontua ao recordar que a legislação trabalhista brasileira é algo ainda muito recente.
Dari encerrou a terceira edição do Ciclo de Estudos Saúde e Segurança no Trabalho na região do Vale do Rio dos Sinos, com a conferência Os desafios do trabalho no mundo contemporâneo no fim da tarde de terça-feira, 18-4. O evento é uma parceria entre Instituto Humanitas Unisnos – IHU, Sindicato dos Trabalhadores Mertalúgicos de São Leopoldo e região e Centro de Referência da Saúde do Trabalhador da Região do Vale do Rio dos Sinos e Canoas – CEREST. A ideia é trazer os trabalhadores para dentro do espaço da universidade para refletir sobre as conturbadas mudanças no mundo do trabalho. Nesse encontro com o professor Dari, a ênfase foi na proposta de reforma trabalhista que está em discussão na Câmara dos Deputados. “É surpreendente como a reforma da trabalhista é pouco discutida pela sociedade em comparação com a reforma da previdência. Essa segunda é extremamente impopular e o governo federal sabe disso. Por isso, até já vemos alguns recuos na previdência enquanto que a reforma trabalhista vai avançando sem promovermos uma discussão mais profunda”, alerta.
Mas o que está por trás dessa proposta de reforma? Para compreender, o professor recupera que a legislação trabalhista e mesmo o movimento sindical, assim como também a Justiça do Trabalho, vem de certa forma para colocar freios no avassalador avanço do capital sobre as forças de trabalho. “É uma contraposição ao movimento de coisificação da força de trabalho. Não se pode perder de vista que o trabalho está associado a vida das pessoas”, pontua. Assim, vem a terceira revolução industrial e a tecnologia parece chegar para aliviar jornadas e proporcionar outras rotinas e formas de relação com o trabalho. Só que não é isso que acontece. “O capital reage a tudo isso. Ele vira tudo para fazer as pessoas trabalharem mais. E como consegue isso? Através das reformas que são o avanço do capital nesse novo contexto do mundo do trabalho”, analisa Dari.
O professor Dari destaca que o discurso reformista no campo do trabalho não é novo. “Ele sempre surge num contexto de crise como pretexto de modernizar as relações de trabalho, mas não é isso que acontece”, adverte. Segundo ele, esse debate sobre a ideia da atual reforma ganha força a partir da crise de 2013. Porém, seus argumentos são reeditados ainda dos anos 90. Era o período em que o Brasil cedia espaço ao liberalismo sobre a égide da globalização. As conquistas do mundo do trabalho advindas da ainda recente Constituição de 1988 pareciam não combinar mais com o atual contexto. “É quando surge o discurso da necessidade de modernizar as relações de trabalho. Ou seja, estamos vivendo uma agenda velha. Mas, o que impressiona é a força com que vem sendo colocada”, sinaliza.
Para Dari os efeitos dessa reforma, caso aprovada pelo Congresso Nacional e sanciona pela Presidência da República, será de desagregação para muito além do mundo do trabalho. “Haverá uma desestruturação do tecido social muito maior do que a reforma da previdência”, compara. Isso porque, por exemplo, a jornada padrão de carga horária não serve apenas para normatizar o trabalho nas empresas. Ela também organiza toda a sociedade que estrutura, por exemplo, ofertas de atividades de entretenimento nos dias e horários habituais de descanso do trabalhador. “Há um impacto nas famílias, com alterações até nos seus horários de convivências”, completa.
Antes da conferência, Dari (segundo da esquerda para direita) participou de uma roda de conversa com trabalhadores (Foto: João Vitor Santos/ IHU)
Além disso, o professor denuncia a falácia dos argumentos, pois melhoram e modernizam um cenário apenas para o empregador, enquanto o trabalhador acaba fragilizado. “É o caso da terceirização, que entra nesse contexto de flexibilização. As categorias são desestruturadas e fragmentadas”, exemplifica. “Essa reforma nada mais é do que uma desconstrução de direitos e nada tem a ver com modernização. Veja o exemplo da questão do acordado sobre o legislado”, exemplifica. “E um detalhe: o próprio relator da matéria na Câmara já disse que a questão do imposto e contribuição sindical está sendo posto na discussão para mobilizar o debate nas centrais sindicais enquanto outros pontos vão passando”, acrescenta.
Por fim, Dari recorda que não há comprovação empírica de que as tais medidas na reforma vão se reverter em mais empregos. “No início dos anos 2000, por exemplo, não houve reforma e ocorreu aumento dos postos de trabalhos formais. As duas coisas não estão associadas. Há dados no mundo todo que comprovam isso”. Para o professor, o efeito final será sentido na saúde, na vida dos trabalhadores. “Veja o debate sobre a flexibilização das jornadas. Isso não foi regulamentado dessa forma por nada. Entretanto, hoje, já se vê que quem quer algum destaque na sua profissão é pressionado a trabalhar bem mais do que as 40 horas semanais. O que se quer é destituir oficialmente esse limite”, adverte e conclui: “tudo isso não está numa lógica de construir uma nação e sim um grande mercado”.
Ainda no início da tarde de terça-feira, o professor José Dari Krein participou de uma roda de conversa com trabalhadores ligados ao setor da metalurgia e da saúde, mais relacionada a segurança e saúde no trabalho. Foi nesse bate-papo que ele encontrou a costura para sua crítica sobre a paralisia do movimento sindical diante das ameaças da reforma trabalhista. Sua fala ecoa na queixa dos trabalhadores sobre as dificuldades de articulação e aderência de atuação do movimento. “Tudo isso [que está por trás da reforma trabalhista] é pano de fundo dessa relação capital X trabalho. Não conseguimos avançar sobre o capital na perspectiva do social. Como o movimento sindical pode fazer avançar nesse sentido?”, questiona Cléber Brandão, profissional da saúde e integrante do Centro de Referência da Saúde do Trabalhador da Região do Vale do Rio dos Sinos e Canoas – CEREST.
Cléber: "Não conseguimos avançar sobre o capital na perspectiva do social” (Fotos: João Vitor Santos/IHU)
Sentado na sua diagonal está Genilso Vargas, metalúrgico e integrante da direção do Sindicato dos Trabalhadores Mertalúgicos de São Leopoldo e região. Poucos instantes antes, o rapaz entra na sala do encontro ainda atônito. Um companheiro seu, dirigente sindical, acabara de ser demitido. Ainda tentando articular outros colegas para uma mobilização para tentar reverter a situação, ele lamenta: “mas é difícil. Provavelmente isso irá se resolver só na Justiça, mas o problema é que demora muito”.
A fala do líder sindical vai além da solidariedade a um amigo de lutas. Reflete a pouca adesão da entidade junto a categoria. “E uma das coisas que vai enfraquecendo o movimento é a própria atuação do movimento. Tenho que reconhecer”, pontua. Genilso também responde a uma provocação de Cléber que, minutos antes, aponta a partidarização dos sindicatos como mais um ingrediente nesse processo de fragilização. “Não sei se foi esse o melhor caminho, mas apostamos na militância político-partidária como forma de levar à frente algumas de nossas reivindicações”, justifica o metalúrgico.
E dirigindo-se para o professor Dari, Genilso reconhece, quase que pedindo uma orientação: “como movimento sindical, temos muitas dificuldades no mundo do trabalho hoje. Nas empresas, e mesmo na formação, se valoriza muito o individualismo e pouco as questões coletivas. Ainda temos dificuldades para compreender os jovens e as questões de gênero dentro do sindicato. Como fazer?”.
O professor Dari compreende que o sindicalismo ainda é a melhor forma de força para contrapor o capitalismo dentro da estrutura do mundo do trabalho. “A própria história do capitalismo, ao longo dos tempos no mundo, revela as experiências das sucessivas formas de subverter a lógica do capital”, completa. Ele recorda que ainda na Segunda Revolução Industrial se falava em crise do sindicalismo. “Mas se viu que era crise do modelo de sindicalismo que se vinha fazendo, do sindicato de ofício. É aí que se recupera uma antiga lógica e surge o sindicalismo mais geral, de atividades econômicas, de categorias mais gerais, o que chamamos de novo sindicalismo”, recorda.
No atual contexto do mundo do trabalho, da Terceira Revolução Industrial, ou Revolução Tecnológica, Dari reconhece fragilidades do movimento sindical. “Falta no sindicado um movimento mais social, um espírito mais aguerrido, voluntarista, uma vontade de querer promover uma transformação social e não só a manutenção de uma categoria”, destaca. Para ele, a partidarização, como destacada por Genilso, tem suas funções. É impossível se dissociar o movimento político do sindical, pois é sim um caminho para conquistas de demandas. “Mas a partidarização tem esse outro lado, da institucionalização. Ela traz alguns avanços, mas também a burocratização que significa afastamento da vida social da categoria”.
Entretanto, mesmo diante de um sombrio cenário, o professor enxerga uma janela de luz pela qual o movimento sindical pode ser iluminado. Mas para isso, destaca a necessidade de dois passos a serem cumpridos por um líder sindical do nosso tempo. “O primeiro é reconhecer a necessidade de se formar, para aprender mesmo e ampliar o horizonte para tentar pensar sobre essa complicada realidade do mundo. O segundo é estar aberto a dialogar com a base. É preciso estar próximo dela e saber ouvir. E necessariamente não é concordar com ela, mas saber ouvir e pensar em construir outros caminhos”.
Genilso: "temos dificuldades para compreender os jovens e as questões de gênero dentro do sindicato"
Mas como pensar em uma ação imediata? O professor sugere: “a principal tarefa é desarticular o golpe da reforma trabalhista”. Para Dari, essa deve ser a pauta número do movimento hoje. “Esse assunto não está sendo discutido como deve e o movimento deve usar isso para propor esse debate que não está sendo feito”, provoca, embora reconheça que a falta de credibilidade que atinge as diversas instituições também chega ao sindicado. “Mas é preciso enfrentar isso. Na luta contra a ditadura, a esquerda foi desmantelada, desarticulada. Mas é nesses momentos que nasce o novo. Houve uma articulação de movimentos que na década de 80 culminou no movimento sindical que originou outra esquerda”, recorda ao reconhecer que essa esquerda não dá mais conta de compreender a realidade do mundo hoje. “Mas quem sabe dessa crise de agora não sai algo novo?”, provoca.
Dari: “Mas quem sabe dessa crise de agora não sai algo novo?”
Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR, tem mestrado e doutorado em Economia Social e do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, onde atualmente é professor no Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho - Cesit.
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Os riscos de uma reforma trabalhista desestruturadora - Instituto Humanitas Unisinos - IHU