A última aparição pública de Fabrício Queiroz havia sido, até ontem, no dia 12 de janeiro de 2019, quando gravou um vídeo dançando num quarto de hospital, que acabou viralizando nas redes sociais. Desaparecido há um ano e meio, foi encontrado e preso ontem, em Atibaia, no litoral paulista, no apartamento de Frederick Wassef, advogado de Flávio Bolsonaro e, segundo o próprio Wassef, ex-advogado do atual presidente. O impacto repercutiu imediatamente em Brasília, tanto que Jair Bolsonaro, que costumeiramente dá atenção à claque que se instala na frente do Alvorada, passou direto e não deu atenção a seus apoiadores com quem conversa diariamente. As tensões ligadas ao amigo íntimo da família Bolsonaro se dão porque ele pode ser o elo principal da ligação do clã Bolsonaro com dois crimes, em investigação, dos quais são suspeitos de envolvimento: as “rachadinhas” da Alerj e o assassinato de Marielle Franco. "Os desdobramentos jurídicos e políticos desse conflito que se dá quase que exclusivamente no interior da classe dominante decidirá o destino do governo Bolsonaro e o futuro próximo do país", analisa Ricardo Musse, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
A prisão de Queiroz se dá em um momento de absoluta crise política, em meio às mais de 47 mil mortes por coronavírus no Brasil e no mesmo dia que Weintraub deixa o Ministério da Educação, depois de uma das mais críticas gestões da pasta e em um claro recuo frente ao Supremo Tribunal Federal - STF, a quem havia feito "ameaças" durante a reunião ministerial do dia 22 de abril em que parte da gravação foi divulgada. "Se a demissão de Weintraub que, na fatídica reunião ministerial do dia 22 de abril, defendera colocar atrás das grades os ministros do STF, indica uma aparente tentativa de armistício por parte do governo, a prisão de Queiroz faz com que aumente a sensação de cerco de Bolsonaro, o que tende a fazer com que apele para seus apoiadores mais radicais", aponta o professor Bernardo Ricupero, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
“Esse é um elemento novo, que acrescenta uma diferenciação e pode trazer uma precipitação desse quadro político que estamos vivendo. De que forma essa precipitação vai ser construída, quais as reações, como a Justiça de fato vai se posicionar diante de informações que possam apontar o comprometimento dos Bolsonaros com a estrutura miliciana, ainda não se sabe claramente”, pondera José Cláudio Alves em entrevista por telefone à IHU On-Line.
O momento de caos vivido no país, segundo José Cláudio, acaba ajudando o poder central, especialmente o presidente Jair Bolsonaro, que parece se favorecer desse cenário para se manter, ainda que sobre a corda bamba. “Esse cenário e todas essas crises em si mesmas acabam não solucionando essas questões, pelo contrário. Toda essa dissimulação, dispersão, todo esse cenário incontrolável, assustador, acaba fortalecendo e beneficiando a estrutura do poder que está no Planalto Central”, complementa.
Para Ricupero, pode parecer que está em curso uma espécie de 'moderação', mas há muitos outros fatores por trás. "Ressalto, porém, como a moderação do presidente é aparente e a estabilização do governo pode não passar de uma tentativa de estabilização. Já houve outros movimentos no sentido de moderação por parte de Bolsonaro que revelaram ser não mais que “recuos táticos” do líder de extrema direita", observa.
Musse observa como esse cenário em que o governo parece nadar sobre o caos sem balançar começa a mudar. Ele aponta como indicativo, por exemplo, o comportamento da direita autointitulada como 'progressista' que parece estar se descolando do governo e partindo para a ofensiva. "O consórcio DEM-PSDB-Rede Globo – hegemônico na “Nova República” até a chegada do PT ao poder em 2002 – decidiu enfrentar a extrema direita com o arsenal que se encontrava à sua disposição já em 2018, mas que calculadamente não foi mobilizado. Atacou o calcanhar de Aquiles da família Bolsonaro, a bifurcação de suas atividades em duas séries paralelas de ilegalidades: o iceberg de seus vínculos com o mundo do crime e a indústria das fake news", analisa.
José Alves (Foto: João Vitor Santos | IHU)
José Cláudio Alves é graduado em Estudos Sociais pela Fundação Educacional de Brusque. É mestre em Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio e doutor, na mesma área, pela Universidade de São Paulo - USP. É professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ.
IHU On-Line – O que significa a prisão de Fabrício Queiroz? Quais as repercussões políticas desse fato?
José Cláudio Alves – A prisão de Fabrício Queiroz era uma questão já dimensionada há muito tempo como determinante nas investigações em duas grandes questões no Rio de Janeiro: na operação que envolve as investigações relacionadas ao comprometimento de verbas de gabinetes parlamentares de deputados estaduais do Rio de Janeiro, entre eles o próprio Flávio Bolsonaro, com o esquema de construção e venda de imóveis ilegais pela milícia na zona oeste do Rio de Janeiro; e nas investigações sobre o crime de assassinato de Marielle Franco. Fabrício Queiroz era um elemento de ligação, por conta do relacionamento próximo que mantinha com Adriano Magalhães da Nóbrega, assassinado pela polícia numa operação na Bahia em fevereiro deste ano, como também era próximo ao Ronnie Lessa, que está preso como um dos envolvidos no assassinato da Marielle. Parece que havia uma proximidade entre esses personagens vinculados à milícia de Rio das Pedras e, assim, Fabrício Queiroz era uma figura chave, porque com a morte de Adriano Magalhães da Nóbrega, houve uma perda significativa de, talvez, um dos nomes mais importantes envolvidos nesses crimes que comentei.
Queiroz também participava de um esquema de altíssima movimentação financeira, que foi identificado na época pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras - Coaf. O Coaf identificou essas movimentações de milhões, que estavam completamente fora do padrão de rendimentos que Fabrício Queiroz possuía. Assim ele se tornou uma figura chave vinculada à família Bolsonaro, especialmente a Flávio, um dos filhos de Jair Bolsonaro. E, além disso, a prisão se deu no sítio do advogado que está atuando tanto para Flávio como para Jair Bolsonaro. Há uma conexão entre esses elementos.
Claro, não sabemos se, de fato, as investigações, os depoimentos, o processo judicial chegarão a ampliar e aprofundar todos esses elementos de unidade. Seria determinante para o Rio de Janeiro, para o Brasil e para o mundo trazer à baila os crimes que envolvem as milícias e que as fazem muito próximas da estrutura do poder central hoje no Brasil. Até agora, essas investigações não avançaram, pois houve muita obstrução judicial. Pode ser que agora o momento político faça com que o Judiciário efetivamente cumpra seu papel, o qual não vem cumprindo e que vem tratando de uma forma escamoteada e distendida.
Tudo isso leva a crer que a prisão dele é determinante, fundamental, e a obtenção de informações, talvez não tanto dele próprio, mas de celulares, dos computadores, dos arquivos, do material que foi apreendido, possa trazer elucidações importantes para a compreensão de tudo isso que estamos vivendo. De fato, percebo isso como muito muito importante. Vamos ver, agora, os desdobramentos dessa operação.
Sobre as repercussões políticas, penso que podem ocasionar um comprometimento da estrutura do poder central – ou mais um, porque são vários – chefiada por Jair Bolsonaro, pelos filhos e toda essa política que se instalou no poder central do Brasil. E as repercussões vão, também, depender das informações fornecidas por Fabrício Queiroz. Ele até agora tem, de forma absolutamente dissimulada e furtiva, ocultado essas informações. Obtendo-se as informações e comprovando a aproximação real entre a estrutura dos Bolsonaros e a dimensão miliciana de Rio das Pedras - e também na zona oeste do Rio de Janeiro de uma forma mais ampla a partir de mercados ilegais ou mesmo se houver comprovação da aproximação desse grupo com o assassinato de Marielle Franco - se tem, assim, um impacto significativo.
A estrutura política do Congresso vem se mantendo atada e prisioneira do poder central a partir do interesse na distribuição de emendas parlamentares, de negociações com o Centrão para a manutenção de Bolsonaro, no toma lá dá cá da velha política clientelista, fisiológica, absolutamente tomada e hoje comprometida com Bolsonaro. Aliás, ele negou que faria isso, mas está fazendo de uma forma muito intensa. A prisão do Queiroz e as informações decorrentes dessa prisão podem trazer um elemento que fuja a esse jogo do poder político central junto ao Centrão, que é a base fisiológica conservadora no Congresso Nacional, e possa permitir, então, um elemento outro, uma variável sem muito controle por parte do jogo político, uma variável já dada na mão da própria dimensão da Justiça Criminal.
Esse é um elemento novo, que acrescenta uma diferenciação e pode trazer uma precipitação desse quadro político que estamos vivendo. De que forma essa precipitação vai ser construída, quais as reações, como a Justiça de fato vai se posicionar diante de informações que possam apontar o comprometimento dos Bolsonaros com a estrutura miliciana, ainda não se vê claramente. Mas há uma hipótese, que se levanta no horizonte com muita intensidade, de que a morte de Adriano Magalhães da Nóbrega, em fevereiro, foi cronometrada para um ano eleitoral. Isso porque nesse contexto se permitiu o esquecimento de tudo, o apagamento de provas e evidências que poderiam estar com ele – estão com os três celulares que foram capturados com Adriano, mas essas informações não vieram à baila e penso que isso seja parte de uma negociação entre os Bolsonaros e o [Wilson] Witzel [governador do estado] no Rio de Janeiro.
Esse fato da prisão do Fabrício pode contornar tudo isso e trazer uma dimensão incontrolável e imponderável até o presente momento. Se ficar meramente num jogo de tensões, de informações ocultadas, de um jogo político baixo no submundo da política – o que é o mais comum no Brasil – tudo isso pode ficar apagado. Isso é mais comum no perfil do Judiciário e na relação e comprometimento dele com a política nos dias de hoje. Não é algo tão simples como possa parecer. Vai entrar agora em cena toda uma movimentação dos setores políticos, econômicos, tendo em vista o grande cenário deste ano que é o processo eleitoral municipal, localizada na capilaridade dessa estrutura de organização de poder que levou Bolsonaro ao governo central do país. Toda essa estrutura é importante e determinante para sua sobrevivência e aprofundamento das conexões dentro do espaço local para poder, em 2022, lutar pela manutenção, pela continuidade do aprofundamento desse projeto.
IHU On-Line – Além da prisão de Queiroz, o governo também está envolto em uma conjuntura de muita instabilidade, brigas e disputas políticas e, ainda, de pandemia e crise econômica. Como o senhor lê esse cenário?
José Cláudio Alves – Esse cenário e todas essas crises em si acabam não solucionando essas questões, pelo contrário. Toda essa dissimulação, dispersão, todo esse cenário incontrolável, assustador, acaba fortalecendo e beneficiando a estrutura do poder que está no Planalto Central. Eles tem à frente do processo o caos, a confusão, o conflito, as ações na Justiça, as prisões, as mortes pelo novo coronavírus. Tudo isso são materiais, combustíveis, alimentos fornecidos para a estrutura que levou Jair Bolsonaro ao poder.
Nessa estrutura, as Forças Armadas têm papel determinante e vêm sendo o grande fiador desse processo na sua dimensão de poder de sustentação. Também têm influência todas as dimensões religiosas, as não religiosas mas conservadoras, toda essa dimensão branca de poder racista, do poder homofóbico, LGBTfóbico, de grupos econômicos fortalecidos nessa lógica conservadora e que se apoiam. São também os grupos que estão destruindo a Amazônia, como o agronegócio, mineradores, grandes projetos que estão também sustentando essa estrutura de poder. E, por fim, ainda dão sustentação as camadas populares que se viram absolutamente deserdadas, abandonadas ao longo do tempo, mesmo com a estrutura de poder antiga do PT e da dita esquerda, que de certa forma não permitiu que essas camadas avançassem em termos de mobilidade social ascendente e que nada mais é do que o prolongamento do fosso econômico e social que o Brasil vive.
Até agora, o que vimos é que esses grupos se alimentam desses confrontos e se consolidam cada vez mais, ampliam sua força. Essa dimensão ilegal das milícias tem se expandido aqui no Rio de Janeiro e em todo o Brasil. Não vejo uma saída que se aproxime ou algo que seja mais fácil de resolver. É claro que provoca óbices, desistência, mas não percebo que isso ainda chegou a um momento decisivo e, pior, num ano eleitoral, isso pode se arrastar bastante.
Bernardo Ricupero (Foto: Arquivo pessoal)
Bernardo Ricupero possui graduação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo - USP, tendo realizado pós-doutorado pelo Colégio do México. É professor doutor da USP, trabalha com ênfase em História do Pensamento Político, atuando principalmente em temas como pensamento político brasileiro, pensamento político latino-americano, marxismo, nacionalismo e romantismo.
IHU On-Line – O que significa a prisão de Fabrício Queiroz? Quais as repercussões políticas desse fato?
Bernardo Ricupero – A prisão de Fabrício Queiroz ocorre coincidentemente no mesmo dia da demissão de Abraham Weintraub, do Ministério da Educação. Num primeiro momento, os dois fatos tendem a se chocar. Se a demissão de Weintraub que, na fatídica reunião ministerial do dia 22 de abril, defendera colocar atrás das grades os ministros do Supremo Tribunal Federal - STF, indica uma aparente tentativa de armistício por parte do governo, a prisão de Queiroz faz com que aumente a sensação de cerco de Bolsonaro, o que tende a fazer com que apele para seus apoiadores mais radicais.
Em termos mais diretos, a prisão do ex-assessor parlamentar de Flávio Bolsonaro, em casa de advogado da família, expõe os Bolsonaros, ao evidenciar que nunca cessou a ligação do ex-paraquedista com o colega de farda e seus filhos. Pode-se imaginar que, nos próximos dias, a imprensa lembrará incessantemente da “rachadinha” e de outras práticas pouco ortodoxas protagonizadas pelo primogênito dos Bolsonaros quando deputado estadual no Rio de Janeiro. Além disso, há a evidente ironia de a prisão se dar em Atibaia, cidade do “sítio de Lula”, um dos alvos principais da operação Lava Jato.
IHU On-Line – Além da prisão de Queiroz, o governo também está envolto em uma conjuntura de muita instabilidade, brigas e disputas políticas e, ainda, de pandemia e crise econômica. Como o senhor lê esse cenário?
Bernardo Ricupero – Voltando à primeira pergunta, diria que se a prisão de Queiroz e a demissão de Weintraub tendem, num primeiro momento, a se chocar, há uma grande possibilidade que, com o tempo, haja uma convergência em seus desdobramentos.
A demissão de Weintraub se liga a outras iniciativas recentes do governo, como a recriação do Ministério das Comunicações, a nomeação de um deputado do PSD para o cargo e o anúncio por parte de Paulo Guedes de uma Renda Brasil, pretensa renda mínima bolsonarista. Essas iniciativas indicam um aparente movimento no sentido da moderação por parte de Bolsonaro e uma tentativa de estabilização do governo. A moderação do presidente ocorreria com o aprofundamento da relação com o Centrão, que deveria evitar a possibilidade da realização do impeachment pelo Congresso. Já a estabilização do governo poderia ocorrer, tendo como principal mecanismo a “fidelização” de segmentos mais pobres da população que passaram a receber o auxílio emergencial devido à pandemia do coronavírus e cujo apoio tem evitado que a aprovação de Bolsonaro caia ainda mais nas pesquisas de opinião.
Apenas uma tentativa de moderação?
Ressalto, porém, como a moderação do presidente é aparente e a estabilização do governo pode não passar de uma tentativa de estabilização. Já houve outros movimentos no sentido de moderação por parte de Bolsonaro que revelaram ser não mais que “recuos táticos” do líder de extrema direita. Quanto à possibilidade da anunciada Renda Brasil ser uma espécie de Bolsa Família de Bolsonaro, é preciso ressaltar que é duvidoso que a iniciativa encontre um terreno fácil pela frente. Em primeiro lugar, é questionável que uma equipe econômica fiscalista aposte num programa que possa aumentar significativamente os gastos governamentais. Além disso, estamos vivendo o início da maior recessão da história brasileira.
Num sentido oposto, as recorrentes ameaças de Bolsonaro a um golpe já não parecem ter o mesmo impacto que tiveram no início da crise do coronavírus. Talvez principalmente em razão de que, ao serem incessantemente repetidas, perderam muito de sua credibilidade. É possível que as inventivas retornem com a prisão de Queiroz. Por outro lado, se o apoio entre os militares já não era certo – concentrando-se em generais da reserva com cargo no governo – agora ele se torna ainda mais duvidoso, já que não parece ser do interesse das Forças Armadas associar-se à defesa de familiares do presidente envoltos em práticas ilícitas. Uma possibilidade alternativa é o governo, na tentativa de se “blindar”, aprofundar a aproximação com o Centrão. É nesse sentido que a prisão de Queiroz tende a convergir com a demissão de Weintraub.
No entanto, a dependência do Centrão é sinal de extrema fragilidade. Pode garantir a sobrevida do governo, mas com um custo enorme. Para pensar em exemplos recentes, está mais próxima da situação do governo de Michel Temer, depois do “Joesley day”, do que o governo Lula, depois do “Mensalão”. Além disso, como descobriu Dilma Rousseff, essa base pode rapidamente se esvair. No caso de Bolsonaro, o avanço da pandemia e, junto com ela, da recessão criarão um quadro que, no mínimo, pode ser caracterizado como incerto.
Ricardo Musse (Foto: Flickr CC)
Ricardo Musse é professor associado no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo – USP. Livre-docente e doutor em Filosofia pela USP, mestre em Filosofia pela UFRGS. Tem experiência em pesquisas e docência nas áreas de sociologia e de filosofia, com ênfase em teoria sociológica. Seus temas de pesquisa são teoria crítica da sociedade, sociologia do marxismo, teoria social, sociologia e filosofia alemã. Entre suas publicações, destacamos Émile Durkheim: fato social e divisão do trabalho (São Paulo: Ática, 2007) e Capítulos do Marxismo Ocidental (São Paulo: Fapesp/Unesp, 1998).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que significa a prisão de Fabrício Queiroz? Quais as repercussões políticas desse fato, num momento em que o governo parece mergulhado em crises?
Ricardo Musse – O conjunto das justificativas para a prisão preventiva no dia 18 de junho de 2020 de Fabrício Queiroz, elencadas no mandato de prisão expedido pelo juiz Flávio Itabaiana, permitiria perfeitamente que sua detenção fosse feita já em novembro de 2018, quando veio a lume o escândalo das rachadinhas da Assembleia Legislativa - Alesp-Rio. Sua efetivação neste momento preciso atesta a corrosão do poder da família Bolsonaro.
A coalizão eleitoral que elegeu Jair M. Bolsonaro foi composta pelos segmentos mais poderosos da política e da economia brasileira. Uma aliança assentada, sobretudo, em dois pontos de um programa comum: excluir ou tornar inoperante a ação política da representação da classe trabalhadora, seus partidos e sindicatos; implantar um novo choque, em registro hard, de neoliberalismo. O acordo em relação a estes dois pontos gerou uma inédita convergência entre a oligarquia política e as diversas frações da classe capitalista, a agrária, a industrial e a financeira; os grupos associados ao setor externo e os voltados para o mercado interno; o grande, o médio e o pequeno empresariado. Essa associação, construída ao longo dos mandatos de Dilma Rousseff, cristalizou-se com golpe que derrubou a presidenta petista, direcionou o governo de Michel Temer para a execução de um programa denominado “Ponte para o Futuro” e teve seu ápice nas eleições de 2018.
A coalizão no governo, na impossibilidade de satisfazer essa pletora de interesses heterogêneos e contraditórios, manteve-se numa situação de permanente equilíbrio instável, em uma disputa acirrada e nunca decidida entre diversos círculos pelo comando na determinação das diretrizes e na condução do governo. Essa instabilidade estrutural adquiriu novos contornos com a chegada ao país da pandemia do coronavírus. Bolsonaro e seu grupo de seguidores fiéis identificaram na crise sanitária, econômica e social a oportunidade de acelerar o projeto de implantação de um governo autoritário sacramentando-o como um espécie de novo Führer. Esse movimento brusco causou dissensões e fragmentações que intensificaram o processo – já em curso desde a posse – de desintegração do bloco no poder.
A face mais visível desse desdobramento foi a saída do governo do ministro da Saúde Henrique Mandetta, uma indicação do DEM e de um expressivo grupo de deputados; e, na sequência, a demissão do ministro Sérgio Moro, representante mor do “lavajatismo” com apoios expressivos e quase majoritários no Judiciário, na mídia corporativa e na classe média tradicional.
O bolsonarismo (um ramo local do movimento neofascista do hemisfério norte) frutificou no solo adubado pelo movimento cultural dito pós-modernista e pela reconfiguração da subjetividade e da identidade individual promovida pela sociabilidade neoliberal. Os teóricos do “pós-modernismo” disseminaram a ideia de que qualquer forma de saber, inclusive o discurso científico, constitui apenas uma “narrativa” sujeita à disputa. Assim, embaralhando as esferas dissociadas ao longo da modernidade, transformaram tudo em luta pelo poder, logo, em política (embora se anunciem como uma antipolítica).
As formas determinantes de configuração da identidade neste período de hegemonia neoliberal hipertrofiaram a ação individual num mundo hobbesiano de “cada um para si” (e deus contra), destruindo os últimos resquícios dos vínculos sociais comunitários. As modalidades específicas enfeixadas no movimento neofascista brasileiro adquiriram características próprias numa sociedade marcada por heranças quase imorredouras: o escravagismo, o patriarcado, o patrimonialismo e a inquisição.
Essa conjugação explica por que uma parcela expressiva da sociedade brasileira (embora não majoritária quando se leva em conta os que se abstiveram ou anularam o voto) preferiu escolher a arma e não o livro, o militar e não o professor. O “terraplanismo”, o desprezo pela técnica, pelo especialista, pela ciência e no limite pelo raciocínio e pela ação racional mostrou seus limites de forma inequívoca nas orientações da condução por Bolsonaro, e sua equipe de governo, da emergência sanitária provocada pela Covid-19.
A intensidade da disseminação do coronavírus, a inação e a ineficácia das medidas recomendadas pelo governo, o protagonismo que Jair Bolsonaro adquiriu como “negacionista” derreteram a avaliação positiva e o apoio ao governo. O campo da batalha não era evidentemente o mais propício para o ex-militar, afinal, diante da doença tem mais crédito a especialidade e o saber científico encarnado pelos médicos que a crença, o acolhimento que a repreensão, a solidariedade que o individualismo.
No âmbito restrito da atividade política assistimos desde então à reconstituição da direita que se diz “liberal-democrática” (as aspas são necessárias para lembrar sua participação ativa no golpe de 2016), o que instaurou a tripartição da vida política brasileira em extrema direita, direita e centro-esquerda. A divisão no campo da direita repete em muitos pontos a cisão então desencadeada durante a transição da ditadura para o regime civil (1974-1985) entre o grupo que insistia na manutenção da forma política ditatorial e a composição que promoveu a “Nova República”. As famílias da oligarquia política e da grande mídia, os grupos econômicos mais engajados no processo são quase os mesmos, com poucas diferenças. No ritmo hiperacelerado pela pandemia em poucos meses repete-se o que outrora levou anos, por exemplo, o esfriamento do entusiasmo da classe média tradicional e de setores do capital por formas autoritárias de dominação política.
A direita que se descolou do governo passou imediatamente à ofensiva. O consórcio DEM-PSDB-Rede Globo – hegemônico na “Nova República” até a chegada do PT ao poder em 2002 – decidiu enfrentar a extrema direita com o arsenal que se encontrava à sua disposição já em 2018, mas que calculadamente não foi mobilizado. Atacou o calcanhar de Aquiles da família Bolsonaro, a bifurcação de suas atividades em duas séries paralelas de ilegalidades: o iceberg de seus vínculos com o mundo do crime e a indústria das fake news.
Os desdobramentos jurídicos e políticos desse conflito que se dá quase que exclusivamente no interior da classe dominante decidirá o destino do governo Bolsonaro e o futuro próximo do país. A representação política da classe trabalhadora, o leque de partidos de centro-esquerda, constitui a única força efetivamente comprometida com a democracia no país. Se ela não conseguir sair do isolamento político e social ao qual foi coercitivamente confinada, continuaremos, com ou sem a família Bolsonaro, numa democracia de fachada, num regime pseudoconstitucional.