17 Março 2014
"Cada ser possui valor intrínseco, independente do uso que fazemos dele. Ele representa uma emergência daquela Energia de fundo, como dizem os cosmólogos, ou daquele Abismo gerador de todos os seres. Tem algo a revelar que só ele o pode fazer, mesmo o menos adaptado, que em seguida, pela seleção natural, desaparecerá para sempre. Mas a nós cabe escutar e celebrar a mensagem que nos tem a revelar", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.
Eis o texto.
A ética da sociedade dominante no mundo é utilitarista e antropocêntrica. Quer dizer: ilusoriamente considera que os seres da natureza somente possuem razão de existir na medida em que servem ao ser humano e que este pode dispor deles a seu bel-prazer. Ele comparece como rei e rainha da criação.
A tradição judaico-cristão reforçou esta ideia com o seu “subjugai a Terra e dominai sobre tudo o que vive e se move sobre ela”(Gn 1,28).
Mal sabemos que, nós humanos, fomos um dos últimos seres a entrar no teatro da criação.
Quando 99,98% de tudo já estava pronto, surgimos nós. O universo, a Terra e os ecossistemas não precisaram de nós para se organizarem e ordenarem sua majestática complexidade e beleza.
Cada ser possui valor intrínseco, independente do uso que fazemos dele. Ele representa uma emergência daquela Energia de fundo, como dizem os cosmólogos, ou daquele Abismo gerador de todos os seres. Tem algo a revelar que só ele o pode fazer, mesmo o menos adaptado, que em seguida, pela seleção natural, desaparecerá para sempre. Mas a nós cabe escutar e celebrar a mensagem que nos tem a revelar.
O mais grave, entretanto, é a ideia que toda a modernidade e grande parte da comunidade científica atual projeta do planeta Terra e da natureza. Considera-as como simples “res extensa”, coisa que pode ser mensurada, manipulada, na linguagem rude de Francis Bacon, “torturada como o faz o inquisidor com sua vítima até arrancar-lhe todos os segredos”. O método científico predominante mantem, em grande parte, essa lógica agressiva e perversa.
René Descartes no seu Discurso do Método diz algo de um clamoroso reducionismo na compreensão: “não entendo por “natureza” nenhuma deusa ou qualquer outro tipo de poder imaginário, antes me sirvo dessa palavra para significar a matéria”. Considera o planeta como algo morto, sem propósito, como se o ser humano não fizesse parte dela.
O fato é que nós entramos no processo da evolução quando esta alcançou um patamar altíssimo de complexidade. Então irrompeu a vida humana consciente e livre como um subcapítulo da vida. Por nós o universo chegou à consciência de si mesmo. E isso ocorreu numa minúscula parte do universo que é a Terra. Por isso nós somos aquela porção da Terra que sente, ama, pensa, cuida e venera. Somos Terra que anda, como diz o cantador indígena argentino Atauhalpa Yupanqui.
A nossa missão específica, nosso lugar no conjunto dos seres, é o de sermos aqueles que podem apreciar a grandear do universo, escutar as mensagens que cada ser enuncia e celebrar a diversidade dos seres e da vida.
E pelo fato de sermos portadores de sensibilidade e de inteligência temos uma missão ética: de cuidar da criação e de sermos os guardiões dela para que continue com vitalidade e integridade e com as condições de ainda evoluir já que está evoluindo há 4,4 bilhões de anos. Graças a Deus que o autor bíblico como que corrigindo o texto acima citado diz no segundo capítulo do Gênesis: “O Senhor tomou o ser humano e o colocou no jardim do Eden (Terra originária) para cuidá-lo e guarda-lo”(2,15).
Lamentavelmente estamos cumprindo mal esta nossa missão, pois no dizer do biólogo E. Wilson “a humanidade é a primeira espécie da história da vida a se tornar uma força geofísica; o ser humano, esse ser bípede, tão cabeça-de-vento, já alterou a atmosfera e o clima do planeta, desviando-os em muito das normas usuais; já espalhou milhares de substâncias químicas tóxicas pelo mundo inteiro e estamos perto de esgotar a água potável”(A Criação: como salvar a vida na Terra, 2008, 38). Pesaroso face a um quadro desses e sob a ameaça de um apocalipse nuclear se perguntava o grande filósofo italiano, do direito e da democracia, Norberto Bobbio: “a humanidade merece ainda ser salva”(Il Foglio n. 409, 2014, 3)?
Se não quisermos ser expulsos da Terra pela própria Terra, como os inimigos da vida, cumpre mudar nosso comportamento face à natureza, mas principalmente acolher a Terra como a ONU já em abril de 2009 o aceitou como Mãe Terra e como tal cuidá-la, reconhecer e respeitar a história de cada ser, vivo ou inerte. Existiram antes de nós e por milhões e milhões de anos sem nós. Por esta razão devem ser respeitados como o fazemos com as pessoas mais idosas e as tratamos com respeito e amor. Mais que nós, eles têm direito ao presente e ao futuro junto conosco.
Caso contrário não há tecnologia e promessas de progresso ilimitado que nos poderão salvar.
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Nosso lugar no conjunto dos seres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU