08 Janeiro 2020
Para Francisco, o cuidado da “casa comum” está intimamente ligado à fé dos cristãos e à sua visão do ser humano, do mundo e de Deus, com os deveres que isso implica.
A opinião é do filósofo francês Rémi Brague, ganhador do Prêmio Ratzinger 2012, em artigo publicado em Le Monde, 26-12-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Escrever sobre questões ecológicas por ocasião de uma festa cristã como o Natal parece uma pura coincidência. De modo mais geral, pode-se perguntar em que o papa Francisco se meteu ao abordar a ecologia, em primeiro lugar na sua longa encíclica Laudato si’ (2015) e, depois, em inúmeras intervenções.
O nome que ele escolheu para si, o do santo de Assis, autor de um “Cântico das criaturas” que ele gosta de citar e grande amigo dos lobos e dos pássaros, não é suficiente para lhe conferir qualquer competência técnica, que, além disso, ele absolutamente não reivindica.
O papa Francisco não diz que a preocupação ecológica sempre foi compartilhada pelo cristianismo, nem mesmo que este último se mostrou melhor sobre esse ponto do que outros pensamentos, filosóficos ou religiosos, como às vezes faz uma apologética fácil demais.
Por muito tempo, o cristianismo não teve muito a dizer sobre o problema ecológico, simplesmente porque tal problema ainda não estava posto. Mas agora que devemos enfrentá-lo, o papa quer unicamente lembrar os cristãos das suas responsabilidades em relação ao planeta. Para ele, o cuidado da “casa comum” terrestre está intimamente ligado à sua fé e à sua visão do ser humano, do mundo e de Deus, com os deveres que isso implica.
Comecemos por aquele Deus do qual Francisco nada mais é do que o servidor. O Deus da Bíblia não é prisioneiro da sua sublimidade, encerrado em uma torre de marfim celeste da qual poderia, no máximo, emitir mandamentos e interdições. A sua liberdade absoluta lhe permite transcender a própria transcendência e ter uma aventura (até mesmo no sentido amoroso do termo) com a humanidade.
Segundo a narrativa imaginativa da Bíblia, isso começa com a aliança com Noé, continua com Abraão, depois com Israel, primícias da humanidade inteira, finalmente com Moisés. Deus se compromete com o seu povo. Os cristãos empurram a ideia da aliança até a incandescência: as duas naturezas, divina e humana, se uniram “sem confusão, sem mudança, sem divisão, inseparavelmente”, na pessoa única de Cristo.
O Antigo Testamento conhece uma subdivisão bastante natural: ao Altíssimo, o céu; aos seres humanos, a terra. A encarnação transgride essa subdivisão. Não é de se surpreender que isso seja chocante.
O que os cristãos festejam no Natal é precisamente a entrada de Deus no mundo e na história humana: um recém-nascido deitado em uma manjedoura.
Se o Criador entra na criação, se o dono da história se torna um de seus personagens, isso dá à Terra uma dignidade nova. Uma terra onde Deus se introduziu não é mais um simples “aqui embaixo”; à sua humilde maneira, ele participa da santidade divina.
Desse modo, mas em outro nível, chegamos às intuições dos estoicos ou ao estupor ingênuo diante da beleza de uma flor ou da graça de uma corça.
Portanto, a Terra não é mais o pesadelo imaginado pelos gnósticos, um pântano no qual a alma, pérola preciosa, teria caído e do qual tentaria escapar o mais rápido possível. Certamente, nós a deixaremos na nossa morte, mas essa não é uma razão para não cuidarmos dela, muito menos para enchê-la com os nossos resíduos, porque, se há resíduos, são nossos.
Mas, ao mesmo tempo, se Deus entrou no mundo, é porque ele vinha de fora. Não fazia parte do cosmos, nem mesmo da parte mais elevada. Consequentemente, a Terra foi santificada com isso, mas não sacralizada, muito menos divinizada.
Uma pena para a deusa Gaia de certos deep ecologists. A ela, assim como a todo ídolo [porque, sempre, “os deuses têm sede”], é preciso oferecer sacrifícios humanos. E talvez o mais radical: o da humanidade, convidada a se consumir em um lento suicídio para abrir espaço para outras espécies, presentes ou ainda por vir.
Para os cristãos, a encarnação de Deus em Jesus Cristo tem como fim a salvação do ser humano. Por que apenas ele?, pode-se perguntar. Que arrogância! E os outros seres vivos, então? Boa pergunta. Mas animais e plantas têm tudo o que precisam para viver bem, não conheceram a queda. É o homem que é um problema. Ele é um problema para os animais, dos quais, aliás, ele destrói o habitat, e também para si mesmo. É ele o animal doente, que precisa de salvação.
A ecologia, portanto, também deve se preocupar com o ser humano, deve se tornar “ecologia integral”. Antigamente, o versículo do Gênesis no qual Deus pede ao ser humano para que “submeta a terra e domine os animais” (1,28) nunca foi entendido como um convite a abrir caminho para o seu desejo de subjugar a criação. Ainda mais que, segundo a narrativa bíblica, o ser humano, naquela época, ainda era vegano...
O erudito estadunidense Jeremy Cohen mostrou isso em um livro de 1989, com uma análise paralela dos “sábios” do Talmude e dos Padres da Igreja: essas duas tradições, que são estranhas uma à outra, interpretaram o versículo em sentido alegórico, como uma tarefa para cada ser humano de subjugar em si os vícios dos quais os animais são os símbolos: não ser “sujo como um porco” etc. Nunca viram aí uma injunção a ter que controlar a Terra, muito menos a explorá-la sem restrições.
Pelo contrário, é o projeto moderno, o de Bacon e o subsequente de Descartes, que nos torna “mestres e possuidores da natureza” que tenta dar a si mesmo uma legitimidade bíblica baseando-se nesse versículo, anteriormente interpretado, em vez disso, no sentido oportuno.
O ser humano também não é um ídolo ao qual se deve sacrificar todo o resto daquilo que vive sobre a terra. Ele não é o único habitante da “casa comum” que o papa Francisco pede para salvaguardar. É a casa comum de todos os seres humanos, começando pelos mais pobres, que também são os mais ameaçados. Ela também hospeda tudo aquilo pelo qual o homem é responsável, todos os seres dos quais, mesmo que tenha chegado mais tarde, ele é como que um irmão mais velho.
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Papa lembra os cristãos de suas responsabilidades pelo planeta. Artigo de Rémi Brague - Instituto Humanitas Unisinos - IHU