Por: Patrícia Fachin | Edição João Vitor Santos | Tradução Vanise Dresch | 15 Fevereiro 2017
O noticiário internacional não tem rendido manchetes positivas, segundo o professor de Ciências Econômicas na Université de Technologie de Compiègne - Sorbonne Universités, na França, Yann Moulier Boutang. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Boutang tece uma série de análises sobre fatos geopolíticos que marcaram o ano que passou. Para ele, 2016 será lembrado pelo “Brexit, a eleição de Donald Trump, a situação na Turquia, a intervenção russa na Síria com a tomada de Aleppo e a questão dos refugiados, a generalização do confronto Irã/ Arábia Saudita ao resto do mundo árabe e o desafio do terrorismo na Europa, a crise brasileira, a tensão no Mar da China e a situação chinesa interna”. Por outro lado, chama a atenção para o fato de que “o apaziguamento das relações entre os Estados Unidos e Cuba e o fim da guerra civil na Colômbia representam boas notícias”.
Boutang também aborda as principais tensões internacionais, assuntos que estão na pauta e que precisam ser enfrentados por países de Norte a Sul, de oriente a ocidente. O primeiro deles diz respeito ao futuro do planeta. “A questão da transição ecológica, na qual um dos pontos – mas não o único – é a transição energética para lutar contra o aquecimento climático”, aponta. O segundo diz respeito à “poluição dos solos, dos rios, a escassez da água, a poluição do ar nas grandes metrópoles, onde se concentrarão 85% da população mundial até 2050”. E, por fim, a emergência de se repensar as consequências da financeirização da vida, que se mostrou incapaz de enfrentar nossos grandes desafios: preservar o planeta e resolver o problema da pobreza em uma sociedade cada vez mais desigual.
Contudo, para o professor, não será possível conceber um quadro melhor para 2017. “É nesse terreno fértil em contradição que fecundam fenômenos como os confrontos inter-religiosos (xiitas/ sunitas, islã, budismo), os conflitos entre maioria e minorias e o recente crescimento de populismos essencialmente de direita (Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, França, Hungria, Holanda, Itália), mas também de esquerda (Espanha, França)”, adverte. Para ele, esses fenômenos, que não são novos, nada têm a ver com autonomia. “Travestem-se em ‘guerra das civilizações’ encenadas pelo terrorismo fundamentalista e por um populismo reacionário, mas tratá-los separadamente das contradições profundas que os alimentam leva somente a um teatro de sombras sem fim”.
Boutang: "O imperativo ecológico do bem-viver se impõe, assim como aquele da luta contra as desigualdades" (Foto: Ricardo Machado| IHU)
Yann Moulier Boutang é professor de Ciências Econômicas na Université de Technologie de Compiègne - Sorbonne Universités, na França, membro do laboratório Connaissance, Organisation, Systèmes Techniques - COSTECH EA 22 23, Trivium CNRS. Leciona também na China, na Universidade de Shanghai - UTSEUS, na Ecole Nationale Supérieure de Création Industrielle - ENSCI, Paris, no curso Master Innovation by Design. É um dos fundadores e coordenadores da revista Multitudes. Trabalha com o tema das migrações internacionais, a escravidão, as transformações contemporâneas do capitalismo, a economia digital, os direitos de propriedade intelectual, a inovação. Entre suas obras mais recentes, estão Cognitive capitalism (2012, Polity Press, Cambridge, UK) e L’abeille et l’économiste (Paris 2010).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Fazendo uma retrospectiva de 2016, para o senhor, quais foram os fatos políticos internacionais mais marcantes e significativos em termos internacionais?
Yann Moulier Boutang - Por ordem de importância: o Brexit, a eleição de Donald Trump, a situação na Turquia, a intervenção russa na Síria com a tomada de Alepo e a questão dos refugiados, a generalização do confronto Irã/ Arábia Saudita ao resto do mundo árabe e o desafio do terrorismo na Europa, a crise brasileira, a tensão no Mar da China e a situação interna da China. E, por fim, a estabilização da situação na América Latina com a normalização das relações entre Cuba e os Estados Unidos, bem como o fim da guerra civil na Colômbia. Como muitas das perguntas a seguir dizem respeito ao Brexit, ao futuro da União Europeia e à catástrofe Trump, tratarei aqui das outras questões. Começo por uma constatação preliminar: as notícias internacionais têm sido realmente ruins.
O confronto violento que opõe atualmente xiitas iranianos e árabes aos sunitas em sua maioria árabes ou turcomanos e a ruptura da ordem instaurada pelos europeus por ocasião da desintegração do Império Turco no final da Primeira Guerra Mundial são uma extensão da reconfiguração dos Balcãs que ocorreu na década de 1990 com a desintegração da Iugoslávia. A Turquia constitui a zona de fratura política, não somente entre a Europa e o mundo árabe, mas também com o mundo eslavo da Rússia ou de suas antigas colônias. A questão curda no Iraque e na Síria repercute fortemente na Turquia – onde 10% da população e 25% do território são formados por curdos –, que quer evitar a qualquer custo a formação de uma nação curda a partir de suas minorias iranianas, iraquianas, sírias e turcas.
Não é à toa que a questão dos refugiados das guerras civis no Oriente Médio atinge a Europa pela Turquia e que a situação muito instável da África alcança a Líbia, também exposta a uma guerra civil. Os europeus criticam, com razão, o “muro ininterrupto” que Trump quer construir entre os Estados Unidos e o México, mas a União Europeia assinou com a Turquia – e está prestes a fazer a mesma coisa com a Líbia – um muro bem mais hipócrita e mais assassino. Ela vê o cisco no olho do seu aliado, mas não vê a trave no seu próprio olho.
A segunda má notícia é o recuo do crescimento dos países emergentes. A queda brutal das exportações após 2008 foi combatida com planos robustos de retomada na China, no Brasil e na Índia. Essa retomada, no entanto, configurou-se na construção de um projeto de desenvolvimento do mercado interno baseado no crédito e na corrupção, com liberação de crédito aos particulares. Pela incapacidade de uma verdadeira redução das desigualdades, é muito difícil que o alcance de um crescimento autocentrado tenha êxito.
A boa notícia dessa má notícia é o fato de que as políticas de industrialização desenfreada em detrimento do meio ambiente, com um aumento colossal da poluição nas grandes cidades e a contaminação dos solos e dos rios, demonstraram seus limites. O imperativo ecológico do bem-viver se impõe, assim como aquele da luta contra as desigualdades. São questões críticas tanto nos países emergentes quanto nos países desenvolvidos. A queda de Dilma Rousseff não resolveu a situação brasileira. O presidente Michel Temer parece tão desgastado em um ano quanto sua predecessora em quatro anos.
A evolução da China, por sua vez, foi marcada por um fortalecimento considerável do poder do presidente Xi Jinping, algo nunca visto desde Mao, como se o regime se preparasse para sérias dificuldades internas. A luta contra a corrupção completada pela recente campanha para apurar o envolvimento de diferentes instâncias do partido e de suas instituições têm levado a um expurgo constante. Se as relações da China com seus vizinhos, aliados dos Estados Unidos (Coreia do Sul, Japão, Filipinas), se deterioram, principalmente com a construção de verdadeiras ilhas artificiais no mar, e se essa evolução parece preocupante, é, sobretudo, porque isso poderia repercutir nas dificuldades internas do Império do Meio (tanto em Hong-Kong quanto em Taiwan).
Em contrapartida com essas más notícias, o apaziguamento das relações entre os Estados Unidos e Cuba e o fim da guerra civil na Colômbia representam boas notícias. Embora a eleição de Trump e a consequente deterioração brutal das relações dos Estados Unidos com o México possam pôr em xeque essa normalização.
IHU On-Line - Como o senhor tem interpretado o Brexit? A saída do Reino Unido da União Europeia foi ou não positiva e quais as consequências que essa medida tende a gerar nos próximos anos?
Yann Moulier Boutang - Escrevi um artigo (Brexit: une sortie qui vient de loin, Multitudes #64 Fall 2016, pp. 9-22) acerca do meu pensamento sobre essa guinada. Para resumi-lo (os acontecimentos que sucederam desde então não modificaram minha opinião): a adesão do Reino Unido ao projeto de formação dos Estados Unidos da Europa nunca se confirmou. Esse país, que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, persistiu em sua busca de uma relação privilegiada com os Estados Unidos da América, tentou inicialmente opor uma associação de livre comércio a todos os projetos sucessivos, até o Tratado de Roma de 1957.
Quando ficou evidente que não seria possível sabotar a construção europeia a partir do lado de fora, o Reino Unido solicitou, já em 1964, o ingresso na Comunidade Econômica Europeia. O que só se concretizou mais tarde, em 1972. A reivindicação de Margaret Thatcher, ao chegar ao poder, de um status particular para o seu país (I want my money back) foi reveladora. A queda dos países do Leste Europeu e a ampliação da União ao sul e ao leste levaram a estratégia britânica a defender uma ampliação, e não um aprofundamento da Comunidade Econômica, com a esperança de fazê-la evoluir para uma associação de livre comércio.
Todavia, esse projeto fracassou e, apesar da reivindicação de um status particular (permanecer fora do espaço Schengen, não adotar o euro), os governos britânicos sucessivos se deram conta de que nada podia interromper a marcha dos Estados-membros, quer fosse sob a forma de confederalismo (fortalecimento da cooperação entre as Nações) ou em forma de federalismo progressivo (papel crescente da Corte de Justiça do Luxemburgo – verdadeira Suprema Corte –, do Banco Central Europeu, aumento das áreas de competências exclusivas da União). A rejeição ao Tratado Constitucional em 2005 fez com que acreditassem que a marcha rumo a uma integração política cada vez maior seria finalmente barrada. Porém, a crise de 2008 e o agravamento da situação às portas da Europa levaram à retomada do avanço da unificação. Sem tratado constitucional, sem bandeira ou hino, a União Europeia aprovou os dispositivos práticos essenciais do Tratado Constitucional em Lisboa, em 2011.
A constatação pelos governos britânicos sucessivos de que não conseguiam conduzir a marcha para o federalismo os levou a um verdadeiro tudo ou nada: usar a arma do referendo sobre a saída da União Europeia como chantagem. O plano britânico de David Cameron era ganhar apertado para a permanência na União, conseguindo ao mesmo tempo invocar uma grande minoria hostil para obter concessões, em especial a eliminação, no preâmbulo dos Tratados, da famosa frase: “Os países-membros desejam estabelecer entre si uma união cada vez mais estreita”.
A estratégia de permanecer dentro da União para melhor impedir que se constituíssem os Estados Unidos da Europa fracassou quando os eurocéticos ingleses ganharam o Brexit por uma pequena maioria. O complicado jogo de Cameron voltou-se contra o seu próprio plano tático. Os verdadeiros europeus se deram conta de que, com a saída dos britânicos, seria muito mais fácil fazer avançar a União. Longe de presenciar o início do fim da União Europeia, esse Brexit é uma etapa da batalha federalista que se travou. Ninguém sabe se o partido federalista ganhará a curto prazo contra os partidários do status quo ou de um fortalecimento ilusório da Europa das Nações nessa situação criada pela saída muito complicada, apesar de inexorável, do Reino Unido, mas todo mundo concorda, deste lado do Canal da Mancha, que uma Europa federal seria impossível se o Brexit não tivesse acontecido.
As tensões políticas atuais com a Rússia (Crimeia/ Ucrânia, Países Bálticos, Noruega) e as novas pressões de Trump acerca do financiamento europeu da Organização do Tratado do Atlântico Norte - OTAN desencadearam um pensamento súbito: o de uma integração da defesa europeia. O fato de a França ser o único país da União Europeia dotado de arma nuclear e de capacidade de projeção externa facilitará muito as coisas. O Reino Unido (que também dispõe de uma defesa) se opunha a qualquer defesa integrada e exigia que tudo fosse feito pela OTAN. Em muitas áreas, a ausência do Reino Unido vai fazer com que avancem soluções de cooperação reforçada ou simplesmente de integração federal.
Longe de provocar um contágio, a saída britânica mostra em todos os níveis (econômico, jurídico, etc.) que a integração da produção e as migrações nos dois sentidos estão muito avançadas e que a estratégia de Theresa May de colar nos EUA, de resgatar um papel mundial imperial, não é viável para os outros (isso corresponde também a uma miragem dos ingleses, que não se consolam em se terem tornado uma potência média).
A Polônia, assim como a Alemanha, que eram indulgentes em relação à posição dos britânicos na União, mudaram muito. Por fim, ao confiarem a Michel Barnier a condução das negociações de saída, os 27 países-membros não facilitaram nenhum pouco as coisas, e é mais que duvidoso que o Reino Unido obtenha o que deseja: o acesso ao mercado, o passaporte europeu para que as instituições financeiras da praça de Londres possam operar no continente e, ao mesmo tempo, o controle exclusivo sobre a entrada de trabalhadores da UE.
Poderíamos dizer em tom de boutade: em um contexto em que a Europa tem de enfrentar múltiplos desafios (desemprego, austeridade, política industrial, política fiscal, política social, união bancária, luta contra o terrorismo, política estrangeira), se o Brexit não tivesse existido, seria necessário inventá-lo!
IHU On-Line - Nos últimos anos, muitos têm discutido sobre o sentido de manter a União Europeia, dado que muitos países europeus têm enfrentado crises econômicas e financeiras. Na sua avaliação, a União Europeia ainda tem sentido? Quais são as razões para mantê-la ou não?
Yann Moulier Boutang - A construção europeia é um movimento profundo, complexo. É oriunda de uma experiência contínua de mais de dois mil anos de história. Uma história feita de guerras, impérios, estados grandes e pequenos, nações. Somente a China tem uma história tão longa assim. A Europa é, com o Japão, o único bloco de países que viveu o colapso decorrente de duas guerras mundiais, a colonização, a descolonização. Ela já é pós-nacional. O país-membro mais poderoso da União, a Alemanha, foi privado dos atributos clássicos de uma soberania nacional (o direito de declarar guerra).
A União Europeia representa uma entidade totalmente nova, feita de várias tradições jurídicas. Sua construção é compósita, híbrida, e parece mais frágil que a de um Estado-Nação integrado ou de um Império. O Povo Europeu [grifo do entrevistado] está por vir, é proléptico, diferentemente das velhas ou mais recentes Nações que o compõem. Certo é que a Europa não é simplesmente um grande mercado de livre comércio, como desejavam os britânicos. Ainda não é uma potência federal, mas tende cada vez mais a avançar nesse sentido, e o fez em tempo recorde se comparada aos Estados Unidos.
A Europa absorveu e continua absorvendo Estados-membros. Tudo o que existe em torno dela, tanto ao sul quanto a leste só tem um desejo: fazer parte dela (Geórgia, Ucrânia, Servia, Albânia, Macedônia, Moldávia, Bielo-Rússia, até mesmo a Turquia ou ainda a Rússia). A questão de uma fragmentação da Europa é muito retórica entre os europeus e um wishful thinking entre muitos americanos e russos. Toda vez que o projeto político de unificação europeia pareceu fracassar, ele se reergueu. Muitos economistas americanos previram o fim do euro (os britânicos também esperavam por isso). Nada disso aconteceu, e o Banco Central Europeu se tornou uma das instâncias federais mais fortes da União. Sem ele, a crise econômica pela qual passaram todos os Estados-membros em graus diversos teria sido dez vezes pior.
Mesmo que eu prefira uma União Europeia mais assentada à esquerda, menos neoliberal, menos austera, mesmo que seja necessário lutar, dentro do Parlamento Europeu, para alcançar mais democracia diante do Conselho Europeu, excessivamente confederalista (com direito de veto e a regra ultrapassada da unanimidade para reformar os tratados), mesmo que os partidos políticos ainda tenham que se reorganizar com uma base europeia e não nacional, a União Europeia é o único futuro dos minúsculos Estados-Nações, a única garantia de evitar a guerra, de defender os valores da civilização mundial. E não será a ascensão de Trump, Putin, Xi Jinping e outros que me fará mudar de opinião.
Para ser franco, acho a sua pergunta tão ofensiva a mim e à União Europeia quanto perguntar-lhe se você acredita que a República Federativa do Brasil ainda tem sentido uma vez que Sergipe e Rio Grande do Sul atravessam dificuldades econômicas e têm grandes disparidades de desenvolvimento. Sou cidadão europeu, e a França é apenas uma província da União. E assim será cada vez mais.
Portanto, faz 30 anos que essa questão não se discute mais. A União Europeia não é uma confederação da qual Estados-membros soberanos poderiam sair. Até o Tratado de Lisboa, nunca havia sido previsto o menor dispositivo de saída de um Estado-membro (a expulsão de um Estado-membro, sim).
IHU On-Line - Um dos temas polêmicos deste último ano foi a situação dos imigrantes e refugiados e a resistência de alguns países em recebê-los. Quais são, na sua avaliação, as questões que devem ser analisados quando se trata de compreender essa questão?
Yann Moulier Boutang - Precisamos separar três questões que são diferentes: a questão das migrações de trabalhadores internos à União Europeia, aquela das migrações internacionais (grupos de famílias, migrante econômico) e, por fim, a da chegada excepcional de refugiados provenientes de zonas em guerra, sobretudo, em guerra civil. Elas não têm muito a ver uma com a outra, exceto o fato de que essas populações se acumulam atrás dos arames farpados que foram colocados nas fronteiras a leste e ao sul da União Europeia.
Além disso, três outros fatores complicam ainda mais esse cenário. O ponto de chegada desejado pelas três populações dessas migrações é geralmente o Reino Unido, por diferentes razões, entre as quais a já presença nesse país de cidadãos dos países do Oriente Médio, o dinamismo inglês em certos setores econômicos (pesca, agricultura, serviços de comércio no varejo), que atraem também muitos trabalhadores da própria União Europeia, poloneses em sua maioria, mas também muitos jovens franceses, italianos, espanhóis, gregos. Ora, o Reino Unido, que é membro de fato da União (sendo obrigado a respeitar a livre circulação de cidadãos dos outros Estados-membros), não é signatário do espaço Schengen e manteve suas fronteiras nacionais. Conforme os acordos de Schengen, há livre circulação dentro de seu espaço. Em relação aos migrantes internacionais, o controle cabe ao primeiro país de entrada no espaço Schengen. Assim, a Grécia, por exemplo. Porém, como o Reino Unido não faz parte de Schengen, ele assinou um acordo vergonhoso com a França do presidente Sarkozy para que os migrantes que conseguirem ingressar no espaço Schengen passem por um controle na França antes de entrarem em solo britânico.
Foi esse acordo pago generosamente pelo Reino Unido que criou Calais, durante mais de seis anos. No outro extremo da Europa, reina a mesma incerteza, pois a Turquia, plataforma giratória dos fluxos de refugiados da Síria, era (e continua sendo) candidata a fazer parte da União Europeia. Com o empurrão da Alemanha, não foi construído um muro à moda Trump, mas, sim, de forma mais eficaz, foram destinados bilhões a esse país, cujo regime se afunda num autoritarismo crescente, para reter em seu território os novos fluxos. Isso acontece desde 2016. O mesmo “muro” invisível está sendo negociado com a Líbia, mas o que está atrasando a implementação dessa solução é a instabilidade política desse país devastado pela guerra civil.
A questão das migrações passou a ser um marcador das dissensões dentro da União Europeia: Angela Merckel quis acolher a onda de refugiados e optar por uma distribuição federalista dos migrantes por meio de cotas destinadas a cada país em função de seu PIB, do número de imigrantes já presentes em seu território. Os outros Estados não a seguiram. Enquanto a Alemanha aceitava mais de 1 milhão de migrantes em três anos, a França recebia apenas 160 mil. Quanto aos pequenos Estados da Europa Central, como a Hungria, a Eslováquia, a República Tcheca, houve uma verdadeira rebelião. A questão das migrações não é um problema de invasão: 5 milhões de refugiados por ano durante três anos (o que absorveria o fluxo de refugiados) representariam apenas 7% dos 540 milhões de habitantes de uma União Europeia que está envelhecendo rapidamente.
Os fluxos econômicos tradicionais a partir dos países em vias de desenvolvimento, da África essencialmente, deveriam ser regulados por políticas de cooperação muito mais dinâmicas e, sobretudo, por uma federalização real do problema do controle das fronteiras. A força europeia encarregada essencialmente do policiamento marítimo desde o Estreito de Gibraltar até as ilhas do Mar Egeu, passando por Lampedusa, entre a Sicília e a Tunísia, ainda é muito fraca, principalmente o controle das fronteiras do leste da União Europeia delegado aos Estados-membros, que foi um desastre porque muitos desses países, como a Hungria, quiseram simplesmente desrespeitar a política comunitária. Só cederam mediante a ameaça de sofrerem sanções financeiras.
No que se refere às migrações internas à União Europeia, o problema está nas migrações de trabalhadores que afluem para países não membros do espaço Schengen, mas membros da União Europeia (caso do Reino Unido), e para países europeus não membros da UE, como a Noruega e a Suíça). Essa é a questão dos profissionais que se deslocam em missão de trabalho. Se participarem de missões inferiores ao período de um ano, geralmente ficam vinculados ao sistema de proteção de seus países de origem, pois são empregados por empresas terceirizadas de seus próprios países, e não do país onde trabalham, com salários e condições de trabalho e proteção bem inferiores. Na verdade, o que está em discussão é a homogeneização das condições sociais. Juntamente com o dumping social que é cada vez menos aceito pelos sindicatos e pelos trabalhadores.
Por fim, essa questão da livre circulação e de sua estreita conexão com o Mercado Único está no centro das negociações entre a UE e o Reino Unido, que quer se beneficiar da livre circulação de mercadorias sem ser obrigado a aceitar migrantes europeus. Podemos, então, dizer que: 1) trata-se de um grande desafio estratégico e simbólico; 2) uma resposta deixada aos cuidados de cada um dos Estados conduziu até agora e conduziria ainda a efeitos muito negativos para o projeto de união cada vez mais estreita.
IHU On-Line - Outro tema polêmico na Europa tem sido as ações dos terroristas, especialmente envolvendo o ISIS. Como o senhor tem avaliado e compreendido os ataques que aconteceram no último ano em toda a Europa?
Yann Moulier Boutang - Toda a Europa tem sido afetada pelo terrorismo desde 1998. O ISIS, último avatar do terrorismo, tem sido particularmente violento, mas desde Munique (1972), a partir da questão palestina, e depois a guerra civil na Argélia entre o exército e a Frente Islâmica da Salvação, até chegar a Al-Qaeda e, por fim ao Daesh, a Europa em sua periferia sul e médio-oriental nunca esteve livre dos sobressaltos políticos. Com o ISIS e a guerra da Síria (bem maior que as guerras do Afeganistão e do Iraque), a novidade é o papel desempenhado por jovens migrantes (em segunda ou mesmo terceira ou quarta geração) ou então por jovens convertidos a um islã salafista (portanto, radical) não só nos atos terroristas em território europeu, mas também na guerra da Síria. Num contexto de desintegração da Líbia, de manobras no Sahel e de guerra de influência ferrenha entre os Estados sunitas da Península Arábica, consideramos extremamente complexa a questão do terrorismo.
Certos países da Europa, antigas potências coloniais como o Reino Unido e a França, têm uma política “africana”, “árabe”. A Alemanha mantém uma política claramente orientada para a Turquia, não só em função de suas tradições históricas, mas também, e sobretudo, devido à extensão da comunidade turca presente em seu solo. No nível europeu e federal, o embrião da política estrangeira e da segurança tem dificuldade de expressão. Desde o Tratado de Lisboa, teoricamente, a UE tem uma ministra das relações exteriores, mas a senhora Mogherini tem pouquíssima autonomia e pouquíssimos recursos. Nesse sentido também, a Europa se vê diante da necessidade de agir em nível federal se quiser mobilizar os países pequenos, os quais estão acostumados a dispor do escudo da OTAN, financiada essencialmente pelos Estados Unidos. No caso do terrorismo, a cooperação se mantém essencialmente interestatal. É provável que se desenvolva uma maior integração da defesa e dos serviços de informação.
IHU On-Line - Como estão as discussões sobre as eleições de 2017 na França? Pode nos falar brevemente sobre os candidatos e suas agendas? Quem seria o presidente ideal para a França neste atual momento?
Yann Moulier Boutang - As eleições presidenciais e legislativas francesas serão nesta primavera, e, no outono, na Alemanha, haverá eleições legislativas, das quais dependerá o destino da chanceler Angela Merkel. Esses dois países pesam juntos 48% do PIB global da União (mesmo com o Reino Unido, mas, com mais forte razão, quando este se retirar). Não se tem mais certeza de que Angela Merkel vença o Partido Social Democrata Alemão - SPD, na sigla original (Sozialdemokratische Partei Deutschlands).
Na França, a incerteza é total. Duas coisas são certas, apesar de não resolverem nenhum problema: 1) Marine Le Pen e o Front National chegarão em primeiro lugar no primeiro turno, com cerca de quase um quarto dos eleitores, o que é preocupante para 2022, considerando o seu programa antieuropeu, 2) Qualquer que seja o grau de decomposição e fragmentação das outras forças políticas, mesmo as minúsculas, como o Partido Verde, o centro de François Bayrou, Marine Le Pen será amplamente vencida em segundo turno (entre 65 e 75 % dos votos), o que é tranquilizador.
O mérito disso é justamente a consolidação do eleitorado em outras cinco forças: três da esquerda – Mélenchon, de extrema esquerda, Hamon, pelo Partido Socialista, que resgata sua unidade e seu matiz, e Jadot, candidato do Partido Verde; dois movimentos entre esquerda, centro e direita liberal (Macron e Bayrou); e a direita, com os republicanos, embora seu candidato esteja atravessando uma tempestade por fatos que revelaram nepotismo (emprego fictício de sua esposa e de seus filhos) e que o fizeram passar, em menos de três semanas, da condição de vencedor quase certo àquela de provável descartado para o segundo turno.
As primárias dos partidos e a eleição propriamente dita foram mortíferas para os candidatos que participaram de governos anteriores e do atual governo, de maioria socialista, mas também os de direita: Hollande, Valls, Sarkozy, Juppé foram eliminados. Todos eles antigos Presidentes da República ou Primeiros Ministros. Se continuar o escândalo François Fillon, não se sabe se sua pontuação o levará ao segundo turno. Benoit Hamon e Emmanuel Macron têm em comum o fato de serem muito mais jovens. O eleitorado francês está muito dividido, à imagem da célebre aldeia gaulesa, mas está voltando a se mobilizar à esquerda e, sobretudo, é muito definido: os eventuais deslizamentos a favor de Marine Le Pen são muito pouco significativos para que ela consiga sair de seu confortável, mas insuficiente, gueto de 25% para alcançar a maioria.
O segundo obstáculo, ainda mais insuperável do que o anterior para Marine Le Pen, é a famosa 5ª República, da qual muitos candidatos da esquerda querem o fim. Desde 1962, o Presidente da República é eleito diretamente em vez de sê-lo pelas câmaras, como acontecia na versão da Constituição de 1958. Ele é dotado de poderes consideráveis, entre os quais o direito de dissolução, que não pode ser repetido durante um ano; pode governar com base no artigo 16 em caso de situação muito grave (neste caso, a Assembleia Nacional se mantém e não pode ser dissolvida). Porém, ele deve governar através do Primeiro Ministro. Todos os seus decretos devem ser assinados por este. E, embora o Presidente possa nomear o Primeiro Ministro, este deve obter obrigatoriamente o voto de confiança da Assembleia Nacional. Sem maioria parlamentar, o Presidente da República precisa coabitar com uma maioria que lhe é hostil (submeter-se, o que se tornou regra nos governos Chirac e Mitterrand, ou então se demitir). Pode encontrar-se na posição do presidente Mac Mahon, na 3ª República, que teve de se demitir em 1877. No entanto, o modo de escrutínio atual das legislativas é uninominal em dois turnos, sem divisão dos mais fortes, ficando para a proporcional corrigir a eliminação de forças significativas, mas incapazes de se aliarem com outras no segundo turno.
Esse é justamente o caso do Front National. Essa lei eleitoral faz com que um partido que reúne de 20 a 25% dos votos em nível nacional e, às vezes, 45% em nível local não consiga obter um número suficiente de deputados. Enquanto a direita e o Front National forem incapazes de se entender, este continuará tendo apenas um número marginal de deputados. O que poderia fazer Marine Le Pen, na hipótese muito improvável de 2017, mas possível em 2022, com apenas 35, ou mesmo 10 deputados, na Assembleia Nacional? Rigorosamente, nada além de submeter-se a uma coabitação ou demitir-se. A direita está presa no seu próprio terreno desde 1981, exatamente como ficou a esquerda socialista e radical entre 1947 e 1977 quando o Partido Comunista, com um quarto do eleitorado, a impedia de formar uma coalizão sustentável.
É possível, então, que, diante do escândalo Fillon Penelopegate (do nome de sua mulher que foi empregada como assistente parlamentar e colaboradora-fantasma da Revue des Deux Mondes mediante salários astronômicos), assistamos a um duelo entre Macron e Marine Le Pen.
A segunda lição interessante dessas eleições presidenciais é o surgimento do tema da renda universal proposta como medida central pelo candidato surpresa do Partido Socialista, que eliminou tanto Arnaud Montebourg quanto Manuel Valls (ambos opostos a essa reivindicação). Pela primeira vez na França, tanto em toda a esquerda como na direita, a renda universal foi discutida, embora fosse rejeitada, a exemplo de Mélenchon e de Macron, enquanto o ex-presidente da companhia de seguros AXA, conselheiro de François Fillon, pronunciou-se a favor, para grande espanto de seu próprio campo. Essa reivindicação, que parece ainda vaga por reunir neoliberais, desde M. Friedman e J. Von Hayek, e vozes opostas (P. Van Parijs, J. M. Ferry), transpôs com êxito a barreira da invisibilidade.
A pressão por uma renda universal, qualquer que seja sua forma, passou a ser ouvida. Medida central de Benoit Hamon, candidato à primária do Partido Socialista, ela contribuiu muito para eliminar seus rivais, entre os quais o ex-primeiro ministro Manuel Valls, para surpresa geral. Depois de ter se arrastado durante muito tempo na França, essa questão foi lançada de uma só vez.
Ainda não se sabe qual será o destino dessa palavra de ordem da renda universal, mas certo é que uma etapa foi vencida. Principalmente na esquerda, mais nada será como antes quanto à discussão sobre o crescimento, a persistência do desemprego, a retomada do consumo, a reforma do Estado do bem-estar social, o futuro do trabalho, o combate à pobreza e às desigualdades.
IHU On-Line - Quais são as principais tensões e disputas geopolíticas presentes no mundo de hoje? Quais os riscos e possibilidades dessas tensões?
Yann Moulier Boutang - Hoje, as principais tensões geopolíticas, por ordem de prioridade, são: o futuro do planeta, logo, a questão da transição ecológica, na qual um dos pontos – mas não o único – é a transição energética para lutar contra o aquecimento climático; a poluição dos solos, dos rios, a escassez da água, a poluição do ar nas grandes metrópoles, onde se concentrarão 85% da população mundial até 2050, tornam-se questões cruciais que não podem ser escamoteadas. A globalização e a financeirização da economia ou, de modo generalizado, a financeirização de tudo, inclusive do meio ambiente, que passou a ser oportunidade de novos lucros, foram incapazes de enfrentar os dois maiores desafios: a) como preservar um planeta habitável para nossos netos? b) como resolver o problema da pobreza e de uma sociedade cada vez mais injusta na divisão da riqueza, apesar dos progressos inéditos alcançados pela revolução digital?
Os cenários segundo os quais o grande batalhão dos países emergentes, como a China, a Índia, o Brasil, alcançaria os países desenvolvidos de forma virtuosa, rápida e sem sobressaltos mostraram que esses países se engolfaram na contradição entre crescimento industrial rápido e destruição acelerada do meio ambiente e das condições de vida humana, em uma desigualdade gigantesca que impede transformar um crescimento dependente das exportações em um desenvolvimento autoalimentado. A segunda onda da transformação digital (big data, machine learning, inteligência artificial, robotização) nos coloca numa longa fase de segunda revolução industrial que provocará desemprego em massa tanto nos países do centro quanto nos BRICS.
É nesse terreno fértil em contradição que fecundam fenômenos como os confrontos inter-religiosos (xiitas/ sunitas, islã, budismo), os conflitos entre maioria e minorias e o recente crescimento de populismos essencialmente de direita (Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, França, Hungria, Holanda, Itália), mas também de esquerda (Espanha, França). Tais fenômenos não têm nenhuma autonomia. Travestem-se em “guerra das civilizações” encenadas pelo terrorismo fundamentalista e por um populismo reacionário, mas tratá-los separadamente das contradições profundas que os alimentam leva somente a um teatro de sombras sem fim.
IHU On-Line - Como o senhor avalia a eleição de Trump nos EUA? A que fatores atribui a eleição dele
Yann Moulier Boutang - Longe de significar um retorno ao isolacionismo dos EUA, como no século XIX, a eleição de Trump manifesta mais uma normalização desse continente alinhada à norma europeia nacional anterior à Segunda Guerra Mundial. O império americano nunca foi vencido, a não ser em momentos instantâneos e efêmeros, com Pearl Harbour e o 11 de setembro. Ele ainda não assimilou a era pós-nacional que conduziu as pequenas Nações europeias, após seu duplo suicídio de 1914-1918 e 1939-1945, a criarem um processo de unificação como aquele dos Estados Unidos entre 1776 e 1860. O quiproquó com a Europa, então, é geral (com o Japão e a Coreia do Sul também). Em compensação, os Estados Unidos compreendem melhor a Rússia e a China.
Falei a respeito dos continentes à deriva, da fenda transatlântica crescente. A eleição de Trump apenas confirma esse afastamento já perceptível nos governos de Bill Clinton e George Bush.
Detesto Trump, que apresenta traços do Doutor Fantástico [Doutor Fantástico é um filme anglo-americano de 1964, uma comédia de humor negro dirigida por Stanley Kubrick. Um general completamente insano, Jack Ripper, ameaça, durante uma reunião entre nações, neutralizar a U.R.S.S. com bombas nucleares, o que poderia gerar um Holocausto fulminante na Terra. Todos os outros membros fazem de tudo para evitar], muito perigoso nas circunstâncias atuais, mas eu diria que ele é uma benção para os partidários da construção de uma União Europeia sólida, portanto, federal. Era difícil acusar os Estados Unidos de desejar a morte do projeto europeu, o fim do euro, a inexistência de independência tecnológica, societal e cultural frente ao soft power dos EUA, que não é apenas Hollywood, mas essencialmente os GAFAs [GAFA: sigla adotada pelos franceses para se referirem aos gigantes tecnológicos americanos: Google, Apple, Facebook e Amazon] e o novo capitalismo cognitivo de ponta.
Agora, as coisas se aclararam. Trump aplaude o Brexit, condena a União Europeia à extinção, quer nomear um embaixador abertamente hostil em Bruxelas. O jogo de Theresa May, quase ridículo por seu anacronismo, para voltar a ter o papel de fiel escudeiro dos Estados Unidos evocando seu papel imperial, longe de despertar a inveja dos países da União, serve de modelo a rejeitar. Por fim, Trump é um idiota útil para a retomada de uma defesa europeia, de um Estado federal europeu integrado.
IHU On-Line - Que mudanças geopolíticas podem-se esperar a partir do governo Trump? Que tipo de relações os EUA devem estabelecer com a China, Europa, Ásia e a Rússia, considerando que o presidente Putin já sinalizou como positiva a eleição de Trump?
Yann Moulier Boutang - Há as palavras estapafúrdias e os tweets de Trump. E há também as fortes tendências da diplomacia americana. Sobre o Irã, a Rússia, a China, a União Europeia e a OTAN, Trump quer briga, mas desde já é obrigado a baixar o tom. Acabamos de ver as fortíssimas dificuldades internas que ele encontrou diante da proibição radical da entrada de cidadãos de seis países árabes (inclusive a decisão de um juiz federal que suspendeu a execução do decreto). A OTAN foi confirmada por seu Ministro da Defesa. A renúncia ao Tratado Norte-Americano de Livre Comércio - NAFTA [sigla em inglês] não pode ser feita com uma canetada.
Quanto às relações com Putin, passada a rápida paquera que dois populistas podem manter na execração comum da democracia policiada, os interesses logo prevaleceram. Putin testará o presidente americano sobre a Ucrânia, com a retomada dos combates no Donbass, mas Trump não falou em retirar as sanções contra a Rússia. Como dizia Shakespeare, “muito ruído para nada”.
O único terreno em que a diplomacia de Trump pode causar devastações é no Sudeste Asiático. A China atravessa um período difícil no plano interno. Está muito sensível em virtude do caso do Mar da China e da questão de Taiwan e Hong Kong. Os métodos toscos de Trump, que nada têm a ver com os de alguém como Nixon ou Obama, ferem seriamente a China, que, ao contrário da Rússia, tem um poder de represália muito forte contra os Estados Unidos e pode, sobretudo, aproveitar o recuo brutal de Trump do acordo com os países do Sudeste Asiático para reintegrar uma coalizão da qual fora afastada.
IHU On-Line - Trump fez um discurso bastante duro em relação aos imigrantes e, especialmente, ao terrorismo. Como essas questões devem aparecer na pauta norte-americana nos próximos anos?
Yann Moulier Boutang - O México realiza 80% de seu comércio com os Estados Unidos e o Canadá no âmbito do NAFTA. O “muro” de Trump, com a intenção de humilhar esse país, acaba de provocar um resultado pelo qual o presidente dos EUA pagará caro: ele fez ressurgir o nacionalismo latino-americano “antigringos”, enquanto os cinquentas anos de globalização haviam tecido interdependências dos dois lados do Rio Grande, as quais são irreversíveis sem que a própria indústria americana pague um preço insano. Aliás, podemos comparar essa vontade de romper com o México ao Brexit, pois em ambos os casos Trump e May demonstram a mesma ignorância em relação às transformações profundas da cadeia do valor, da especialização complementar Reino Unido/Europa continental e EUA/ México e Canadá. O mesmo vale para a complementaridade das economias dos Estados Unidos e da China.
Quanto à questão do terrorismo e da luta contra ele, Trump se limitou ao problema da segurança, sem perceber que isso está intimamente ligado às transformações produtivas, a uma circulação maciça de quadros empresariais, engenheiros, pesquisadores, empresários (inclusive aqueles que trabalharam em estreita colaboração com os Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque).
Assim como a imprensa, os GAFA iniciaram uma campanha contra o decreto de imigração justificado pelo presidente como sendo a condição de um combate eficaz ao terrorismo. Essas empresas são de fato afetadas em seu funcionamento cotidiano. A cidade de San Francisco, em declaração oficial inédita, entrou em dissidência ao proclamar alto e bom som que não aplicará o decreto presidencial. Foi da cidade de Seatlle e do Estado de Washington que um juiz federal – aliás, republicano – suspendeu o decreto presidencial. Se assim continuar, a luta do presidente, que ataca especialmente a Califórnia, permissiva e “frouxa” em suas próprias palavras, poderá encorajar o estado mais rico e também o mais populoso dos Estados Unidos a entrar em secessão de fato com o candidato eleito do Middle Ouest, da Rust Belt e da Flórida dos rendimentos. Com grande união nacional, é possível fazer melhor. A exceção política dos Estados Unidos está se dissipando. Dois campos se enfrentam hoje, sem reconciliação. Poderíamos dizer que estamos na Europa mais vingativa.
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Modelos civilizacionais em disputa e os desafios para a sua superação. Entrevista especial com Yann Moulier Boutang - Instituto Humanitas Unisinos - IHU