Por: Vitor Necchi | 24 Mai 2017
Ao começar sua fala, o professor Castor Bartolomé Ruiz, da Unisinos, anunciou que trataria da relação entre tecnologia, economia e política na obra de Giorgio Agamben, mas fez a ressalva de que não se trata de empreitada fácil. Ruiz foi o segundo palestrante do VI Colóquio Internacional IHU – Política, Economia e Teologia. Contribuições da obra de Giorgio Agamben, na manhã desta terça-feira (23/5). O evento, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, prossegue na quarta-feira.
No início de sua conferência, intitulada A oikonomia trinitária enquanto paradigma da máquina governamental, Ruiz afirmou que um dos focos das pesquisas de Agamben é a análise crítica do poder das sociedades ocidentais. “A hipótese do autor é que este poder opera como uma máquina bipolar que articula constantemente os dispositivos da soberania e a governamentalidade; as formas jurídicas com as técnicas de gestão da vida”, explica. Agamben questiona: quais são os arcanos do poder moderno e como estes arcanos possibilitam a legitimação e implementação destas formas de poder?
Ruiz citou um trecho do livro O reino e a glória, de Agamben, no qual apresenta o objetivo da sua pesquisa: “Investigar os modos e os motivos pelos quais o poder foi assumindo no Ocidente a forma de uma oikonomia, ou seja, de um governo dos homens”. A empreitada tem antecedentes em Michel Foucault, que já havia pesquisado a genealogia da governamentalidade.
Ruiz afirmou que qualquer estudo crítico a respeito da economia, particularmente da economia política, remete diretamente ao conceito de governamentalidade, neologismo concebido por Foucault que se trata de “um recorte específico das formas de governo a respeito do modo como se devem governar as condutas das pessoas”. Há outro conceito mais comum, governabilidade, que se refere “ao método mais ou menos correto e eficiente de gestão das instituições”.
Para detalhar o conceito, Ruiz explicou que as técnicas da governamentalidade “procuram não impor soberanamente ordens, elas estimulam a adesão voluntária dos comportamentos”, gerenciando as motivações dos indivíduos. Pode-se dizer que a governamentalidade, “no limite, almeja governar a liberdade humana, não a destruindo, mas dirigindo-a”. Dessa forma, não se pode dizer que ela quer tolher a liberdade, mas sim “produzir formas de liberdade conduzidas ou induzidas por dispositivos de gestão”.
A vida humana é regida atualmente por dispositivos governamentais que surgiram a partir dos discursos da economia política moderna. “Foram os discursos dos economistas fisiocratas, cameralistas e liberais que, já no século 17, identificaram que a vida humana é um bem natural útil e rentável”, ponderou Ruiz. “Foram os discursos econômicos que elaboraram as estratégias de governo dos comportamentos da população como parte essencial do poder moderno.”
Ruiz disse que o termo economia política é um “oximoro que certamente ofenderia aos gregos”, para os quais oikos e polis eram não somente realidades distintas, mas contrárias. “Enquanto a oikos era regida pelo poder despótico do pai de família, a polis foi criada como o espaço da liberdade pública e da autogestão coletiva dos sujeitos livres”, explica. “Na oikos, a vida dos que lá habitavam era comandada pelo despotes; na polis, os sujeitos são isonômicos e ninguém governa a ninguém, todos se autogovernam.” Portanto, “algo como uma economia política seria uma ofensa à política, que ficaria anulada pelo poder despótico da oikos”.
Ruiz apresentou que uma das teses de Agamben demonstra que, da teologia cristã, surgem “dois paradigmas políticos em sentido amplo, antinômicos, porém funcionalmente conexos: a teologia política, que fundamenta no único Deus a transcendência do poder soberano, e a teologia econômica, que substitui aquela pela ideia de uma oikonomia, concebida como uma ordem imanente – doméstica e não política em sentido estrito – tanto da vida divina quanto da vida humana”. É do primeiro paradigma que derivam “a filosofia política e a teoria moderna da soberania; do segundo, a biopolítica moderna até o atual triunfo da economia e do governo sobre qualquer outro aspecto da vida social”.
Segundo a teologia bíblica do Antigo Testamento, os conceitos da soberania são utilizados a fim de apresentar Deus como um Deus uno. “Deus é soberano: da criação, da história e da vida”, detalha Ruiz. “A metáfora política da soberania retrata a onipotência absoluta de Deus, superior, porém em semelhança, com a soberania dos monarcas orientais.”
Em toda a teologia bíblica, percebe-se a centralidade da figura do Deus rei, inclusive na mensagem de Jesus, que veio anunciar o reino. “Ele mesmo, quando questionado, diz que é rei, mas não deste mundo, e não da forma despótica ou absolutista dos reis deste mundo”, lembra Ruiz. “A linguagem da soberania, contudo, mostrou-se insuficiente para pensar o Deus cristão, que é um Deus uno porém em sua unidade desdobra-se numa trindade: Pai-Filho-Espírito.”
Os teólogos cristãos dos primeiros séculos enfrentaram uma grande questão: “como a teologia cristã poderia explicar esta dimensão comunitária interna da divindade, sem cair num politeísmo?”. Ruiz salientou que o vocabulário teológico da soberania não conseguia explicar “a dimensão do Deus trino, sem cair num politeísmo”. Assim, os teólogos cristãos contornaram esse impasse utilizando o conceito de relações oikonomicas.
Ruiz disse que, para a teologia cristã, umas das questões centrais “é pensar como Deus pode governar oikonomicamente o mundo respeitando a liberdade humana”. Ou, seja, “como conciliar a vontade de Deus com a liberdade humana”. Para o professor, trata-se de uma questão teológica nevrálgica acerca da economia política moderna: “como governar as pessoas, a população, a partir de sua liberdade, e como conduzir a liberdade das pessoas para as metas do governo”.
Após apresentar a genealogia teológica da oikonomia e do governo, Ruiz esboçou uma maneira de entender melhor “por que Agamben sustenta que, para elaborarmos uma compreensão crítica das atuais práticas governamentais, teremos que retornar aos manuais de teologia cristã, antiga e medieval”. "A teologia cristã, ao longo de mais de 1.500 anos, elaborou com infinidade de detalhes e considerações um denso discurso a respeito da oikonomia como técnica governamental”, disse. No século 17, quando os pensadores precisaram pensar uma nova ciência do governo, diferente da soberania, recorreram aos tratados de teologia, de onde “retiram as principais categorias, assim como um vasto material de reflexões em torno dos modos de governo, da burocracia e dos ministérios”.
“Todo o dispositivo econômico-providencial (com suas polaridades ordinatio/executio, providência/destino, Reino/Governo) acaba sendo transmitido como herança direta à política moderna”, detalha Ruiz. Ele lembra que, conforme Agamben, “a consequência mais nefasta desse dispositivo teológico travestido de legitimação política é que, durante muito tempo, ela tornou a tradição democrática incapaz de pensar o governo e sua economia”.
Rousseau, por sua vez, “concebe o governo como o problema político essencial”, mas, por outro lado, “minimiza o problema de sua natureza e de seu fundamento, reduzindo-o à atividade de execução da autoridade soberana”. Para Ruiz, “o equívoco que liquida o problema do governo, apresentando-o como mera execução de uma vontade e de uma lei geral, pesou negativamente não só sobre a teoria, mas também sobre a história da democracia moderna”.
A partir de Agamben, Ruiz afirma que, se vivemos “o domínio arrasador do governo e da economia sobre uma soberania popular esvaziada de qualquer sentido, isso significa talvez que as democracias ocidentais estejam pagando as consequências políticas de uma herança teológica que, por intermédio de Rousseau, assumiram sem se dar conta”.
Para encerrar sua palestra, citou o filósofo cujo pensamento inspirou a realização deste colóquio: “O equívoco que consiste em conceber o governo como poder executivo é um dos erros mais carregados de consequências na história do pensamento político ocidental. Isso fez com que a reflexão política moderna se extraviasse por detrás de abstrações e mitologemas vazios como a Lei, a vontade geral e a soberania popular, deixando sem resposta precisamente o problema político decisivo. O que nossa investigação mostrou é que o verdadeiro problema, o arcano central da política, não é a soberania, mas o governo, não é Deus, mas o anjo, não é o rei, mas o ministro, não é a lei, mas a polícia – ou seja, a máquina governamental que eles formam e mantêm em movimento”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Democracias ocidentais pagam as consequências políticas de uma certa herança teológica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU