Por: Patricia Fachin | 05 Dezembro 2016
Apesar de a situação fiscal do Estado do Rio Grande do Sul ser “grave”, ela não pode ser “expressa somente por números”, e num momento de crise o que de fato importa, diz o economista Enéas de Souza, “é a forma como se enfrentam as contas públicas, ou seja, qual é a estratégia do Estado”. Nessa perspectiva, “um olhar sobre o déficit pela ótica do caixa é reduzir este olhar a um aspecto econômico”, critica ao comentar o pacote anunciado pelo governador Sartori no dia 21 de novembro deste ano. Uma estratégia de Estado, pontua, tem que levar em conta “os objetivos de posição, de desenvolvimento da economia e da sociedade e da cultura no concerto nacional”.
O economista pondera ainda que o pacote anunciado sinaliza a preocupação do governo com a atual situação fiscal, mas “preocupação não quer dizer que esteja propondo a melhor solução”, adverte na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Na avaliação dele, uma das dificuldades da proposta é que ela não trouxe a público “a transparência quanto às contas. Por exemplo, onde estão no exame as sonegações, as desonerações, os incentivos fiscais, as isenções, os subsídios? Existem outras perguntas quanto às contas públicas, por exemplo: qual é a estratégia para a dívida do Estado, como é a composição dos empréstimos, quais são os prazos da dívida, quem são os credores (entidades públicas, privadas, nacionais ou internacionais) etc.”
Na avaliação dele, que já esteve à frente de várias instituições estatais, a solução para resolver a situação fiscal do Estado perpassa uma “estratégia ampla e diferente”, como “partir da inserção do RS no Brasil e no mundo”, “atuar politicamente no Estado nacional para mostrar a insensatez desta estratégia de cortes públicos” e “reaver recursos que o Estado deixou de receber, como por exemplo, aqueles da Lei Kandir”, porque “só a recepção destes valores já resolveria definitivamente a dívida do RS”. E dispara: “O RS precisa, portanto, ter estratégia, ter um projeto de Estado - o que significa não apenas gerência de cortes do gasto público”.
Enéas de Souza | Foto: Luana Nyland
Enéas de Souza, economista, foi secretário de Ciência e Tecnologia do RS, subsecretário de Desenvolvimento e Promoção do Investimento do RS, presidente do BRDE, diretor de Planejamento da FINEP/Ministério de Ciência e Tecnologia.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a atual situação das contas públicas do Rio Grande do Sul?
Enéas de Souza - Ela é grave. Mas a situação não se expressa somente por números. O que importa é a forma como se enfrentam as contas públicas, ou seja, qual é a estratégia do Estado. E a estratégia parte de um ponto de vista. Assim, um olhar sobre o déficit pela ótica do caixa é reduzir este olhar a um aspecto econômico. E a estratégia leva em conta os objetivos de posição, de desenvolvimento da economia e da sociedade e da cultura no concerto nacional. Nesse ponto cabe, claramente, considerar as funções do Estado no contexto da história gaúcha e brasileira. Assim, tratar a questão pela diferença da receita e da despesa, o déficit no caso, é gerir a questão vendo o tema apenas pelo lado contábil – e contábil simples – da entidade pública.
IHU On-Line - O pacote anunciado pelo governo se justifica? Quais diria que são os prós e contras da proposta e em que medida ela é ou não adequada para enfrentar o problema das contas públicas do Estado?
Enéas de Souza - A justificativa do pacote é mostrar que o governo está preocupado com a situação. E de fato, ele está. Mas, preocupação não quer dizer que esteja propondo a melhor solução. É também difícil tocar a questão deste jeito, mesmo porque não veio ao cenário político a transparência quanto às contas. Por exemplo, onde estão no exame as sonegações, as desonerações, os incentivos fiscais, as isenções, os subsídios? Existem outras perguntas quanto às contas públicas, por exemplo: qual é a estratégia para a dívida do Estado, como é a composição dos empréstimos, quais são os prazos da dívida, quem são os credores (entidades públicas, privadas, nacionais ou internacionais) etc.
Desta forma, na inspiração de cortar, sobretudo no caso das fundações, há uma aparente ideia de que elas não têm lucro. E isto é algo curioso, porque, embora absolutamente necessários, outros órgãos e outras secretarias não têm lucro também. No entanto, são absolutamente necessários. Estas fundações, estas autarquias e estas empresas podem também ser indispensáveis porque representam algo decisivo para o Estado, já que formam uma maneira de gerir a realidade do Rio Grande.
O meu ponto de vista é o seguinte: essas instituições, estas empresas e estas secretarias não surgiram por acaso, elas surgiram em função de uma necessidade histórica, social, política e mesmo econômica. Há aspectos que travam a expansão da sociedade. Por exemplo, eliminar a Secretaria do Planejamento e a Secretaria da Cultura. Obviamente, a primeira é indispensável para dar ao RS uma estratégia completa que integre planejamento, infraestrutura, desenvolvimento econômico, atração de investimentos, agência de desenvolvimento, avanços tecnológicos, tratamento financeiro desta integração, incorporação das necessidades do setor privado, capacidade de negociação com o Estado nacional etc.
Já a Secretaria da Cultura pode aglutinar efetivamente um planejamento do campo cultural, integrando decisivamente a TVE, que, além de ser uma tv aberta, tem um papel importantíssimo na divulgação e na promoção de atividades culturais, exibindo concertos, promovendo a apresentação da cultura gaúcha, incluindo literatura, teatro, dança, cinema, música, arquitetura. É uma emissora que tem programas exclusivos sobre a cultura negra. Não se pode excluir a FM Cultura, onde a nossa MPB encontra acolhida, além da música erudita.
Naturalmente, algumas instituições careceram, ao longo do final do século XX e do início do século XXI, de investimentos financeiros, de recursos humanos, de equipamentos, de treinamentos avançados etc. E até mesmo de atualização em função das novas realidades vigentes.
Dou um exemplo: a CIENTEC, que é uma organização de excelência, pode ser efetivamente conduzida a tratar de novas realidades, como as novas tecnologias de comunicação e informação, que vão hegemonizar a realidade histórica da presente etapa da 3ª revolução industrial. Este fenômeno vai se expandir e vigorar nas próximas décadas.
IHU On-Line - O governo do Estado argumenta que as medidas irão gerar uma economia de 146,9 milhões por ano. O que esse tipo de economia representaria no atual momento?
Enéas de Souza - Economia duvidosa, porque o Estado teria que fornecer alguns serviços mesmo com a suspensão dessas atividades. E perderia muito, pois teria abdicado de atuar na direção, na organização e no planejamento destas atividades fundamentais. Perderia inclusive a oportunidade de atualizar, modernizar, planejar, propor novos caminhos tanto para a estrutura do Estado como para o Rio Grande do Sul, e até mesmo para o Brasil, como em outros momentos já oportunizou.
IHU On-Line - Outro argumento do governo é que o Estado deve ser modernizado para atender às pessoas de modo mais eficiente. O que seria um modelo de Estado adequado para dar conta da demanda da população, por exemplo?
Enéas de Souza - Ninguém é contra a eficiência. Mas dizer que modernização começa com corte de funcionários, cortes de investimentos nestes serviços, é um problema. Um menor número de funcionários não é necessariamente mais eficiente. Que existem distorções amplas no setor público é evidente. Só que a minha experiência como secretário de Estado mostra algo diferente. Existem em muitos setores, para não dizer em quase todos, carência de pessoal, sobretudo bem qualificados e com experiência. Basta ver no setor de meio ambiente, no setor de transporte etc.
A racionalização e a eficiência do Estado não começa com o corte. Começa com a estratégia. E a estratégia do setor público deve seguir uma estratégia que atenda os interesses econômicos, tecnológicos, sociais e culturais da sociedade e do Estado gaúcho. É preciso estar dentro do seu tempo. Estamos num momento de grande mutação tecnológica de um mundo também governado pelas finanças. Estamos às vésperas de uma mutação civilizacional. E ficarmos pensando só pela ótica da despesa vai nos defasar mais ainda desta grande corrente tecnológica e financeira, que vem vindo, já está aí, e vai mais ainda transformar o mundo.
IHU On-Line - Entre os órgãos que o governo pretende extinguir, está a Fundação de Economia e Estatística - FEE. Como o senhor avalia a proposta de extinguir um órgão como esse?
Enéas de Souza - A FEE é uma grande instituição, um dos núcleos de inteligência do Estado, capaz de pensar propostas econômicas, financeiras, fiscais, sociais, e até mesmo culturais (caso da indústria criativa) para o RS. Primeiro, porque a FEE - como lembra Paulo Fiori, que foi diretor do BRDE - tem a capacidade de participar de grandes projetos para o RS. Veja-se o momento do polo petroquímico. Durante o quadragésimo aniversário da Fundação, seu primeiro presidente, Rudy Braatz, destacava a presença marcante da FEE naquele episódio decisivo para o nosso desenvolvimento. Outro grande projeto no qual a FEE participou junto com a CIENTEC – absolutamente imprescindível na questão tecnológica, obviamente com novos projetos e investimentos – foi a eletrônica embarcada. Ou seja, a FEE tem capacidade de articulação com o desejo e as pretensões da sociedade e do Estado rio-grandense. Sempre apta a participar na realização dos sonhos dos gaúchos.
Há um segundo ponto: a FEE tem uma integração com inúmeras instituições regionais e nacionais, capaz de participar em incontáveis projetos setoriais. Isto porque ela tem uma base dupla, onde acumulou 43 anos de experiência. Claro, na parte estatística, onde além de coletar e formatar dados, construir índices, calcular o PIB-RS, etc., produz tudo de modo fidedigno, com grande confiabilidade. E, sobretudo, com isenção política. A FEE sustentou sempre o seu trabalho com idoneidade e imparcialidade.
Mas há que ver que a FEE tem uma capacidade de análise e de interpretação de dados imensa. Estudos, ensaios, análises gerais e setoriais diversificadas fazem parte do seu cotidiano. Por exemplo, os famosos “25 Anos de Economia Gaúcha” dos anos 1970, analisando os setores industrial, agrícola, de serviços, foram inestimáveis para vários governos, inclusive para o governo de Pedro Simon (PMDB). Todas as direções da entidade marcaram pontos fazendo trabalhos analíticos, atualizando, administração por administração, os aspectos macroeconômicos gerais e setoriais do RS.
Recentemente, no governo de Yeda Crusius (PSDB), foi feito outro trabalho importante, “Três Décadas de Economia Gaúcha”. E sempre renovando o nível de análise. Nesta última avaliação, o RS é visto dentro da economia nacional e internacional. Todos estes trabalhos, essas pesquisas, estas avaliações foram realizados com custo ínfimo, muito abaixo de qualquer consultoria. E com uma vantagem adicional: a FEE mantém, como falou João Carlos Brum Torres, duas vezes secretário de Planejamento, o conhecimento da continuidade do processo que ela acompanha e analisa ao longo do tempo. Por isso, o economista da URFGS Pedro Fonseca tem razão quando afirma que a FEE tem respeitabilidade no Brasil inteiro.
E temos algo mais, a FEE teve a capacidade de principiar a transição de uma geração para outra no governo passado, constituindo uma nova FEE, inclusive baixando o custo de seus trabalhos, diminuindo o número de funcionários etc. Isso sem deixar de produzir um relevante estudo considerando o Rio Grande em 2030. Portanto, a extinção da FEE será um equívoco, tanto se considerada individualmente, como se vista numa outra visão de planejamento, sobre a qual já falamos acima.
Quanto ao argumento de que os trabalhos elaborados pela FEE poderiam ser feitos por consultorias privadas, a pergunta decisiva é: qual ou quais consultorias seriam capazes de fazer o que a FEE faz com eficiência, idoneidade, rigor metodológico, correção, isenção política e isenção em relação à própria concorrência empresarial etc? Isso sem contar com a capacidade de acompanhar a continuidade dos múltiplos processos da sociedade gaúcha, no percorrer de anos e décadas. Sua experiência é sólida. Nenhuma consultoria é capaz de ter esta experiência. E mais, todas essas consultorias, quando contratadas para fazerem algum trabalho, não só usaram dados, mas inclusive técnicos da própria FEE.
Cabe não esquecer as palavras de Aod Cunha, que foi presidente da FEE e secretário da Fazenda: “Sem a FEE não tenho dúvida de que o Estado acabará contratando um número muito maior de consultorias privadas por um custo maior”.
É preciso, por fim, salientar ainda que a FEE é a herdeira do Departamento Estadual de Estatística, o que quer dizer que acumulou um tal nível de conhecimento e de experiência que é bastante raro no Brasil, já que é secular. A FEE é um patrimônio do Estado do RS.
IHU On-Line - O que seria uma alternativa adequada ao pacote anunciado pelo governo Sartori?
Enéas de Souza - É partir de uma estratégia ampla e diferente. Partir da inserção do RS no Brasil e no mundo. Insistir nesta estratégia. E atuar politicamente no Estado nacional para mostrar a insensatez desta estratégia de cortes públicos. E mais, no nosso caso, para reaver recursos que o Estado deixou de receber, como por exemplo, aqueles da Lei Kandir. Como diz o economista André Scherer, só a recepção destes valores já resolveria definitivamente a dívida do RS. Ou seja, a estratégia do corte não vai servir para o Estado, porque vão acabar com fontes de estudos, pesquisas, projetos, propostas, planejamentos, cultura etc. Ao par, seria necessário fazer um projeto financeiro-desenvolvimentista-tecnológico para o momento atual da economia de mercado, que obviamente considerasse a questão contábil do caixa. Mas os problemas de caixa estariam subordinados a um projeto global para o RS.
De qualquer forma, a extinção de uma entidade é um gesto de alto teor político, econômico e social. Por isso, teria que ser muito bem discutido dentro e fora do Estado. Dentro, com as direções destes órgãos, com seus técnicos, com outros órgãos de governo, e fora com a sociedade regional, inclusive prefeituras, e também com o Brasil em determinados casos.
Há que ver que o fundamental para o país e para a nossa região é o gasto público, que ativará toda a economia brasileira e gaúcha, já que o gasto público não só vai dar investimento, emprego, transformação tecnológica, expansão cultural etc. como vai inclusive aumentar a arrecadação. Um governo que não gasta não só afeta toda a economia privada, como também é um governo que atinge a própria economia pública. O resultado é que acaba por arrecadar cada vez menos, já que instala o reforço continuado da recessão, podendo atingir a depressão.
O RS precisa, portanto, ter estratégia, ter um projeto de Estado - o que significa não apenas gerência de cortes do gasto público. Trata-se de agir politicamente no espaço nacional para que uma solução de caráter global passe pelos estados. Claro, controlando o gasto como medida salutar, mas não dando a falsa ideia de que o corte vai salvar o Estado e nos dar uma estratégia, uma consolidação e um avanço na nossa posição na economia brasileira. Precisamos de um avanço modernizante no planejamento, nos projetos e na organização estatal. Mas a modernização não pode ser uma palavra vaga. Corte não é modernizar, nem alcançar necessariamente mais eficiência, sobretudo no setor de serviços. Só um projeto de nação, um projeto de Estado vai nos colocar no centro de uma situação progressiva e de recuperação dos grupos sociais do Rio Grande do Sul.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Enéas de Souza - Acho que é um bom momento para uma reflexão e um diálogo do Estado, da sociedade, da política, da economia e da cultura no Rio Grande do Sul. Momento decisivo para o futuro que está começando agora. A estratégia, o esboço e o desenho dele iluminarão melhor as decisões do nosso presente.
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A eficiência do Estado não começa com o corte, mas com a estratégia. Entrevista especial com Enéas de Souza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU