15 Agosto 2016
"Os católicos italianos aprenderam a ver Berlusconi como um problema italiano criado por italianos (incluindo os católicos); esse é um dos paralelos entre Berlusconi e Mussolini. Eles sabiam que Silvio Berlusconi fazia parte da ‘autobiografia da nação italiana’, como Piero Gobetti chamava o fascismo. Gobetti viu Mussolini e o seu regime como o resultado natural dos tradicionais males sociais e políticos da Itália. É por isso que eu não posso dizer se eu vejo Trump como uma aberração ou como o extremo lógico de uma tendência estadunidense do início do século XXI."
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado na revista Commonweal, 10-08-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O verão pré-eleitoral de 2016 esclareceu que Donald Trump lembra mais de perto a Rússia de Vladimir Putin ou a Turquia de Recep Tayyip Erdogan do que Silvio Berlusconi, ao menos com base nas suas intenções declaradas.
Mas o candidato do GOP e o ex-primeiro-ministro da Itália têm, sim, muito em comum – dentre outras coisas, o fato de ser mulherengo e a objetificação das mulheres; o desprezo pelas minorias disfarçado de polêmica contra o "politicamente correto"; as circunstâncias turvas em que suas primeiras fortunas foram acumuladas; e os conflitos de interesse entre os seus impérios financeiros e os adversários estratégicos dos países que eles aspiram a liderar (em ambos os casos, a Rússia de Putin).
Algo que eles não têm nada em comum são as habilidades políticas: a vasta superioridade de Berlusconi nessa frente ajudou-o a herdar, para melhor ou para pior, a maioria dos votos do partido cristão-democrata dirigido por católicos (Democrazia Cristiana), que tinha governado a Itália por quase 50 anos (e essas habilidades também não seriam vistas em qualquer lugar entre aqueles que deveriam derrubar Berlusconi depois da sua ascensão ao poder em 1994).
No entanto, mais de 20 anos depois da sua estreia na política, vale a pena olhar para o impacto que Berlusconi teve sobre o catolicismo italiano em termos daquilo que Donald Trump ainda pode ter sobre o catolicismo nos Estados Unidos.
Berlusconi ascendeu ao poder depois do colapso do partido cristão-democrata, que havia sido devastado por uma série de escândalos, proclamando-se, ele mesmo, sucessor dos políticos cristão-democratas que, depois da Segunda Guerra Mundial, elaboraram uma nova constituição e construíram a primeira república italiana.
Especificamente, ele invocou Alcide De Gasperi, o político católico que governou a Itália entre 1945 e 1953 (e que complicou as relações com o Vaticano como primeiro-ministro). Isso causou uma divisão naquilo que restava do partido cristão-democrata e no catolicismo italiano.
Contra Berlusconi e seus aliados, formou-se uma coalizão de ex-comunistas, católicos de esquerda (católicos do Vaticano II, freiras ativas no trabalho social, associações de leigos católicos) e patriotas constitucionalistas que viam o perigo de deixá-lo tornar-se protetor (e reformador) da Constituição italiana de 1948.
Em favor de Berlusconi, havia uma coalizão não menos diversificada de cardeais italianos e bispos da Cúria (alguns dos quais permaneceram no Vaticano), uma maioria de católicos que tinham votado durante décadas no partido cristão-democrata e ex-políticos e intelectuais ateus, comunistas e socialistas que, de repente, se tornaram anticomunistas e antissocialistas assim que viram em Berlusconi um "guerreiro cultural" por uma Itália neoconservadora.
A base de apoio mais importante na Igreja Católica para Berlusconi era a Conferência dos Bispos Italianos e, especialmente, o seu secretário-geral e presidente de 1986 a 2007, o cardeal Camillo Ruini – o Richelieu da Igreja italiana durante o pontificado de João Paulo II. (Há uma palavra que descreve esse período e a sua política: "ruinismo", que até entrou no dicionário Treccani, o equivalente italiano ao Webster Dictionary.)
Ruini viu em Berlusconi não o pretenso vencedor sobre o comunismo (que não era mais uma ameaça), mas, sim, o construtor de um muro político contra a biopolítica da esquerda italiana pós-comunista e pós-modernista – isto é, como um bloqueio contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a eutanásia, e como um protetor de um sistema fiscal que favorecia a Igreja. (Curiosamente, Berlusconi nunca disse nada sobre reverter a lei do aborto de 1978; o movimento pró-vida na Itália foi e continua sendo politicamente irrelevante.)
Mas o que a tomada da direita por parte de Berlusconi produziu, foi basicamente um vácuo nesse lado do espectro: cerca de 20 anos depois, o eleitorado conservador está sem um partido e sem um líder de verdade; está também sem uma cultura, uma identidade e uma agenda.
É questionável se a mesma coisa poderia acontecer com o Partido Republicano estadunidense pós-Trump.
Em primeiro lugar, nunca houve um partido católico nos EUA, não que Trump possivelmente pudesse herdar esse tipo de eleitorado, de qualquer maneira.
Em segundo lugar, Berlusconi polarizou os católicos italianos politicamente, não culturalmente; a guerra cultural nunca funcionou na Itália (e essa é uma das razões pelas quais os italianos amam o Papa Francisco).
Em terceiro lugar, em um país como a Itália, onde os padrões de imigração e as relações entre as raças e as classes na política pós-Segunda Guerra Mundial são diferentes dos EUA, Berlusconi deixou seus aliados (especialmente a Liga Norte) jogar as cartas da anti-imigração e da islamofobia para que ele não precisasse.
Quanto às políticas dos católicos italianos: Berlusconi funcionou como um reagente químico, separando elementos que já tinham mostrado algumas diferenças, mas que, na era pré-bipolar da política italiana, não exibiam essas diferenças como alternativas fortes.
Ele forçou os católicos italianos a se pronunciarem e declararem (publicamente ou nas urnas) o seu apoio ao seu partido, à sua política, à sua antropologia etc., ou a sua oposição a ele e a tudo o que vinha com ele.
Mas, até agora, não vimos tal divisão afiada – de católicos por Trump, de um lado, e de católicos contra ele, de outro. Para o meu conhecimento, houve o apelo de março de George Weigel, Robert George e outras três dezenas de acadêmicos; a carta assinada por 5.600 freiras da LCWR pedindo um discurso civil na campanha presidencial; e as manifestações pró-vida do líder dos Cavaleiros de Colombo, Carl Anderson).
Mas, caso contrário, não houve nada por parte de muitos dos grupos – laicais ou clérigos – associados com a Igreja Católica estadunidense. A intelligentsia católica estadunidense geralmente tem se pronunciado contra Trump, mas é difícil medir que tipo de atração Trump tem no vasto mundo católico fora das revistas e dos comentaristas.
É digno de nota que os bispos estadunidenses não tenham abordado a mensagem de Donald Trump nessa corrida presidencial. Talvez, eles estavam esperando o fim das primárias, na esperança de uma alternativa a Trump; ou, talvez, eles olharam para a convenção com a mesma esperança. Talvez, agora, eles estão esperando por uma surpresa de verão ou em outubro, na esperança de que Trump pudesse se retirar e ser substituído na cédula por outra pessoa. Mas, mesmo se isso acontecesse (um grande "se"), os bispos perderam a oportunidade apresentada por essa disputa incomum de mostrar a sua habilidade de ler o que está acontecendo no seu país ou no seu rebanho.
O atraso dos bispos italianos em denunciar Berlusconi (isso não aconteceu até 2011, depois que a era Berlusconi efetivamente terminou) causou danos consideráveis e duradouros para a credibilidade da Igreja Católica na Itália. O efeito Berlusconi tornou visível o declínio, senão o fim, das elites do catolicismo político entre o partido cristão-democrata. Também deu uma nova voz para antigos líderes católicos que deixaram a arena nos anos 1970.
Os católicos italianos se lembram bem de como o padre Giuseppe Dossetti (1913-1996, vice-presidente do partido cristão-democrata até 1951, um dos pais da Constituição italiana e, uma década depois, um dos mais influentes peritos do Concílio Vaticano II) deixou o seu retiro monástico em 1994 para realizar eventos públicos contra Berlusconi. É possível pensar em Dorothy Day ou em Thomas Merton como equivalentes estadunidenses a Dossetti.
Eu me pergunto o que ambos diriam sobre Trump ou se isso faria qualquer diferença – não necessariamente para a eleição, mas para a consciência básica dos católicos estadunidenses quando se trata de Trump.
Será que o fenômeno Trump está nos dizendo algo sobre a saúde da alma profética dentro do catolicismo estadunidense? Existe um catolicismo trumpista ao qual não estamos prestando atenção?
Como alguém que veio para os EUA somente em 2008, é interessante observar como alguns católicos estadunidenses se identificam com a mensagem de "forasteiridade" [outsiderness] política de Trump: será que eles acreditam agora que o seu catolicismo não é feito para aquilo que eles pensam que os EUA mainstream se tornaram (capitalistas, tecnocráticos, irreligiosos, de elite)? Seria interessante explorar se o fenômeno Trump, de alguma forma, está alimentando o interesse na opção-Bento em suas várias formas nos EUA de hoje, como se a opção-Bento fosse a única opção viável para os católicos desgostosos com Trump e com o atual estado das coisas em geral.
Os católicos italianos aprenderam a ver Berlusconi como um problema italiano criado por italianos (incluindo os católicos); esse é um dos paralelos entre Berlusconi e Mussolini. Muitos italianos que nunca votaram em Berlusconi não o viam como uma aberração. Eles (nós) sabiam que Silvio Berlusconi fazia parte da "autobiografia da nação italiana", como Piero Gobetti (1901-1926, um dos muitos mártires políticos criados por Mussolini) chamava o fascismo. Gobetti viu Mussolini e o seu regime como o resultado natural dos tradicionais males sociais e políticos da Itália.
É por isso que eu não posso dizer se vejo Trump como uma aberração ou como o extremo lógico de uma tendência estadunidense do início do século XXI.
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Católicos estadunidenses, Trump e a autobiografia de uma nação. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU