É um absurdo o homem querer criar algo que o ultrapassasse. Entrevista especial com Rémi Brague

Para que o ser humano tenha o direito de reproduzir-se sobre a Terra, “é necessário que seja de uma bondade intrínseca”, diz o filósofo

Imagem: FreePic

09 Novembro 2020

O processo que temos vivido desde a eclosão da pandemia tem nos revelado que essa é bem mais do que somente uma crise sanitária – que por sinal, por si só, já tem graves implicações. Ela desdobra-se ainda em crises econômicas e sociais, pondo em xeque a globalização técnico-totalitária e gerando efeitos duríssimos no aumento das desigualdades. Além disso, escarna a emergência climática como um problema real, até então tratado como distante. No fundo, toda essa desestabilização pandêmica nos põe à prova porque, ao que parece, pela primeira vez, estamos verdadeiramente diante da iminência de uma ameaça à humanidade e à sua própria existência sobre a Terra.

 

Ainda antes da pandemia, havia a crença de que a tecnologia, o progresso e as ideias de avanço e desenvolvimento nos salvariam. Tudo até que o imponderável, um prosaico e rudimentar micro-organismo, mostra que todo avanço tecnocientífico é frágil. É como se a Modernidade envelhecesse rapidamente e não desse mais conta de nossa realidade. Afinal, o que está em jogo? A preocupação é salvar a humanidade. Com o intuito de revolver todas essas questões de fundo, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU recupera uma entrevista concedida pelo filósofo francês Rémi Brague concedida à revista IHU On-Line em outubro de 2006.

 

Na época, o pensador já apontava que o ponto fulcral é pensar na manutenção da vida humana no planeta. “Somente os inocentes continuam acreditando num ‘progresso’ automático para o bem, que seria paralelo aos avanços da ciência e da técnica, que são reais. As pessoas que pensam não acreditam mais nisso. Não defendemos mais o projeto pelas razões positivas, mas pelo medo das consequências do seu fracasso”, aponta.

 

Para ele, uma saída possível é pensar na linha do cuidado, da preocupação com o outro, ou, na linha do que defende o Papa Francisco na Fratelli tutti, da amabilidade. “Para que o ser tenha o direito de reproduzir-se, é necessário que seja de uma bondade intrínseca, tão imensa que ele valha infinitamente mais do que o nada. A bíblia, e depois dela o cristianismo, confessam que o mundo é, apesar de todas as aparências, bom, porque é a criação de um Deus generoso. O cristianismo tem como primeiro papel afirmar que a vida presente é boa porque ela desemboca na vida eterna”, reflete Brague.

 

Rémi Brague (Foto: Wikipédia)

 

Rémi Brague é filósofo especialista em Filosofia Medieval Árabe, Judaica e Cristã. É professor emérito de Filosofia da Universidade Paris I Panthéon-Sorbonne e da Universidade de Munique Ludwig-Maximilians. Desde 2009 é membro da Académie des Sciences Morales et Politiques e da Academia Católica da França. Em 2012 foi um dos ganhadores do Prêmio Ratzinger de teologia. Das obras mais recentes traduzidas em português, destacamos Âncoras no Céu: a infraestrutura metafísica (São Paulo: Loyola, 2013) e Mediante a Idade Média: Filosofias Medievais na Cristandade, no Judaísmo e no Islã (São Paulo: Loyola, 2010).

Recentemente, Rémi Brague publicou Moderately Modern, 2017 e The Kingdom of Man: Genesis and Failure of the Modern Project, 2018.

Acesse a versão original da entrevista, publicada na revista IHU On-Line, número 200. Veja também a íntegra da edição de 2006, intitulada O Pós-humano.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - O que é a pós-modernidade? Podemos dizer que o homem do século XXI é pós-humano? Por quê?

Rémi Brague - “Pós-moderno” e as palavras que dela derivaram datam de alguns decênios atrás. Cada um as atrai para si e dá-lhes o sentido que deseja. Uma observação somente: o fato de se definir por sua situação depois de alguma coisa é uma atitude tipicamente moderna. Ser “moderno” quer dizer no fundo crer que se está situado depois de um tempo irrevogavelmente ultrapassado, aquele que chamamos Idade Média. Falar do que é pós-moderno, isto é, depois dos Tempos Modernos, é, de uma certa maneira, mostrar que somos fiéis a esse gesto fundamental da modernidade, e então que ainda não saímos dela. A forma mais consequente de ser pós-moderno seria talvez renunciar a crer que o que vem depois é melhor do que o que tínhamos antes.

 

A ideia da pós-humanidade quanto a seu conteúdo não tem muito a ver com a ideia de pós-modernidade. Começou-se a utilizar esse termo faz alguns anos somente, em particular a partir do livro de Fukuyama, Our Posthuman Future (2002). Mas Julian Huxley, o irmão do autor de Brave New World, que foi o primeiro diretor da Unesco, falava desde 1957 de “transumanismo”. O termo pós-humanidade é uma aplicação a mais dessa mania que quer a todo custo se colocar depois... Eu não sei muito se a expressão tem um sentido um pouco coerente. Situa-se ali embaixo das tentativas, sonhos e pesadelos, para refazer o homem a partir do controle presente ou futuro do genoma humano.

 

IHU On-Line - Como é possível compreender os aspectos positivos e negativos do conceito de pós-humano?

Remi Brague - “Passar além do humano” (transumanar) era já a forma como Dante, no início do Paraíso, caracterizava o dom mais alto da graça divina. O autor diz também que nós não somos mais do que as larvas de onde sairão angélicas borboletas. O que tem de muito positivo é a ambição. Nós não estamos mais no mundo grego: o pecado não é a hybris, a desmedida. Trata-se antes da falta de ambição, o fato de se contentar com pouco, de querer se satisfazer com outra coisa e não com a santidade. Releiamos a esse respeito os padres da Igreja: eles nos lembrarão a nobreza da natureza humana, certamente recaída sobre o primeiro Adão, mas liberada pelo segundo Adão, o Cristo.

O negativo é não ver nada mais depois do humano do que seres que teriam muito mais daquilo que o homem decaído tem: mais orgulho, um cérebro maior, um poder maior sobre a natureza, uma vida mais longa.

 

IHU On-Line - Podemos aproximar o conceito de pós-humano ao além-do-homem nietzschiano, responsável pela construção de sua vida como obra de arte, sem amarras religiosas e metafísicas?

Rémi Brague - A era moderna, a partir do início do século XVII, abriu-se sobre o sonho de uma dominação da natureza pelo homem, de um “reino do homem” (Francis Bacon) tornado “mestre e possuidor da natureza” (Descartes). Nietzsche, no final do século XIX, teve o mérito de reconhecer que “o homem é algo que deve ser ultrapassado” (Zarathustra). Para o humanismo moderno é uma constatação de fracasso. Entretanto, é interessante que o fracasso seja medido quanto ao próprio projeto moderno, com relação ao qual o homem se sente insuficiente. Conserva-se o modelo da dominação para pensar a relação do homem com a natureza, mas o homem, tal como ele é, não seria ainda capaz de assumir essa dominação.

 

 

Fazer de sua vida uma obra de arte? Isso soa bem. Só que depende da concepção de arte que se tenha. Plotino falava de “esculpir sua própria estátua”. Isso quer dizer: eu sou o único que posso trabalhar para me transformar; mas essa estátua não deve representar-me, ela deve representar os deuses. A arte moderna rompeu bastante cedo com sua origem religiosa: celebrar o divino, torná-lo visível. Desde o início do século XIX, ela abandonou a ideia de belo em proveito do “interessante”. Atualmente, ela me parece quase totalmente obsessionada pela sede de originalidade. Queremos verdadeiramente que nossa vida seja parecida com certas obras contemporâneas?

 

 

 

IHU On-Line - O senhor recusa a ideia de que o homem pode criar uma transcendência, pois uma transcendência criada, ou horizontal, não é uma transcendência. O que o senhor quer dizer, exatamente, com isso? O pós-humano é aquele sujeito que cria suas próprias transcendências e deixa Deus de lado?

Remi Brague - Na verdade, eu não rechaço nada. Não se pode rechaçar o que é real ou, ao menos, possível. Eu só queria fazer notar o absurdo da ideia segundo a qual o homem poderia criar alguma coisa que o ultrapassasse. Isso seria como sair por si mesmo das areias movediças, puxando os seus próprios cabelos como o barão Münchhausen pretendia fazer. Da transcendência não podemos constatar mais do que a existência. Um sujeito que pudesse criar suas próprias transcendências seria também capaz de destruí-las e de substituí-las por outras. Seria ele que transcenderia todas as suas pretendidas “transcendências”.

 

IHU On-Line - Em entrevista concedida à nossa revista, em abril deste ano [2006], o senhor afirma que tanto o cristianismo quanto a modernidade estão em crise. O que está sendo erigido em seus lugares?

Rémi Brague - É fato que as grandes Igrejas cristãs perdem a sua influência. Isso favorece o surgimento de uma religiosidade irracional. Por sua parte, a modernidade não se leva a si mesma suficientemente a sério. Somente os inocentes continuam acreditando num “progresso” automático para o bem, que seria paralelo aos avanços da ciência e da técnica, que são reais. As pessoas que pensam não acreditam mais nisso. Não defendemos mais o projeto pelas razões positivas, mas pelo medo das consequências do seu fracasso. É por isso que nós falamos com o maior cuidado do espectro do “obscurantismo” para poder continuar acreditando nas “luzes”.

Não há nada a colocar no lugar do cristianismo. Ele está longe de ter esgotado suas possibilidades. Eu acredito mesmo que elas são infinitas, no sentido próprio desse adjetivo.

 

 

IHU On-Line - “O papel do cristianismo e dos cristãos nos próximos anos é simplesmente fazer de modo que haja próximos anos”, disse o senhor nessa mesma entrevista. Como a sociedade pós-humana pode agir para que esses próximos anos existam?

Remi Brague - Entenda-se bem, se o cristianismo e os cristãos desaparecessem, isso não impediria o tempo de passar. Eu queria simplesmente dizer que, estando o destino da humanidade mais e mais nas suas mãos, o problema de saber por que continuar a aventura humana vai ser colocado mais nitidamente. Com base em que legitimar a existência do homem? Isso quer dizer bem concretamente: por que continuar a ter filhos, quer dizer, a chamar a existência, sem evidentemente poder perguntar-lhes a sua opinião, se não podemos garantir a esses seres que serão felizes? Que se continue a gerar filhos como sempre se fez ou que sejam fabricados graças a alguma máquina aperfeiçoada, o problema é o mesmo.

 

Para que o ser tenha o direito de reproduzir-se, é necessário que seja de uma bondade intrínseca, tão imensa que ele valha infinitamente mais do que o nada. A bíblia, e depois dela o cristianismo, confessam que o mundo é, apesar de todas as aparências, bom, porque é a criação de um Deus generoso. O cristianismo tem como primeiro papel afirmar que a vida presente é boa porque ela desemboca na vida eterna.

 

 

IHU On-Line - Como fica a ética num mundo pós-humano? É possível ainda pensar numa ética nesse contexto?

Remi Brague - A ética define o campo intermediário entre a razão teórica (digamos para simplificar: a faculdade que é capaz da matemática) e tudo o que diz respeito à nossa animalidade. É por esse campo intermediário que a razão pode influenciar nossa ação e não deixá-la à mercê dos instintos, dos desejos, das paixões. Se ele desaparecer, obteríamos o que C. S. Lewis chamava a “abolição do homem”: ficariam, de um lado, os anjos ou os computadores, do outro lado, os animais. Se um tal mundo fosse possível, a ética não poderia simplesmente existir, já que, no mundo subumano, existem pedras, plantas e animais. Um mundo pós-humano seria um mundo pós-ético.

 

IHU On-Line - A pós-modernidade seria uma exacerbação existencialista, falando do pressuposto da existência antes da essência?

Rémi Brague - Melhor seria esquecer de uma vez este slogan de Sartre, “a existência precede a essência”, que não é apenas mais do que um contrassenso sobre Heidegger. Parece-me em todo o caso que a genealogia da pós-modernidade é mais complexa.

 

IHU On-Line - De que maneira a liberdade e o determinismo podem ser relidos a partir do pós-humano?

Rémi Brague - Eles se conjugam de uma maneira perversa. O pós-humano poderia significar que o homem hoje é totalmente “livre”, mas que ele é livre de “determinar” como ele quiser as gerações futuras. Elas viveriam, então, numa total ausência de liberdade e não seriam mais do que a realização de um plano ou de um projeto exterior a elas. O mais horrível é que a liberdade dos planejadores não seria, segundo a concepção tradicional de liberdade, o poder de escolher o bem. Essa liberdade que alcança a sua pureza máxima na ética. Mas a “liberdade” dos planejadores seria pura vontade de poder, pura embriaguez de criar sem medidas. Desejaríamos nós ser o produto desse tipo de coisas? Isso seria realizar o pesadelo dos gnósticos dos primeiros séculos da era cristã: serem as criaturas prisioneiras de um operário cruel.

 

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