25 Mai 2018
"O mais grave é que a politização das migrações significa, em grande parte dos casos, a criminalização dos migrantes, especialmente após os atentados de 11 de setembro em New York. O caso mais emblemático foi a eleição de Donald Trump à Casa Branca, nos USA. Com isso, ressurgem com força as políticas de deportação dos imigrantes irregulares e de restrição à entrada de novos imigrantes. Mas ressurgem igualmente os movimentos neofacistas e neonazistas, bem como suas atitudes de aberta discriminação, hostilidade e xenofobia", escreve Alfredo J. Gonçalves, padre carlista, assessor das Pastorais Sociais, 18-05-2018.
O tema Migrações e Fronteiras ocupa atualmente amplos espaços na mídia, na opinião pública, nos debates políticos e nas redes sociais. Aqui, mais do que um estudo propriamente dito sobre a mobilidade humana, pretendo desenvolver alguns elementos para uma leitura aproximada dos deslocamentos de massa nos tempos atuais. Elementos de caráter provisório e fragmentário e que, por isso mesmo, num segundo momento, podem e devem ser complementados pelas experiências concretas de quem trabalha mais de perto nessa realidade. Permitam-me começar com dois rápidos passos atrás, para, em seguida, entender o fenômeno das migrações nos dias de hoje.
O primeiro passo atrás nos leva ao século XIX e início do século XX, contexto da Revolução Industrial, com seus efeitos e implicações e efeitos. Em termos de mobilidade humana, alguns números ilustram esse momento de “mudanças rápidas e profundas”, para usar uma expressão extraída da Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II Gaudium et Spes (GS, 1965, nº 4). Segundo os principais historiadores da época, entre 1820 e 1920, cerca de 65 a 70 milhões de pessoas deixam o velho continente europeu, com destino às terras novas das Américas, Austrália, Nova Zelândia. Limitando-nos à Península Italiana, entre 1815 e 1915, nada menos do que 25 milhões emigraram de seu território. Na década de 1901 a 1910, a média anual de emigrados é de 600 mil. O ano de 1913, por sua vez, representa o recorde de saídas: mais de 850 mil pessoas (Cfr. Livro O Mediterrâneo do historiador francês Ferdinand Brudell). Em menor ou maior grau, vários países sofreram a mesma hemorragia: Irlanda, Inglaterra, Alemanha, Espanha, Portugal, entre outros.
Outros historiadores batizaram o século XIX como “século do movimento”. Movimento entendido em duplo aspecto: de pessoas, seja do campo para a cidade quanto em direção de outros continentes; e de máquinas, como o trem, os carros, os navios, e mais tarde o avião. No que diz respeito às consequências sociais da Revolução Industrial, por um lado, e aos deslocamentos humanos de massa, por outro, duas personagens se cruzam e se entrelaçam na passagem do século XIX para o século XX: o então Papa Leão XIII e o bispo de Piacenza, norte da Itália, João Batista Scalabrini. Enquanto o primeiro preocupava-se com a exploração exacerbada dos operários, nas fábricas que se erguiam por toda parte, o segundo tinha os olhos voltados para os que sequer conseguiam emprego no velho continente, vendo-se obrigados a atravessar o oceano Atlântico em busca de melhor futuro.
Em 1887, Scalabrini funda a Congregação dos Missionários de São Carlos, com o fim de acompanhar os emigrados italianos por todo o mundo. Em 1895, juntamente com Madre Assunta e Pe. Marchetti, funda a Congregação das Irmãs de São Carlos, com a mesma finalidade. No decorrer dos tempos, ambas as Congregações iriam ampliar seu campo de ação, no sentido de atender a todos os migrantes, prófugos, refugiados, expatriados, marinheiros, itinerantes, enfim, todo o mundo da mobilidade humana.
Convém não esquecer que já antes disso, havia fundado um Instituto de Leigos em favor dos direitos dos emigrantes.
Em maio de 1891, exatamente a meio caminho entre a fundação de uma e outra dessas Congregações, o Papa Leão XIII publica a Carta Encíclica Rerum Novarum (sede de coisas novas), sobre a condição dos operários, mesmo tema do estudo de F. Engels, em 1844, também ele a respeito da condição da classe trabalhadora na Inglaterra. Voltando à Rerum Novarum, a carta passará para a história como o documento inaugural da chamada Doutrina Social da Igreja. Enquanto a Igreja, na pessoa do Papa, se sensibiliza com a situações dos trabalhadores e trabalhadoras no velho continente, Scalabrini se vê interpelado por aqueles que, impossibilitados de encontrar trabalho na Europa, cruzam os mares em direção às novas terras. Resulta que a sensibilidade e solicitude pastoral da Igreja para com os operários nasce contemporaneamente à sensibilidade e solicitude pastoral de Scalabrini para com os emigrantes. O que mais tarde viria a se transformar a Pastoral Social é irmã gêmea do que, também mais tarde, viria a se transformar a Pastoral dos Migrantes.
Um retorno a essa dupla origem representa uma luz para ler e entender os desafios do mundo de hoje. Desafios de ordem sociopolítica e desafios relacionados ao universo dos cenários e narrativas da migração. O estudo da história é o melhor antídoto contra o que o Papa Francisco chama de “cultura da indiferença” em relação às problemáticas do presente e em relação à responsabilidade quanto ao futuro. Em sentido amplo, o Serviço Pastoral dos Migrantes mergulha suas raízes nessa dupla fonte de energias, ou dupla solidariedade evangélica. Ainda nas palavras do Pontífice, trata-se de passar da “globalização do individualismo à cultura da solidariedade”.
O segundo passo atrás nos faz retroceder aos anos de 1970. Se é verdade que o período que vai do imediato pós-guerra até o início da década de 70 costuma ser considerado como os “anos de ouro” da economia capitalista, as coisas mudam a partir daí. Tais “anos de ouro” combinam euforia econômica, por uma parte, com os fantasmas da guerra-fria, da ameaça nuclear e da desigualdade socioeconômica, por outra. Do ponto de vista eclesial, são publicadas as Cartas Encíclicas Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963), ambas pelo então Papa João XXIII. Depois, vem à luz a Constituição Pastoral Gaudium et Spes, Concícilio Vaticano II, e em seguida a Carta Encíclica Populorum Progressio (1967), escrita pelo Papa Paulo VI. Logo, porém, os chamados “milagres econômicos” e, em alguns casos, o pleno emprego, conhecem seu término. Começam as décadas da crise que se arrasta até o presente. O aumento dos preços do petróleo, por uma parte, e a desvinculação da emissão de dólares quanto às receitas em ouro nos Estados Unidos, por outra, no início dos anos 70, serão dois fatores que, junto a diversas circunstâncias de ordem política, haverão de desencadear uma prolongada instabilidade econômica. Instabilidade que, em menor ou maior grau, e dependendo da conjuntura de cada país, persiste até os dias de hoje. Três foram as consequências imediatas dessa crise: o aumento dos custos de produção, movida prevalentemente com a fonte energética do petróleo, a corrida desenfreada à especulação no capital financeiro em nível internacional e o aumento do desemprego, subemprego e migração.
Desse contexto decorre a emergência do termo globalização. No xadrez da economia mundial, a globalização é entendida com a extensão e o aprofundamento do modo de produção capitalista, no sentido de diminuir as despesas e aumentar os ganhos, compensando assim as perdas. Na verdade, uma globalização de duplo aspecto: extensiva, no sentido de incorporar novos territórios, novas regiões, novos países e novos povos ao sistema de produção-comercialização-consumo capitalista (Rússia, China, Tigres Asiáticos, entre outras nações asiáticas e africanas): e intensiva, no sentido de ampliar o consumo daqueles que já fazem parte desse universo. Entra em cena o poder do marketing, da propaganda e da publicidade, com apelos cada vez mais intensos, frequentes e estridentes, convidando ao esquema compulsivo do produtivismo-consumismo. De outro lado, sempre na perspectiva de compensar as perdas e aumentar os lucros, termos como flexibilização das leis trabalhistas, terceirização e reformas trabalhista ou da previdência social, em geral, entram a fazer parte do processo de globalização, no sentido de retirar dos trabalhadores uma série de “direitos adquiridos” pela luta sindical. Semelhantes direitos se reconvertem em “mercadorias” a serem compradas, o que passa a pesar sobre os ombros da classe trabalhadora.
Ainda no que diz respeito à ao conceito de globalização, vale tomar emprestadas algumas observações do sociólogo espanhol Manuel Castells (Cfr. A Sociedade em rede, em três volumes). Segundo ele, a rede mundial da Internet, leva a uma economia globalizada com um movimento duplo e aparentemente contraditório, ou seja, ela se torna ao mesmo tempo mais centrífuga e mais centrípeta. Mais centrífuga – ou mais descentralizada – no campo da produção. Em lugar de gigantescos parques industriais onde se fabrica o produto integral, multiplicam-se pequenas e médias unidades de produção de peças autônomas. Estas facilitam não apenas a locomoção no território e entre os vários países, mas também a diversificação produtiva. Posteriormente, com a revolução das comunicações e dos transportes, reúnem-se as várias peças. Daí o nome de “montadoras” a determinados parques de produção. Tais unidades, por outro lado, são mais ágeis e passíveis de deslocamento, de acordo com a necessidade de mão-de-obra barata ou de novas fontes de matéria prima e de energia.
A economia globalizada, entretanto, é também mais centrípeta – ou centralizada. Também aqui, devido às transformações na área da informática, é possível uma maior concentração no campo das decisões. Uma central de computadores interligados, localizada em qualquer lugar do planeta, pode controlar a produção, a comercialização e o consumo, permitindo a tomada de decisões em tempo real. Isso explica as compras e vendas, fusões e megafusões das empresas, a incorporação de umas pelas outras, os grandes conglomerados internacionais, de modo especial no capital financeiro. Concentram o poder de decisão para poupar gastos com pessoal altamente qualificado e com duplicação de infraestrutura. Numa palavra, a economia global tende a expandir-se quanto à produção e, simultaneamente, a concentrar-se quanto à direção do poder. Consta-se, então, que o contraste é apenas aparente. Na verdade, os movimentos contrários se complementam.
Tanto nos “anos de ouro” do capital (1945-70) quanto na crise que lhes dá lugar no início dos anos 70, os migrantes correm atrás das oportunidades de trabalho. Não será exagero parafrasear Scalabrini: se as sementes e as aves voam nas asas do vento, os trabalhadores voam nas asas do capital. Para onde este migra, se concentra e se acumula, multiplicam-se igualmente as possibilidades de um melhor futuro. Daí o grande fluxo de migrações do hemisfério sul para o hemisfério norte, ou melhor, dos países periféricos e subdesenvolvidos para os países centrais e desenvolvidos. Milhões e milhões de trabalhadores dos países pobres da Ásia, da África e da América Latina e Caribe, com ou sem suas famílias, buscam os Estados Unidos e Canadá, a Europa, o Japão e Austrália. Juntamente com esse fluxo sul-norte, porém, verificam-se outras tendências também expressivas em números, tais como o deslocamento sul-sul ou leste-oeste, este último sobretudo a partir da desintegração da União Soviética.
A mobilidade humana ganha proporções cada vez mais planetárias. Sem contar as migrações dentro do próprio país ou pendulares, estima-se hoje que ao redor de 250 milhões de pessoas residem fora do país em que nasceram, sendo que ao redor de 30 a 50 milhões são refugiados. O deslocamento humano de massa torna-se um fenômeno sempre mais numeroso, mais complexo e mais diversificado. Novas nações, novos povos, novos grupos e novas culturas passam a fazer parte do xadrez mundial das migrações. A “aldeia global” converte-se em uma realidade. No cotidiano ou através dos meios de comunicação, praticamente todos os dias nos defrontamos com os “mil rostos do outro”. Difícil encontrar um país que não esteja envolvido nesse vaivém globalizado, seja como lugar de origem, de trânsito ou de destino – quando não as três coisas ao mesmo o tempo.
À medida que a crise econômica persiste e/ou se agrava, no entanto, os países centrais começam a restringir a entrada de estrangeiros. Elaboram-se leis de imigração cada vez mais rígidas e seletivas, com o objetivo de peneirar os trabalhadores qualificados e descartar os demais. A migração legal, regular, com os documentos em dia torna-se cada vez mais difícil, praticamente um privilégio de poucos. Para os que fogem literalmente da pobreza, da violência e da guerra, não passa de um sonho que, em grande parte dos casos, acaba convertendo-se em pesadelo.
Prova disso é que, atualmente, os deslocamentos humanos sul-sul superam em números os deslocamentos sul-norte. Crescem, por exemplo, os movimentos de país para país no interior da África, no interior da América Latina e Caribe, no interior da Ásia. Trata-se de uma migração intra-regional ou intra-continental, que, embora não anule as tentativas de cruzar os oceanos e alcançar os demais continentes, encontra mais dificuldades. Isto para não falar das migrações no interior de cada país, das migrações temporárias ou do esvaziamento rural seguido da urbanização. Cresce, também, a presença de mulheres e menores não acompanhados, sujeitos de modo particular do tráfico internacional de pessoas humanas para fins de exploração sexual e trabalhista. Evidente que a rigidez da lei e o fechamento da fronteira acaba incrementando o crime organizado em nível mundial. E cresce, ainda, o número do que hoje poderíamos chamar de migrantes, prófugos ou refugiados “climáticos”. Fogem de desastres, calamidades ou catástrofes desencadeadas pelas mudanças cada vez mais acentuadas do clima.
Outro fator que tende a dificultar o livre direito de ir-e-vir em direção às nações centrais é o avanço dos governos de direita em vários países que, de um ponto de vista histórico, se mantinham mais ou menos abertos. Nas eleições mais recentes dos Estados Unidos, Áustria, Alemanha, Polônia, Inglaterra, França, Itália – constata-se o avanço de partidos e políticos anti-imigração. Aliás, no processo eleitoral desses países, o fenômeno da mobilidade humana figurou como ponto obrigatório dos debates, quase sempre como o próprio fiel da balança. Isso fez com que os deslocamentos humanos de massa fossem amplamente politizados.
O mais grave é que a politização das migrações significa, em grande parte dos casos, a criminalização dos migrantes, especialmente após os atentados de 11 de setembro em New York. O caso mais emblemático foi a eleição de Donald Trump à Casa Branca, nos USA. Com isso, ressurgem com força as políticas de deportação dos imigrantes irregulares e de restrição à entrada de novos imigrantes. Mas ressurgem igualmente os movimentos neofacistas e neonazistas, bem como suas atitudes de aberta discriminação, hostilidade e xenofobia. Nas palavras do Papa Francisco, “em lugar de pontes, erguem-se muros”. A “cultura da acolhida, do diálogo, do encontro e da solidariedade cede o lugar à globalização da indiferença”.
Resulta que dois fatores convergentes – complexidade do fenômeno da mobilidade humana e endurecimento da legislação imigratória – fazem emergir o conceito de fronteira. De uma parte, as migrações atuais diferem das chamadas migrações históricas do século XIX. Estas últimas tinham uma origem e um destino mais ou menos determinados. Os emigrantes saíam de seus países para estabelecerem-se em outras terras e aí erguerem novas cidades e novas nações. Atualmente, sabemos a origem dos fluxos migratórios, mas seu destino final é incerto. Os mesmos migrantes, depois de cortarem as raízes primordiais, remigram com frequência de um país para outro, buscando sempre melhores oportunidades. Em lugar de uma viagem para um novo lugar, temos um vaivém às vezes circular e com rumos imprevistos.
Entre os estudiosos do tema da fronteira, tomo de empréstimo algumas observações do sociólogo português Boaventura de Souza Santos. A partir de seus estudos, constata-se que a restrição crescente à migração legal faz aumentar a pressão dos migrantes sobre os limites entre os diversos países – vale dizer sobre a fronteira. Fronteira neste caso como “não lugar”, não no sentido de Marc Augè (a não familiaridade doa aeroportos e shopping centers, por exemplo), e sim espaço onde os medos misturam-se com novos horizontes; angústias e esperanças andam de mãos dadas, ameaças e oportunidades entrelaçam-se. Trata-se, ao mesmo tempo, de lugar de ninguém e lugar de todos, lugar dos sem pátria e lugar aberto a muitas pátrias. A fronteira se converte numa espécie de espelho invertido das políticas migratórias, ou da falta delas. Já o sociólogo paraguaio Tomaz Palau, ainda nos anos 80, dizia que “o movimento e o dinamismo intensos nos limites entre dois ou mais países constituem um dos retratos mais vivos do processo de globalização”. Com isso o fenômeno migratório torna-se mais dramático e contemporaneamente mais visível. As imagens da fronteira escancaram as feridas e cicatrizes mais vivas da mobilidade humana.
Entretanto, mesmo a olho nu, é bem notório a emergência da fronteira como lugar de tensões e sonhos, disputas e alternativas, “alegrias e esperanças, tristezas e angústias”, para citar a frase de abertura da já citada Constituição Pastoral Gaudium et Spes. Bastam alguns exemplos: limite entre México e Estados Unidos, entre México e Guatemala, entre África do Norte e sul da Europa, entre Turquia e Grécia, entre Peru, Chile e Bolívia, entre Colômbia e Venezuela, entre Venezuela e Brasil, entre Filipinas, Malásia, Indonésia e Singapura!... Os exemplos poderiam ser multiplicados pelos quatro cantos do planeta. As fronteiras se convertem em verdadeiras “panelas de pressão” prestes a explodir, como ao norte da Líbia, na Turquia, no norte do México e na ilha de Batam, Indonésia e outros pontos da Ásia e África. Sonhos e pesadelos aí travam uma batalha sem fim e quase sempre sem horizonte.
Num exemplo mais concreto, recentemente a União Europeia fez um acordo primeiro com a Turquia, depois com a Líbia, para o bloqueio às migrações que se direcionavam ao velho continente. Significava, respectivamente, bloquear a rota balcânica e a rota mediterrânea. Em troca da contenção dos migrantes nos respectivos territórios, Turquia e Líbia recebem investimentos regulares dos países da Europa. O acordou trouxe um resultado duplamente nefasto e desumano: de um lado, os migrantes se concentram em acampamentos improvisados, em condições extremamente precárias, chegando a ser colocados à venda (Líbia); de outro lado, os investimentos europeus caem nas mãos de governos instáveis e corruptos, acabando muitas vezes por chegar às mãos dos guerrilheiros – o que aumenta a violência e a fuga de refugiados. O remédio agrava a situação do doente!
Em vista de uma melhor compreensão e do trabalho sociopastoral, vale a pena, porém, desdobrar o conceito de fronteira em três dimensões ao mesmo tempo distintas e complementares: fronteira física, geográfica ou territorial, fronteira jurídica e político-social e fronteira cultural-religiosa.
Na primeira, geográfico-territorial, o migrante tropeça com a polícia ou o exército, as exigências da aduana, portos e aeroportos, dificuldades de documentação. Encontra muros visíveis ou invisíveis, arame farpado. Muitas vezes a família se divide e muitos podem perder a vida nas areias do deserto, nas ondas do mar ou nas armadilhas de florestas e montanhas. Mais grave ainda quando cai nas mãos dos traficantes que recrutam os mais vulneráveis de entre eles. Na segunda, jurídica e político-social, o migrante tropeça com as leis migratórias do país de destino, o que depende de decisões políticas. Neste caso, a fronteira desloca-se para a capital do país, para o Congresso Nacional e para os gabinetes do governo; tropeça igualmente em situações sociais de precariedade e vulnerabilidade. Na terceira, cultural-religiosa, o migrante tropeça com mentalidades, expressões, visões de mundo e costumes diversos. “Aqui, até a Igreja e os santos são diferentes”, dizem com frequência. As diferenças podem converter-se em muros: surgem hostilidades recíprocas, preconceitos e até perseguição. Não raro os distintos povos, nações ou grupos podem criar “guetos” isolados, fechados sobre si mesmo. Aqui a fronteira se ergue nas ruas, bairros, vizinhança, escolas, comunidades ou paróquias onde o estrangeiro se instala. Talvez seja a fronteira mais difícil de cruzar, porque seus muros são muito sutis e invisíveis.
Boa parte dos migrantes conseguem ultrapassar a dimensão geográfico-territorial da fronteira, mas vêm-se impossibilitados de vencer sua dimensão político-social. Acabam permanecendo no país de destino na condição de “imigrantes indocumentados”. Isso significa um estado de permanente vulnerabilidade diante de uma série de problemas e dificuldades, tais como encontrar trabalho, moradia, escola, saúde, etc. Outros conseguem cruzar as duas primeiras dimensões da fronteira, mas se vêm barrados na dimensão cultural-religiosa. Também neste caso tornam-se vulneráveis a todo tipo de preconceito, discriminação e exploração no lugar específico onde resolvem morar (e trabalhar de maneira informal).
Por que separar as diversas dimensões da fronteira? Antes de tudo, para melhor compreender a dinâmica e os percalços que os migrantes devem enfrentar em cada uma delas. Depois, para identificar com maior precisão os distintos serviços a ser prestados pela solicitude pastoral e evangélica. Por fim, a partir dessa compreensão ampliada e diferenciada, para melhor integrar as diversas dimensões da Pastoral Migratória num “trabalho orgânico e de conjunto”, como recomenda o Documento de Medellín. Fazendo um jogo de palavras, não se trata somente de um conjunto de trabalhos, e sim de um trabalho de conjunto.
Quem atua na fronteira físico-territorial tem em vista uma série de tarefas. Estas vão desde a acolhida, alimentação e documentação, até a assistência social, jurídica e psicológica. Os destinatários podem ser migrantes, prófugos, refugiados, deportados, marinheiros, itinerantes... É o que se faz, em geral e entre outras coisas, nas Casas e/ou Centros para os Migrantes ou no trânsito. Já a atuação na fronteira jurídica e político-social exige um esforço de incidência múltipla nos organismos e instâncias sociais, eclesiais e governamentais, uma parceria com outros atores sociais (igrejas, movimentos, organizações não governamentais, pastorais, etc.) que trabalham no campo da mobilidade humana. Exige também o conhecimento das leis de imigração e o empenho para modificá-la em favor do respeito ao direito de ir-e-vir, correlato ao direito de permanecer com dignidade na própria pátria. Quanto às atividades na fronteira cultural-religiosa, está em jogo o resgate da pessoa, grupo, povo ou cultura. Torna-se indispensável promover espaços onde, por um lado, os imigrantes possam expressar seus valores e expressões culturais e religiosas e, por outro, possam ser ajudados a inserir-se na vida do país que os acolhe, em termos familiares, comunitários, eclesiais, sociais, políticos e culturais.
Aqui o mais relevante é sublinhar a atuação integrada e conjunta, o esforço de sinergia entre as várias dimensões da fronteira. O trabalho de uma complementa e reforça as atividades das demais, bem como as lacunas de uma dividem e enfraquecem as atividades das demais. Desnecessário relembrar que o segredo está no trabalho em rede, onde cada tarefa repercute em todas as dimensões da fronteira. Tanto para o migrante quanto para o agente de pastoral que o acolhe, torna-se fundamental saber que os esforços estão conectados com outras duas instâncias que atuam de forma integrada. No fundo, as três dimensões da fronteira requerem tarefas distintas, sem dúvida, mas convergentes na defesa da dignidade e dos direitos do migrante.
Convém não esquecer que, de outro lado, quando os problemas das duas primeiras dimensões da fronteira continuam irresolutos, tudo se acumula nesta última fase, onde as comunidades e paróquias pluriculturais ou multiétnicas os acolhem. Claro que, na medida do possível, uma ponte pastoral com os países de origem só pode enriquecer o trabalho sociopastoral. Com todos esses fatores em jogo, permanece o desafio de passar de uma convivência pacífica entre migrantes de várias etnias (multiculturalidade) ao diálogo e confronto reciprocamente enriquecedor (interculturalidade). Sair de si mesmo e deixar-se interpelar pela presença do outro – diria o Papa Francisco – pavimenta o caminho para o totalmente Outro.
Retornando à ideia de fronteira como “não lugar” e desde um ponde de vista teológico, nesse terreno ambíguo erra e espera a grande “multidão dos sem”: sem raiz e sem pátria, às vezes sem papéis, sem rumo, sem destino, sem horizonte!... Esse “não lugar” pode converter-se no “melhor lugar” para lançar os alicerces de um “novo lugar”. Jesus Cristo nasceu e morreu fora dos muros da cidade. “Não havia lugar para eles (José, Maria e o Menino)”, escreve o evangelista no relato do nascimento. Os condenados ao patíbulo da cruz, por sua vez, não podiam sofrer a execução dentro da cidade de Jerusalém. Disso pode-se inferir que a mensagem central da Boa Nova do Evangelho mergulha suas raízes na fronteira, no “não lugar”. Ou seja, lugar da utopia, lugar privilegiado para pensar e proclamar o Reino de Deus. De fato, quem nasce e vive em berço de ouro, num lugar firme e estabelecido, pouco se preocupa com mudanças. Somente quem experimenta a inquietude, a incerteza e a solidão da fronteira como “não lugar”, permanece aberto às transformações urgentes e estruturais da sociedade. Busca uma nova pátria!
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Migrações e fronteiras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU