27 Abril 2018
Reunião com lideranças ocorreu após grande ato, quando milhares de indígenas cobraram da AGU a revogação do parecer que inviabiliza demarcações
Ministra Grace Mendonça afirmou aos indígenas que o parecer é para levar segurança jurídica aos povos. Resultado: sete demarcações devolvidas à Funai.
(Foto: Tiago Miotto/MNI)
Nesta quarta-feira (25), durante reunião com lideranças indígenas do Acampamento Terra Livre, a ministra Grace Mendonça afirmou não ter autonomia para revogar o Parecer 001 da Advocacia-Geral da União (AGU). “Não temos autonomia para decidir aqui e bater o martelo por conta própria”, afirmou a ministra da AGU.
Depois de admitir que a AGU não teria autonomia para revogar a portaria, indicando que ela depende do aval político do governo, a ministra comprometeu-se a convocar uma reunião para o dia seguinte com representantes do Ministério da Justiça, da Fundação Nacional do Índio (Funai), do Ministério Público Federal (MPF) – que já pediu a anulação do parecer, por considerá-lo inconstitucional – e lideranças indígenas.
Os indígenas aceitaram a reunião, sem deixar de questionar o fato de que o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), que deveria ser consultado sobre ações que afetam os povos indígenas, teve apenas uma plenária realizada durante o governo Temer, mas que sequer chegou ao fim.
A reunião aconteceu entre os indígenas e a ministra da AGU ocorreu após uma marcha reunindo cerca de 3 mil indígenas, acampados em Brasília desde o início da semana no Memorial dos Povos Indígenas, que pediam a revogação do Parecer. O protesto desceu o Eixo Monumental, ocupando três das seis faixas da pista, seguindo até a Esplanada dos Ministérios, de onde partiu para o Setor de Autarquias, à sede da AGU.
Cerca de três mil indígenas marcharam pelo Eixo Monumental até a Advocacia Geral da União para protestar contra o decreto 001/2017, que inviabiliza demarcações.
(Foto: Christian Braga / MNI)
O Parecer 001 da AGU, em vigor desde julho de 2017, determina que toda a administração pública federal adote as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol nos processos de demarcação de terras indígenas. Um dos principais pontos do parecer é o Marco Temporal, tese ainda em discussão nas instâncias do judiciário e que condiciona o direito à terra tradicional somente para as ocupadas pelos povos indígenas em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição.
“O ato só tem um objetivo: a revogação do Parecer 001 da AGU que paralisou todas as demarcações de terra”, diz Kretã Kaingang, da Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpinsul). A ministra, alegando estar em outra reunião, enviou assessores para receber os indígenas, que se negaram e afirmaram que só saíram da AGU depois de se reunir com ela, não com emissários.
Kretã Kaingang e Marcos Xukuru: ambos tiveram os pais assassinados por conta da luta pela terra (Foto: Tiago Miotto/Cim)
“Fica claro que o setor do agronegócio está influenciando diretamente nas decisões do governo e da Advocacia-Geral da União. Esse “parecer do genocídio” ele tem autoria, e essa autoria é do Congresso Nacional”, afirma Dinamã Tuxá, membro da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.
Enquanto se desenrolava a reunião entre a comissão de lideranças indígenas e a ministra da AGU, as centenas de indígenas permaneceram em vigília na frente do prédio. Entre cantos e rituais, as expectativas envolviam a anulação do parecer. “A AGU não pode colocar em risco as gerações futuras do nosso povo acabando com a demarcação dos nossos territórios”, afirma Weibe Tapeba, do Ceará.
Para o indígena é a estratégia de transformar o marco temporal em um “fato dado”. Ao lado de seus familiares, Weibe explica que a terra onde vivem sofre uma enxurrada de pedidos judiciais, impetrados por fazendeiros e construtoras, para que tenha os efeitos da portaria declaratória sustados. “Após o Parecer 001, estes invasores se sentiram mais confortáveis. Há parentes que vivem em terras onde só falta homologar e estão preocupados”.
Caso de Tupã Mirim Guarani Mbya, da Terra Indígena Tenondé Porã. “Só falta homologar, mas é claro que corre risco. Com essa medida, nenhuma terra indígena do país está garantida. Porque não é apenas a demarcação, mas a preservação também”. Tupã se refere às notícias que ouviu dos demais povos durante o ATL 2018 referente às invasões de madeireiros, garimpeiros, grileiros e empreendimentos estatais.
“O que queremos na verdade é a vida, a vida das futuras gerações. O que a AGU tá fazendo é um genocídio contra os povos indígenas. Por isso o parecer é o Parecer do Genocídio”, conclui. Os jovens Guarani Mbya permaneceram todo o tempo da vigília em rituais e danças, carregando a faixa pela demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, dos Mbya de Santa Catarina. Rezadores Guarani e Kaiowá, mais velhos, os acompanhavam.
Na pisada do Toré, os povos indígenas do Nordeste seguraram rituais durante todas as horas em que estiveram na AGU. O cacique Sandro Potiguara, da Paraíba, saiu de um destes momentos para explicar que por duas vezes pediram revisão da Terra Indígena Monte Mor, uma das quatro do povo. “Esse parecer promove uma onda de pedidos do tipo, para que enquadrem nas condicionantes. A situação se tornou insustentável e o parecer precisa ser anulado”.
“Levante a mão quem tem parentes aqui que já morreram na luta pela terra”, pediu o advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Adelar Cupsinski. Com quase todas as mãos indígenas da sala erguidas, ele prosseguiu: “É isso, ministra, que está acontecendo. A cada imbróglio que tem, as milícias no campo agem”.
Esse foi um dos primeiros momentos da tensa reunião entre a Advogada-Geral da União Grace Mendonça e a comissão que representava os milhares de indígenas que se manifestavam contra o Parecer 001 do lado de fora da AGU.
A advogada Joênia Wapichana mostra para a ministra da AGU o óbvio: o parecer inviabiliza as demarcações (Foto: Tiago Miotto/MNI)
Ao todo, participaram da reunião 25 lideranças indígenas e três advogados. Todos – especialmente os indígenas – foram muito firmes em exigir a revogação imediata do parecer.
Joênia Wapichana, que foi a primeira advogada indígena a fazer uma sustentação no Supremo Tribunal Federal (STF), no caso Raposa Serra do Sol, relembrou que a Suprema Corte determinou que as condições impostas àquela demarcação não deveriam se estender às demais terras indígenas. O parecer, por isso, contraria a jurisprudência da corte.
“Nem para Raposa Serra do Sol algumas dessas condicionantes se aplicam, porque elas restringem direitos. Colocar isso para todas as terras indígenas é uma crueldade, porque ela nega a vida e nega os direitos dos povos indígenas”, defendeu a advogada indígena.
No início da reunião, a ministra mostrou-se intransigente. Defendeu que tudo era uma questão de “esclarecimento” sobre o real sentido do parecer, que teria surgido para que “houvesse uma diretriz para que a política de demarcação pudesse avançar”.
Carron Pataxó durante reunião com a ministra da AGU (Foto: Tiago Miotto/MNI)
“Não foi a intenção da AGU em nenhum momento inserir um parecer para paralisar as demarcações”, defendeu-se. “Muitas vezes joga-se para o parecer uma conclusão que o parecer não dá respaldo”.
Ela chegou a afirmar que o parecer não abordaria o marco temporal, um dos principais pontos criticados pelos povos indígenas. “O parecer não fala de marco temporal”, sustentou.
“Pela ordem, ministra. Essa questão é central”, questionou o advogado do Cimi. “Se for o caso, podemos ler o parecer aqui”.
“O fato de o Executivo ter um instrumento para restringir o direito à demarcação somente a partir de 1988 está colocando em risco as vidas indígenas que dependem da terra”, questionou Joênia Wapichana.
“No caso quilombola, recentemente, foi expurgada a tese do marco temporal de forma majoritária”, completou Adelar Cupsinski. Ele citou também as recentes decisões do STF no caso das ACOs 362 e 366, quando os ministros do pleno reafirmaram os direitos originários dos povos indígenas.
“O Parecer 001 tem que ser revogado, porque ele vai contra a jurisprudência do Supremo”, resumiu a advogada Wapichana.
As consequências do Parecer 001 já são sentidas pelos povos indígenas em seus territórios.
O advogado do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) Bruno Morais trouxe a informação de que há sete procedimentos administrativos em estágios avançados do processo de demarcação que foram devolvidos para a Funai, com pedidos de diligências baseados no Parecer 001 da AGU.
“O parecer surgiu sob a justificativa de acabar com a insegurança jurídica, mas está ocorrendo o contrário”, argumentou.
“Para cumprir as diligências, o pessoal da Funai disse que poderia ter que refazer os estudos. Foram trabalhos que levaram anos, envolveram tempo e dedicação e agora teriam que ser refeitos”, explicou. “Nenhuma outra medida além da revogação do parecer garante a segurança jurídica das demarcações”.
Duas das terras em processo avançado de demarcação que retrocederam para a Funai foram a TI Morro dos Cavalos, dos Guarani Mbya, em Santa Catarina, e a TI Tupinambá de Olivença, na Bahia – que tem até uma decisão judicial determinando a publicação de sua portaria declaratória, competência do Ministério da Justiça.
“Um procedimento que nunca foi feito antes nos processos demarcatórios na história, o governo conseguiu fazer se fundamentando no seu parecer” (Foto: Tiago Miotto/MNI)
Outra terra diretamente afetada pelo parecer foi a TI Jaraguá, também dos Guarani Mbya, em São Paulo. Com base no parecer da AGU e em um suposto erro administrativo, o ministro da Justiça, Torquato Jardim, anulou a portaria declaratória, transformando-a na menor terra indígena do país, com apenas 1,7 hectare.
“Um procedimento que nunca foi feito antes na história, que é anular uma portaria, o governo conseguiu fazer se fundamentando no seu parecer. Não aceitamos que você venha aqui nos dizer que é a favor do nosso direito, porque depois que a nossa demarcação foi anulada, nós temos enfrentado na aldeia todo tipo de violência”, questionou Karaí Popygua.
“Sabe quem é que tá colocando as mãos pra cima, comemorando o parecer? É o Luís Carlos Heinze, os ruralistas!”, afirmou Luís Salvador Kaingang, conhecido como Saci.
Ele mencionou que o parecer foi a base de uma decisão da Justiça Federal de Erechim que anulou, em primeira instância, a demarcação da TI Passo Grande do Rio Forquilha. “Que estrago que esse parecer causou para as populações indígenas no Brasil”.
“Aqui vocês não tem na Advocacia-Geral da União um inimigo. Não estamos aqui para prejudicá-los”, chegou a afirmar a ministra Grace Mendonça.
“Para mim, hoje, a AGU é sim um inimigo”, rebateu Kahu Pataxó. “São vocês que tão dando armando os inimigos contra a gente. Os pistoleiros da minha região só estão alvoroçados por causa desse parecer. Nós estamos preparados para resistir, e eu prefiro morrer aqui na mão da polícia, lutando contra o parecer, do que ver meu povo morrendo na mão de pistoleiro lá!”.
“Nós temos a consciência, doutora, que esse governo não vai ser favorável à gente. Quem são os ministros? São todos colocados por Michel Temer. Se ele quisesse escutar a gente, ele tinha colocado para funcionar o CNPI, já que todos esses órgãos participam dele”, indignou-se Ednaldo Tabajara.
“Em nenhum momento, quando foi editado esse parecer, os povos indígenas foram chamados para participar”, ressaltou Joênia Wapichana, chamando atenção para a violação ao direito de Consulta Livre, Prévia e Informada dos povos indígenas. “Isso já começa com o desrespeito à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”.
Cacique Marcos Xukuru informa o resultado parcial da reunião (Foto: Tiago Miotto/MNI)
A noite caiu sobre o prédio da AGU, iluminada pelas velas acesas pelos indígenas que ficaram do lado de fora. Com a confirmação da reunião, as lideranças da comissão juntaram-se ao grande grupo que ainda aguardava, em vigília, o desfecho da reunião. Desfecho que só ocorrerá, na verdade, com a anulação da Portaria 001.
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Ministra da AGU reconhece que “não tem autonomia” para revogar parecer do genocídio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU