Por: André | 11 Outubro 2013
Gerd-Rainer Horn (na foto) é professor de História Política no Instituto de Estudos Políticos de Paris, doutor da Universidade de Michigan. Especialista em história política europeia, publicou sobre o tema The Spirit of ’68: Rebellion in Western Europe and North America, 1956-1976 (Oxford University Press, 2007). Autor de diversos livros, entre outros de Western European Liberation Tehology, 1924-1959: The First Wave (Oxford University Press, 2008), e está preparando um livro intitulado The Spirit of Vatican II: Western European Left Catholicism in the Long Sixties, 1959-1980. Suas obras, pioneiras, são decisivas para a compreensão do catolicismo de esquerda e da influência da Teologiada Libertação sobre os movimentos sociais de 1968.
Fonte: http://bit.ly/1d5fjwU |
A entrevista é de Ruggero Gambacurta-Scopello e publicada no jornal francês Le Monde, 11-09-2013. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Como você define o conceito de “esquerda católica” na Europa?
Para mim, as definições são subjetivas. Do ponto de vista histórico, o fenômeno começa nos anos 1920 e se amplia nos anos 1930, com um primeiro pico nos anos 1940, antes de diminuir e voltar a ganhar força nos anos 1960-1970. Podemos dizer que o católico de esquerda é alguém que participa dos movimentos sociais progressistas católicos e seculares.
Nos anos 1940, essa corrente não adquire somente visibilidade, mas também uma certa influência, por causa das circunstâncias ligadas à Resistência. Com efeito, nesta ocasião e pela primeira vez, os católicos encontram-se do mesmo lado que os radicais de esquerda, os socialistas e comunistas. Eles descobrem assim as diferentes ideologias: antes da Primeira Guerra Mundial – e mesmo no entre-guerras – o meio católico não teve ligações com o meio socialista.
A principal fonte da esquerda católica na primeira metade do século XX – e mesmo depois – era a Ação Católica Especializada e um dos ramos era a Juventude Operária Católica. Na Bélgica, o abade Joseph Cardijn (1882-1967) fundou, em 1924, a Juventude Operária Católica (JOC). Certamente, no começo, esse movimento não tinha nenhum caráter progressista; seu objetivo era acima de tudo atrair a juventude belga, operária e secularizada, à religião.
Em que sentido a Ação Católica Especializada é um projeto “de esquerda”?
Era, para dizer a verdade, um esforço conservador que provinha da cúpula da hierarquia: a intenção da Ação Católica Especializada – e da Ação Católica tout court – era recuperar os fiéis, e não de radicalizá-los para a esquerda. Desde o começo da JOC, queria-se que os jovens operários decidissem por si mesmos suas ações e o trabalho missionário que fariam; queria-se igualmente que tivessem uma autonomia de ação na sociedade. Lembremos que o lema da JOC belga era: “Entre eles, para eles e por eles”. Na França, com a Frente Popular, a orientação para uma maior autonomia dos jovens operários cristãos provocou um impulso para a esquerda, mas isso foi uma consequência involuntária. Se algumas lideranças das organizações da Ação Católica Especializada já tinham talvez pensado nisso, esse não foi o caso das grandes figuras fundadoras do movimento, como Joseph Cardijn e o francês Georges Guérin (1891-1972).
Mesmo na Itália mussoliniana, a Ação Católica deu origem a muitos desdobramentos não desejados. É necessário precisar, com efeito, que a Ação Católica era mais ou menos a mesma nos diversos países, o que conferirá, de maneira deliberada ou não, mais autonomia aos leigos. Esses últimos teriam um papel mais ativo na Igreja que no passado e isso, em algumas circunstâncias, desembocou em uma orientação política de esquerda. De fato, a Ação Católica ganhou importância na Igreja antes de se radicalizar, e antes que começasse um processo subversivo involuntário.
Como explica o lado transnacional desses movimentos?
Na minha opinião, isso se explica pelo fato de que o catolicismo é, por natureza, transnacional. A Ação Católica Especializada na classe operária nasceu com Joseph Cardijn em Bruxelas, expandiu-se em Flandres e em Wallonie, e quase imediatamente influenciou o norte da França. Após esses sucessos, uma dinâmica favorável à sua implantação deu-se em outros países. As ligações pessoais também contaram: o fundador da JOC francesa em Clichy, o padre Georges Guérin (1891-1972), descobriu a existência da JOC belga através das publicações impressas na Bélgica e solicitou outros materiais para conhecer melhor esse movimento, do qual passaria a ser o assistente para a França. A Juventude Operária Católica, a Juventude Estudantil Católica, assim como outros ramos da Ação Católica Especializada para os diferentes meios sociais, criou raízes na Espanha, em Portugal, na Alemanha, na Suíça ou na Itália, embora não de maneira absolutamente concomitante – e, na maioria dos casos, apenas depois da Segunda Guerra Mundial.
Em todo o caso, a rede internacional teve um papel essencial: não eram movimentos organizados fora da Igreja católica, mas dentro dela. Foi por isso que a transnacionalização foi tão rápida.
Você pode nos explicar por que, no título do seu livro, 'Western European Liberation Theology, 1924-1959: The First Wave', você precisa que examinou a first wave, a “primeira onda”?
O conceito da Teologia da Libertação nasceu em 1968, portanto, após o fim da primeira onda descrita no meu livro. Eu quis dar um título um pouco polêmico e sublinhar que movimentos como, por exemplo, a Teologia da Libertação latino-americana, que ganharam uma grande visibilidade internacional entre os anos 1970 e 1990, tinham, na realidade, raízes mais antigas no velho continente. Muitas das ideias que inspiraram os movimentos católicos de esquerda da América Latina vêm da Europa.
A geração de que falo no meu livro – aquela representada pelos teólogos Jacques Maritain (1882-1973), Emmanuel Mounier (1905-1950) e Louis-Joseph Lebret (1897-1966) e ainda pelos numerosos outros pensadores francófonos – está na origem de conceitos que foram depois retomados na América Latina. A Teologia da Libertação é, certamente, um movimento autônomo em si, mas não totalmente. Por exemplo, o teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, que estudou em Lovaina, em Paris e em Roma, afirmou que tinha se inspirado na experiência dos padres operários franceses e belgas quando era estudante, no começo dos anos 1950. O mesmo vale para o teólogo brasileiro Leonardo Boff, que fez seus estudos na Universidade de Munique, onde se encontrava em 1968. Também aí se encontravam teólogos europeus – que se tornaram figuras chaves do movimento da Teologia da Libertação latino-americana – como o espanhol Jon Sobrino ou o belga Joseph Comblin, autor de livros influentes cujos títulos expressam por si só um programa: Teologia da revolução e Teologia da prática revolucionária.
Mas, quando eu falo de “primeira onda” e de “segunda onda”, faço referência às realidades europeias. O segundo livro sobre esta temática, no qual estou trabalhando (The Spirit o Vatican II: Western European Left Catholicism in the Long Sixties, 1959-1980), é a sequência natural do primeiro. O primeiro livro cobre o período que vai de 1924, data da criação da JOC belga, até o Concílio Vaticano II. O segundo, ou “a segunda onda”, estende-se do começo do Vaticano II (1962-1965) até o final dos anos 1970.
Na primeira onda, a importância dos católicos de esquerda aumenta até meados dos anos 1940, depois diminui, por várias razões. É preciso saber que a hierarquia francesa da Igreja – encorajada por Roma, certamente! – interrompe a experiência dos padres operários em 1º de março de 1954. Havia nessa época 100 padres operários na França e 12 na Bélgica. A hierarquia os obriga a deixarem a fábrica, o que colocou um fim ao seu projeto de vida. Paradoxalmente, é esta mesma hierarquia que os havia apoiado nos anos 1940.
Os padres operários são “padres vermelhos”?
Ao frequentarem a fábrica, esses padres, que compartilhavam a vida dos trabalhadores com a finalidade de trazê-los ao catolicismo, descobriram um mundo desconhecido, com suas ideologias e seus sindicatos. Se esses padres não se tornarão comunistas ao menos se aproximarão dos ideais da esquerda – o que desagradou fortemente os bispos.
Nos anos 1950, a hierarquia reprimiu esta nova teologia à qual Emmanuel Mounier, que nós já mencionamos, mas também os teólogos dominicanos Marie-Dominique Chenu (1895-1990) e Yves Congar (1904-1995) – que, de certa maneira, eram radicais – tinham dado o seu aval. Esses teólogos concederam mais espaço aos leigos na Igreja, o que se concretizará nos grupos de oração ou nos grupos de discussão sobre os textos, entre outros. No decorrer dessas reuniões, discutia-se sobre o compromisso dos cristãos na sociedade.
Esses teólogos também foram sancionados por Roma e alguns de seus livros postos no índex – o que foi o caso de duas obras de Chenu. Eles foram forçados ao exílio: Congar, que terá um papel importante no Vaticano II, teve que deixar Paris em 1954 para exilar-se em Jerusalém, onde ensinará na Escola Bíblica. Um ano depois, porém, volta para a Europa e instala-se em um mosteiro de Cambridge, onde viveu numa semi reclusão – um “cativeiro”, segundo suas próprias palavras. Chenu, personalidade de importância, que também foi uma das colunas do Vaticano II, conheceu o exílio em Rouen – o que não parece ser comparável à Sibéria, mas que o afastou, porém, do laboratório de ideias do Saulchoir, o mosteiro dos dominicanos em Étiolles, no sul de Paris.
Como nasceu a segunda onda?
A segunda onda inspira-se largamente no Concílio Vaticano II. O catolicismo de esquerda existiu antes, mas estava na defensiva: os católicos não podiam escrever livremente e os padres operários suscitavam desconfiança. O Vaticano II insuflou um espírito novo: a hierarquia toma uma série de medidas e ofereceu a esta geração um novo impulso, uma abertura ao mundo e ao futuro. A convocação do concílio foi decidida pessoalmente por João XXIII (1958-1963). O Sumo Pontífice foi eleito especialmente graças ao seu caráter mais moderado que aquele de seu muito conservador predecessor, Pio XII (1939-1958) e ao seu domínio da diplomacia da Santa Sé. O Vaticano II redescobriu a questão social para a Igreja. Os católicos de esquerda tinham, nesse momento, a impressão de que a hierarquia estava do seu lado, o que lhes daria asas. Alguns teólogos, como Chenu e Congar, foram chamados do exílio para assumirem um papel de conselheiros em Roma.
O concílio abriu perspectivas inéditas à primeira geração de católicos de esquerda, que estava na defensiva desde ao menos cerca de 10 anos. Isso resultou, entre outros, em um florescimento de comunidades católicas de base, na Itália, na Espanha, na França e em outros países. Na França, seu número foi multiplicado após 1968, ao passo que na Itália esse movimento já tinha começado em 1964. No entanto, o Vaticano II não é o resultado da primeira onda. A segunda onda era, sobretudo, animada pelas novas gerações de teólogos e militantes.
Mas rapidamente surgem medos, porque o impulso dado pelo Vaticano II fugiu do controle da hierarquia. Quando cerca de 60 seminaristas ocuparam o Seminário Maior de Derio, perto de Bilbao, em 1968, e algumas comunidades de base ocuparam catedrais e começaram a desafiar abertamente a hierarquia da Igreja, as apostas se endurecem. A repressão continuou inegavelmente depois do Vaticano II, mesmo que a hierarquia tivesse manifestado no começo mais tolerância que no passado. O próprio João XXIII e outros estavam muito próximos dos militantes. A lua de mel entre as autoridades religiosas e os católicos de esquerda termina entre 1968 e 1969, por causa da radicalização dos movimentos sociais. Paulo VI (1963-1978) – que também mantinha laços de amizade com os teólogos militantes – começou a ter medo. Assim, de 1968 a 1973, a segunda onda atingiu seu auge, encontrando cada vez mais dificuldades nas suas relações com Roma. A partir de 1973, assiste-se a um recuo do catolicismo de esquerda.
Todos os países foram igualmente penetrados pelo “espírito do Vaticano II”?
Sim, embora de maneira desigual. Um bom exemplo do impacto da segunda onda em escala europeia foi a experiência dos padres operários. Na primeira onda, o movimento limitou-se estritamente à França e à Bélgica. Em 1965, os bispos e os arcebispos decidiram autorizar novamente a experiência dos padres operários. Na França e na Bélgica, a partir de 1968, esses últimos, que haviam sido reprimidos em 1954 e em 1955, viram crescer consideravelmente seus efetivos. Em 1974, na França, havia mais de 700 inscritos na arquidiocese, contra 100 nos anos 1950. Na realidade, o número de padres que iam às fábricas era muito maior. Mas a experiência dos padres em macacões azuis tornou-se igualmente um fenômeno transnacional e não mais somente franco-belga.
Em geral, podemos dizer que a segunda onda do catolicismo de esquerda foi muito mais forte que a primeira. E a França não era mais necessariamente o exemplo por excelência da segunda onda. A Itália exerceu um papel importante nesta nebulosa de dissidentes católicos dos países democráticos do leste europeu. Mas, depois da segunda onda, nos anos 1960, sobretudo, a Espanha também adquiriu um papel fundamental sob a ditadura de Franco. A nova onda espanhola era, de início, animada principalmente pelos militantes católicos. O catolicismo de esquerda participou muito ativamente dos movimentos sociais operários e estudantis espanhóis. Eu já mencionei o caso da ocupação de um Seminário Maior no tempo em que a hierarquia católica espanhola estava firmemente do lado de Franco. O ditador chegou inclusive a construir uma prisão especial em Zamora para os padres rebeldes.
Se nos voltarmos para os Países Baixos, constatamos que eles colocaram um problema maior ao mundo católico. Com efeito, a hierarquia eclesiástica holandesa, sobretudo a sua ala moderada, estava quase inteiramente do lado dos católicos de esquerda, ao passo que em outros países a tendência era a contrária. Nas discussões sobre o Vaticano II, o Catecismo Holandês, publicado em 1966 pela Conferência Episcopal dos Países Baixos, deu lugar a infinitas controvérsias. A hierarquia, que se encontrava “à esquerda do centro”, deu o imprimatur a esse documento que, mais que inovador, não era tão subversiva como se pretendia. Em consequência, o catolicismo de esquerda nos Países Baixos pôde se desenvolver quase sem entraves, ao menos inicialmente. Vou dar um exemplo. Além do movimento dos padres operários, havia um outro, formado por padres contestatários ainda mais numerosos que esses últimos, também ele de caráter transnacional. Na França, tratava-se dos padres organizados pela rede Échanges et Dialogue ou, na Itália, por Sette Novembre. Mas era nos Países Baixos que esse movimento – com o nome de Septuagint – reunia o maior número de padres, por causa do seu número relativamente pequeno num país de porte médio.
Qual foi o impacto dos católicos de esquerda sobre os movimentos sociais?
Não devemos subestimar a contribuição do catolicismo de esquerda nas manifestações estudantis e nos movimentos operários daqueles anos. Quando procuramos traçar um perfil dos militantes, a gente se dá conta da contribuição muito forte do catolicismo de esquerda, seja na França, na Bélgica, na Itália ou na Espanha – embora, nesses três últimos países, a contribuição foi sem dúvida maior.
Um símbolo: na fábrica de relógios Lip de Besançon, eclode uma revolta em 1973-1974 contra a administração e uma greve massiva se seguiu. Os operários ocuparam a fábrica e a autogeriram durante nove meses, continuando a produzir e vender relógios. Esse movimento social teve um enorme impacto não somente em escala nacional, mas também europeu. Tratava-se, com efeito, da primeira experiência de autogestão de uma fábrica pelos operários. Ela teve o apoio do arcebispo de Besançon e foi liderada, entre outros militantes de origem católica, por um padre operário, Jean Raguenès. Esse frei dominicano foi capelão de algumas faculdades parisienses no momento das barricadas do bairro latino em maio de 1968; em 1971, decidiu mudar-se para Besançon onde encontrará um emprego como padre operário na Lip. Raguenès morreu em 2013 em São Paulo, tendo consagrado a segunda parte da sua vida à luta contra o trabalho escravo na Amazônia.
Para concluir, eu não estou dizendo que, sem o catolicismo de esquerda, o maio de 1968 não teria acontecido, mas trata-se de um ator muito importante e pouco estudado e que merece a nossa atenção.
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“Os católicos de esquerda exerceram um papel importante no Maio de 68”. Entrevista com Gerd-Rainer Horn - Instituto Humanitas Unisinos - IHU