30 Novembro 2016
"De forma paradoxal, há 50 anos a teologia católica era mais global do que é hoje. A teologia católica no mundo ocidental tornou-se menos católica no sentido de que é menos universal, menos multilíngue e menos familiarizada com a literatura teológica de outras línguas. Em vez disso, ela tem absorvido mais questões culturais específicas de um dado país e, em geral, tem estado inconsciente sobre o que o catolicismo vem sendo em outras partes do mundo".
A reflexão é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de teologia e estudos religiosos na Villanova University, nos EUA, e autor, entre outros, do livro recém-lançado “The Rising Laity. Ecclesial Movements Since Vatican II” (Paulist Press, 2016; sem tradução ao português), em artigo publicado por La Croix International, 28-11-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Segundo ele, "um dos desafios que a eleição de Trump põe ao catolicismo (e não apenas nos Estados Unidos) é saber se a religião será ou não capaz de responder a essa revolta populista contra as elites. Será que o catolicismo romano conseguirá defender o seu próprio tipo de visão de mundo cosmopolita e globalista? Ou irá se tornar nacionalista e provinciano?"
"Os céticos da eclesiologia do papa defendem – sugere Massimo Faggioli – uma versão americanizada e excepcionalista do catolicismo. Francisco, por outro lado, defende uma cosmovisão católica solidamente internacionalista e antinacionalista."
Eis o artigo.
Um dos melhores artigos que li na tentativa de entender o que levou à eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos é a representação por George Packer da revolta populista contra as elites (na bastante elitizada New Yorker, revista americana).
Packer aponta para o emprego que Samuel Huntington faz do termo “elites cosmopolitas” num livro de 2004 intitulado “Who Are We? The Challenges to America’s National Identity” (Quem somos nós? Os desafios à identidade nacional americana, em tradução livre). Huntington descreve as elites como sendo os americanos que estão “à vontade, no mundo fluido das corporações transnacionais, da dupla cidadania, das identidades mescladas e da formação multicultural”.
Eis praticamente uma definição didática do catolicismo, pelo menos do ponto de vista cultural.
A Igreja Católica pode também ser vista como uma corporação transnacional. Na verdade, ela provavelmente é a maior e mais antiga do mundo. Os católicos têm uma dupla cidadania, no sentido de que são “cidadãos de duas cidades” – a cidade celestial e a cidade terrena (Vaticano II, Constituição Gaudium et Spes, 1965, parágrafo. 43).
Os católicos também têm identidades mescladas no sentido de que são capazes de navegar melhor nas fronteiras sociais, culturais e nacionais do que os demais por causa de uma identidade transnacional ou supranacional muito forte. E os católicos têm uma formação multicultural, dado que o catolicismo afirma ser livre de visões de mundo idiossincráticas e possuir uma particular sensibilidade ao universal.
Um dos desafios que a eleição de Trump põe ao catolicismo (e não apenas nos Estados Unidos) é saber se a religião será ou não capaz de responder a essa revolta populista contra as elites. Será que o catolicismo romano conseguirá defender o seu próprio tipo de visão de mundo cosmopolita e globalista? Ou irá se tornar nacionalista e provinciano?
Eis um desafio particular para a assim-chamada “intelligentsia católica”: teólogos acadêmicos, escritores, professores e editores, bem como o clero, religiosos consagrados e os bispos. Nesse sentido, a forma como os católicos americanos aceitam (ou não) a visão do Papa Francisco repousa sobre a natureza global do catolicismo. Os céticos da eclesiologia do papa defendem – em minha opinião – uma versão americanizada e excepcionalista do catolicismo. Francisco, por outro lado, defende uma cosmovisão católica solidamente internacionalista e antinacionalista.
Esta não é apenas a visão pessoal do papa quanto à função do catolicismo em questões mundiais. Ela é, na verdade, parte integrante da cosmovisão católica desenvolvida especialmente no período moderno, com a rejeição das várias versões do nacionalismo católico: citam-se o galicanismo na França e alhures, o febronismo na Alemanha e o josefinismo na Áustria.
A rejeição da Igreja Católica ao nacionalismo ficou particularmente evidente durante este último século. Existem paralelos interessantes entre o momento presente em nossa política nacional e mundial e o modo como a Igreja reagiu e respondeu às consequências da agitação social e ideológica.
Na década de 1920, por exemplo, Pio XI tentou reagir contra o nacionalismo em ascensão promovendo a “realeza social de Cristo” – uma das devoções que o Papa Francisco está hoje reinterpretando a partir do ponto de vista dos pobres. Em sua mais recente carta apostólica Misericordia et Misera, Francisco decidiu criar o novo “Dia Mundial dos Pobres” no domingo antes da solenidade de Cristo Rei. É um esforço para dar um significado novo e contemporâneo a uma festa litúrgica que foi criada em 1925 com uma intenção claramente política.
Em 1945, depois da Segunda Guerra Mundial e dos fracassos do liberalismo, do fascismo e do comunismo, o projeto cristão-democrata na Europa era a restauração de uma ordem social. Ele esteve também inspirado na Doutrina Social da Igreja e foi possível por causa da idade dourada dos partidos democratas cristãos.
Na década de 1960, as culturas políticas do Concílio Vaticano II rejeitaram a polarização ideológica da Guerra Fria, louvaram organizações internacionais como as Nações Unidas e a Unesco e aceitaram (senão totalmente abraçaram) a democracia constitucional. Mesmo antes do fim do comunismo, João Paulo II já havia imaginado uma nova ordem mundial onde as religiões – e a Igreja Católica em particular – fossem chamadas a ser um ator-chave para um novo internacionalismo. Lembremos que o primeiro encontro inter-religioso promovido pelo Vaticano em Assis ocorreu em 1986, três anos antes da queda do Muro de Berlim.
Hoje, estamos em um outro ponto de inflexão crítico da história.
Ele marcado pela eleição de Trump, pelo referendo “Brexit”, pela ascensão do nacionalismo na Europa, pelo fascínio com os “homens fortes” na política e, em geral, pela nossa suposição de que os direitos sociais e políticos (incluindo a liberdade religiosa) são protegidos pela democracia.
São “sinais dos tempos” que exigem um discernimento teológico por parte da Igreja, e não apenas nos Estados Unidos.
O papel da Igreja Católica está se tornando fundamental novamente em dois países-chave da Europa, onde as próximas eleições deverão modelar o futuro do continente. Na França, as recentes eleições primárias presidenciais apresentaram dois candidatos católicos de centro-direita (François Fillon e Alain Juppé), que mostraram sensibilidades divergentes relativas a questões multiculturais e aos pontos de vista que os bispos franceses manifestaram a respeito da eleição do próximo ano.
Na Alemanha, está em curso um intenso debate sobre a relação entre a Igreja Católica e o partido neonacionalista e antimulticultural AfD (“Alternative für Deutschland”, Alternativa para a Alemanha). Este debate foi recentemente marcado por uma forte altercação entre Daniel Deckers, do jornal conservador Frankfurter Allgemeine Zeitung, e Andreas Püttmann, do Katholisch.de, voz da conferência episcopal alemã.
Quaisquer que sejam os motivos que levaram os católicos a votar em Trump, a votar pela saída da Inglaterra da zona do euro, a votar no AfD na Alemanha e na Liga do Norte na Itália, a acolhida de tais agendas neonacionalistas marca uma virada radical contra a tradição católica.
A questão não é uma defesa fútil da globalização capitalista em si, mas a proposta de uma globalização alternativa. No entanto, nem todos os bispos estão na mesma sintonia do Papa Francisco e nem todos adotam os seus pontos de vista sobre a economia moderna. Isto fica particularmente claro nos Estados Unidos, onde os prelados estão divididos entre si.
Os líderes católicos vêm demonstrando uma dissonância cognitiva entre, de um lado, o seu sistema de relações profundamente enraizado com o status quo capitalista e, de outro, a defesa de um sistema mais justo que deveria levá-los a abraçar o ensino social do papa. Mas, infelizmente, vimos que muitos dos bispos americanos pareceram mais próximos dos pontos de vista de Donald Trump do que dos pontos de vista pontifícios.
O neonacionalismo encarnado por Trump baseia-se claramente na xenofobia, em teorias conspiratórias e na exploração dos pobres e fracos a serviço da versão mais recente do neoliberalismo. Pode-se esperar que os bispos dos EUA prestem atenção a isso.
Mas o restante das elites católicas têm também a responsabilidade de lutar contra esta agenda neonacionalista.
De forma paradoxal, há 50 anos a teologia católica era mais global do que é hoje. A teologia católica no mundo ocidental tornou-se menos católica no sentido de que é menos universal, menos multilíngue e menos familiarizada com a literatura teológica de outras línguas. Em vez disso, ela tem absorvido mais questões culturais específicas de um dado país e, em geral, tem estado inconsciente sobre o que o catolicismo vem sendo em outras partes do mundo.
A melhor maneira de a teologia católica contribuir para a redefinição da globalização é manter segura a sua catolicidade no sentido da universalidade. Um dos efeitos perversos da profissionalização pós-Vaticano II dos estudiosos católicos leigos é que muitos dos teólogos acadêmicos de hoje têm menos tempo, menos dinheiro e menos oportunidades de estudar e trabalhar no exterior em comparação com os seus orientadores ou colegas de duas ou três décadas atrás.
A maioria dos teólogos, hoje, não mais são pagos por uma diocese ou ordem religiosa. Diferentemente, recebem salários como professores de faculdades e universidades estatais, onde os administradores enxergam o estudo da teologia e das religiões como um encargo custoso. Essa situação não é difere muito nas instituições de ensino católicas.
O “paradigma tecnocrático”, que o Papa Francisco critica na encíclica Laudato Si’, levou à “proletarização” e à “precarização” da teologia. Isto é, ele transformou em níveis significativos muitos teólogos em trabalhadores assalariados, deixando-os com uma segurança empregatícia precária.
A boa notícia é que o catolicismo é a versão mais ubíqua e mais profundamente enraizada da globalização e do multiculturalismo no mundo atual. Por sua universalidade, a Igreja Católica está especialmente preparada para encarnar uma forma alternativa de globalização. E isso acarreta uma responsabilidade especial por seus teólogos, cujos trabalhos podem ter consequências políticas globais.
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O catolicismo entre o globalismo e o nacionalismo. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU